História,  Jornalismo

Carnaval, o grande momento do amor, em uma crônica de João do Rio

Exatamente um século e quatro anos atrás, no dia 26 de fevereiro de 1916, o jornalista João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, mais conhecido como João do Rio, assinava através de outro pseudônimo, Joe,  na Revista da Semana, uma crônica sobre o carnaval, dialogando com um certo conselheiro, personagem ficcional, sobre as implicações morais da festa.

Carnaval em Madureira/Tarsila do Amaral Archivo Z Women Art

Veja a íntegra do texto:

O momento do amor
Por Joe                                                                                                                                                                                

O conselheiro é um homem encantador. Baudelaire dizia: “Cá temos um homem que fala do seu coração – deve ser um canalha”. O conselheiro não fala do seu coração, mas é um homem sensível. Com 75 anos, teso, bem vestido, correto, possuidor de doze netos e cinco bisnetos, a sua conversa é sempre cheia de alegria e de mocidade. Outra noite, estávamos no seu salão, e de repente rompeu na rua um “zé-pereira”.

O conselheiro exclamou:

– Eh! Eh! As coisas esquentam!

Como o conselheiro é idoso, pensei vê-lo atacar os costumes e o carnaval. Para gozar da sua simpatia, refleti:

– Temos cada vez mais a dissolução da moral!

– Quem lhe fala nisso? – indagou o conselheiro. Talvez por ter sido sempre um homem moral nunca precisei de descompor os costumes para julgar-me sério. Sabe o que eu sinto quando ouço um “zé-pereira”?

– Francamente, conselheiro…

– Sinto que chega o grande momento do amor no rio…

– De fato, a liberdade dos costumes.

– Heim?

– Sim, os préstitos, as cortesãs, a promiscuidade, as meninas de pijama cantando versos pouco sérios, os lança-perfumes, a bacanal…

– Meu filho, quando se chega a uma certa idade, o resultado é tudo. Se quisermos ver nos três dias de carnaval a folia como depravação, posso garantir que as brincadeiras de antanho com o entrudo, os banhos d’água fria, o porta-voz eram livres como as de hoje com os lança-perfumes, os confetes e as serpentinas. Mas não se trata disso. Trata-se de coisa mais séria. Eu casei aos 18 anos, isto é, há quase 58 anos fiz a loucura de tomar por esposa a minha querida Genoveva. Mas, passado o primeiro ano, essa alucinação causou-me tal pasmo que resolvi estudar-lhe as causas. E descobri.

– Quais foram?

– Uma só: o momento do amor!

– Conselheiro!

– Há uma época no Rio absolutamente amorosa, quer no tempo da monarquia, quer na República. Consultei estatísticas, observei, indaguei, procedi a inquéritos pessoais… Sabe qual é essa época? A do carnaval! Note você como aumentam os casamentos nos meses seguintes ao carnaval. A maioria das inclinações, dos namoros que terminam em casório, começam no carnaval. Três meses depois estava casado. Cinco dos meus filhos namoraram no carnaval. Minha filha Berenice com 30 anos arranjou o marido que lhe faz a vida feliz, no carnaval. Nove dos meus netos seguiram a regra…

– Mas, conselheiro, se é verdade o que V. Exa. diz, era o caso de fazer uns quatro carnavais por ano…

– Não daria resultado, meu amigo. O carnaval é uma embriaguez d´alegria. Quem se embriaga uma vez por ano não está acostumado. Quem se embriaga quatro, raciocina na bebedeira. Veneza acabou pelo abuso da máscara. Nós acabaríamos pelo abuso do “zé-pereira”. Mas uma vez por ano é bem o verão impetuoso do desejo, o momento do amor.

Depois suspirando:

– Aproveite-o você. Eu infelizmente não posso mais. A velhice é como o maître d’hotel da vida. Indica ao cliente o prato ótimo do cardápio e não o come: abre o champanhe e olha apenas a taça. Coma o prato, engula o champanhe. O carnaval chegou!

Revista da Semana, Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1916

Uma análise acurada da relação do autor com o grande evento carioca pode ser encontrada no livro João do Rio e o carnaval: um olhar para a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX , organizado por Jacqueline de Cassia e Pinheiro Lima e Márcio Luiz Corrêa Vilaça. Resultado de um projeto de pesquisa desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da Unigranrio (Universidade do Grande Rio), o e-book gratuito pode ser baixado aqui.

O REPÓRTER-CRONISTA ENVOLVIDO PELA ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

Retrato de João do Rio de autor desconhecido Divisão de Iconografia da Fundação Biblioteca Nacional

Bem antes de escrever para a Revista da Semana, João do Rio produziu muitos textos na imprensa sobre as profundas transformações que a cidade do Rio de Janeiro passou a viver nos primeiros anos do século XX. A expressão “O Rio civiliza-se”, propagada pelo poder político aos quatro cantos, tentava legitimar a reforma urbanística executada pelo prefeito Pereira Passos a partir de 1903, com o apoio do presidente Rodrigues Alves, inspirada na arquitetura da capital francesa. A chamada belle époque brasileira não conseguiu varrer do mapa brasileiro, no entanto, os aflitivos problemas sociais decorrentes do recente passado escravocrata. Sensível e talentoso, João do Rio deu conta das gritantes contradições daquele período histórico em suas crônicas, depois reunidas em livros de elevado valor literário. Um reconhecimento que o levou à Academia Brasileira de Letras, em maio de 1910, e compensou o fato de ter sido vetado, oito anos antes, de ingressar na carreira diplomática por ser “gordo, amulatado e homossexual”. Em uma das suas melhores obras, A alma encantadora das ruas, podem ser apreciados textos pungentes como “Visões do ópio”, “As mariposas do luxo” e “Os trabalhadores de estiva”, publicados na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, entre os anos de 1904 e 1907.  Já em domínio público, o livro pode ser baixado aqui.

PRECURSOR DO JORNALISMO INVESTIGATIVO BRASILEIRO

Na abertura do programa De Lá Prá Cá, exibido em 2011 na TV Brasil dedicado aos 130 anos de nascimento de João do Rio, o apresentador Ancelmo Gois, hoje colunista do jornal O Globo, destacou que a série de reportagens As Religiões do Rio, com ênfase nas crenças de matriz africana, é considerada marco do jornalismo investigativo brasileiro.

Veja o programa em duas partes:

JOÃO DO RIO E AS RUAS DE CAMPINA GRANDE, NA PARAÍBA

Vale a pena ver também o belo curta universitário, produzido no ano de 2015, “A alma das ruas”, de Jaime Guimarães, com apoio da Universidade Estadual da Paraíba e do canal Futura, inspirado na obra de João do Rio e ambientado na cidade de Campina Grande:

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