Entrevista,  História,  Reportagem

Nilson Mariano: “Sempre me atraíram esses personagens malditos, varridos para debaixo do tapete da historiografia oficial”

Nesta entrevista, Nilson Mariano fala sobre a produção do livro Um tal de Adão Latorre: A degola na Revolução de 1893

Por André Pereira*

O autor do livro, Nilson Mariano, refere-se à sua condição jornalística como uma atividade temporal passada. “Quando eu estava repórter…”, escreve, ao se referir aos ainda recentes tempos de profissional de comunicação gaúcho, premiado e de texto brilhante. No entanto, impõe-se discordar: o trabalho revelado na elaboração da obra Um tal de Adão Latorre: A degola na Revolução de 1893, lançado pela Edigal (Martins Livreiro) no sábado passado, dia 7 de março, na Livraria Erico Verissimo, em Porto Alegre, é uma legítima reportagem, robustecida por pesquisas e entrevistas realizadas em andanças no interior rio-grandenses e no Uruguai, apresentada através de uma instigante narração, na cadência das guerras “lambuzadas de sangue” do final de 1800 e início de 1900, que flui com a qualidade literária que só os bons contadores de histórias sabem obter para o desfrute de leitores exigentes.

Mestre em História, natural de Candelária, 62 anos, Nilson Mariano não é novato na literatura de resgate. Pelo contrário: comprometido em formatar uma versão da história normalmente esquecida ou manipulada pelos vitoriosos de plantão escreveu centenas de reportagens em Zero Hora e Folha da Tarde, com este traço acentuado de investigação do passado. É dele, por exemplo, o livro “Operação Condor”, que desvenda, em português e espanhol, o conluio criminoso das ditaduras brasileira, argentina e uruguaia contra a resistência democrática dos anos 1970 e 1980 no Cone Sul.

Nesta entrevista, ele revela detalhes sobre como escreveu a história do mais famoso degolador das guerras gauchescas, aqui e no Uruguai.

AP – O que motivou sua pesquisa sobre degola e o seu maior praticante, o coronel Adão Latorre?

Nilson Mariano – Sempre me atraíram esses personagens malditos, como o Adão Latorre, relegados ao esquecimento, varridos para debaixo do tapete da historiografia oficial. Penso que não se deve abordar somente os grandes personagens – generais, comandantes e chefes de nação –, os quais são homenageados com estátuas e viram nome de ruas, praças, até municípios. A história dos marginalizados, os párias, também precisa ser contada. São os que vão ao front, os que se lambuzam de sangue e executam as tarefas sujas, ordenadas por superiores. E a trajetória de Latorre excede, por ter protagonizado o maior massacre com o uso da degola em todos os combates já travados no Rio Grande do Sul.

Sobre o interesse específico pela figura do coronel Latorre, creio que surgiu em 1993, quando participei de um caderno do jornal Zero Hora, editado por Juarez Fonseca, sobre o centenário da Revolução Federalista (1893-95). Ao realizar entrevistas em Bagé, com a fotógrafa Adriana Franciosi, deparei com o último filho vivo do personagem, João Latorre, então com cerca de 100 anos, os olhos velados pela catarata. E o que o João contou me surpreendeu: cruel e impiedoso nas batalhas, o pai era um pacifista no lar. Pedia que os filhos evitassem brigas. E o que mais abismou: não deixava que os guris caçassem passarinhos ou maltratassem os animais. Se encontrasse um estilingue (funda ou bodoque), cortava as tiras de borracha com a faca sempre afiada. Isso mostra que toda pessoa tem suas áreas de sombra e luzes.

AP – Em quanto tempo e como feita a tua pesquisa, considerando que Latorre atuou também no Uruguai?

Nilson Mariano – Adão Latorre é uruguaio, descendente de escravos negros. Nasceu na localidade de Cerro Chato, no Departamento de Rivera, na fronteira com o Rio Grande do Sul, no ano de 1835. No Uruguai, é chamado de Adán de La Torre. No livro, conto a atuação dele no país oriental, o que é ignorado por aqui (ou quase desconhecido). Aos 16 anos, alistou-se no exército do Partido Blanco. Aos 25 anos, já era capitão, o que evidencia seu valor. Lutou na Revolução das Lanças, com o lendário caudilho Timóteo Aparicio, e depois nos levantes de outra legenda blanca, Aparício Saraiva. Note-se que chegou a coronel primeiro no Uruguai. Uma das explicações é que o país vizinho aboliu a escravatura meio século antes que o Brasil.

A pesquisa foi realizada em jornais e documentos disponíveis na Biblioteca Nacional do Uruguai, em Montevidéu. Também no Partido Nacional e com outras fontes. Depois, continuei em Melo, no Departamento de Cerro Largo, nos domínios de Aparício Saraiva. Latorre era comandante de esquadrão de cavalaria dos blancos.

No total, a pesquisa durou em torno de três anos, mas foi feita a intervalos. Não foi contínua, em função de outros afazeres e da disponibilidade de meu bolso para custear as viagens. No Rio Grande do Sul, pesquisei em Bagé, Aceguá, Dom Pedrito, Pelotas, Porto Alegre e Piratini. Em Piratini, foi sobre o coronel pica-pau Manuel Pedroso, o Maneco, a mais ilustre vítima de Latorre. Um dos capítulos do livro revela a história de Maneco, pouca conhecida. Ele poderia ter fugido, mas preferiu ficar com os pica-paus que estavam aprisionados num curral de pedras, à espera da degola, no Rio Negro. No momento final, enfrentou Latorre, trocaram insultos e bofetões, até que foi dominado e morto. Mostrou-se altivo, morreu como um bravo.

AP – Como defines tecnicamente a pesquisa sobre Latorre? Como uma reportagem, ainda que inexistam entrevistas, pois todos os personagens estão mortos?

Nilson Mariano – Gostaria de defini-la como uma pesquisa histórica. Trabalhei em jornais por 38 anos, é certo, sempre como repórter. Mas, atualmente, estou migrando para a pesquisa histórica. Não me considero historiador, o que seria pretensioso, mas desejo me tornar um pesquisador. Claro que me utilizo da experiência de jornalista, naquelas funções de ir aos locais, apurar, ter paciência para estudar documentos e buscar sempre o texto mais limpo e atraente.

Nilson Mariano lançou o livro sobre Latorre na Livraria Erico Verissimo no dia 7 de março  Foto: André Pereira

AP – O ritmo da narrativa lembra o chamado Novo Jornalismo. Foi a inspiração para o texto?

Nilson Mariano  – Não, embora seja fã desse estilo e tenha tentado praticá-lo quando “estava” repórter. A intenção foi fazer uma pesquisa histórica, mas, admito, o que escrevo é jornalístico na sua forma. Posso estar enganado, mas História e Jornalismo se entrecruzam. Historiadores já fizeram reportagens, e o contrário também. Mas são gêneros distintos. Estudei História, com foco na Escola dos Annales, para aprender a pesquisar na longa duração.

AP – E sobre a linguagem que utilizas, ambientada no cenário regional bem particular rio-grandense…

Nilson Mariano – Pesquisei em jornais da época para compor o ambiente do tempo de Latorre. As notícias e os anúncios de propaganda foram preciosos para entender como as pessoas se alimentavam (apreciavam o assado de carne de gado com o couro), como se vestiam (oferta de ponchos e botas), o que faziam (aulas de esgrima, dança), como cuidavam da saúde (tratamento com sanguessugas e o serviço de parteiras), como se divertiam (teatro e jogos campeiros, como o do osso), como se instruíam, etc. Carreguei bastante em como se locomoviam via diligências pelo pampa, à maneira do velho oeste americano. Achei engraçado: já cobravam pelo excesso de bagagem. Mantive palavras do linguajar da época, que é riquíssimo, como provou João Simões Lopes Neto (para mim o maior escritor rio-grandense), mais na reprodução de declarações e de documentos. Aliás, Lopes Neto também foi repórter, como revelou a jornalista Patrícia Lima em seu livro. Considerei que expressões sobre cavalos (pingo, flete), sobre valentia (não era frouxo, cospe-bala, mata-sete) e sobre outros assuntos campeiros não deveriam ser substituídas por vocábulos universais. Achei que isso tornaria a narrativa mais autêntica. Também deixei alguns espanholismos (matarife, flojo, cotorra, barajada), igualmente ricos, porque Latorre era uruguaio, um homem da fronteira. Sei que isso pode truncar a leitura, mas achei valioso como preservação da memória.

AP – O  teu agradecimento a um jóquei no anexo do livro significa retribuição à ajuda em temas equestres do tipo cavalaria bélica? Como foi a consulta a especialistas?

Nilson Mariano – Muitas pessoas ajudaram nas pesquisas, tentei não esquecer de nenhuma na parte dos agradecimentos, que está anexada ao livro. Sou grato. O jóquei Erenito Lima, por exemplo, é versado em cavalos e ginetes, foi decisivo para identificar a pelagem das montarias de Latorre, que preferia os animais claros. Não sei os motivos. Os pelos esbranquiçados dos equinos têm variantes, como tordilho, baio, ruano. O Erenito conseguiu identificar a coloração exata daquele que pode ter sido o último cavalo de Latorre, um tordilho vinagre. Chegou a avaliar a idade aproximada do animal, em torno de 10 anos, mas isso não escrevi no texto.

AP – Latorre, que usava lenço vermelho no Rio Grande do Sul e branco no Uruguai, era uma espécie de mercenário da época?

Nilson Mariano – Não creio. Havia mercenários, valentões que lutavam por plata ou por promessa de saque, mas não foi o caso de Latorre. Como todo menino pobre (ainda mais se fosse negro ou mestiço), a sina era trabalhar como peão de estância ou se alistar nos exércitos. Latorre serviu a blancos e maragatos porque gravitava em torno dos caudilhos que comandavam os dois grupos. Maragatos e blancos se pareciam, eram dirigidos por grandes proprietários de terras, a elite de então. Tinham propósitos semelhantes, guardadas as proporções: insurgiam-se contra o centralismo do governo colorado (Uruguai) e dos republicanos (os pica-paus rio-grandenses, depois chimangos). Os colorados e os republicanos eram mais urbanos, dispunham de líderes formados em universidades, principalmente advogados. Esses consideravam que os estancieiros atrasavam o progresso com suas revoluções a cavalo, sua compulsão por resolver diferenças em duelos com facões. Sentindo-se ungidos para governarem, pretendiam se perpetuar no poder, não hesitando em recorrer a fraudes eleitorais e pressões.

Adão Latorre progrediu nos dois exércitos, de blancos e maragatos, por méritos próprios. Nenhum negro alcançaria o coronelato, àquela época, inclusive comandando oficiais brancos, se não tivesse qualidades de sobra.

Em tempos de paz, Latorre era capataz no conglomerado de estâncias do clã Tavares, em Bagé. Quando foi morto, em combate, deixou apenas uma chácara aos herdeiros.

Repórter visitou o túmulo de Latorre Arquivo Pessoal

AP – Estiveste nos locais onde Latorre pode ter nascido, onde lutou e foi enterrado?

Nilson Mariano  – Sim, tentei ir aos principais lugares por onde ele andou. Estive no local da degola, às margens do Rio Negro, no atual município de Hulha Negra. Visitei o túmulo do personagem, no cemitério rural de Olhos d’Água, perto de Bagé. Também vi as estâncias e as estações de trem que foram palco de combates e correrias. Claro que, cem anos depois, a paisagem mudou. A erosão, o plantio de soja, o pastoreio do gado e o desgaste natural do tempo alteraram a geografia. Mas restavam vestígios, pequenos que fossem, o que acrescentou detalhes curiosos à narrativa.

André Pereira é um dos mais premiados jornalistas gaúchos. Foram muitas homenagens ao longo da carreira de mais de quatro décadas de jornalismo: três prêmios Esso de Reportagem Regional Sul, dois ARI (Associação Riograndense de Imprensa), quatro Badesul, dois Wladimir Herzog de Direitos Humanos, um Movimento de Justiça e Direitos Humanos e três Sebrae, entre outras distinções. O prazer pela escrita resultou na publicação de mais de 10 livros, alguns institucionais, como Senac: 50 anos formando competência, outros fruto de trabalho típico de repórter, como uma biografia de Fernando Ferrari, para a série Esses Gaúchos, da Editora Tchê, ou O Massacre do Fundão – Os Monges Barbudos, em parceria com Carlos Wagner, sobre um conflito social ocorrido na década de 1930 na região de Soledade no Rio Grande do Sul. 

A entrevista com Nilson Mariano, o autor Um tal de Adão Latorre: A degola na Revolução de 1893, foi publicada originalmente no jornal político e cultural Sul21

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