História,  Jornalismo

Ameaçado de extinção, o centenário L’Humanité segue firme e forte em tempos de Covid-19

Por Mauro César Silveira

Depois de superar sucessivas e agudas crises financeiras, o jornal francês L’Humanité mantém viva a chama comunista na semana em que completou seus 116 anos de existência. A publicação nasceu em 18 de abril de 1904, fundada pelo então deputado socialista Jean Jaurès, um pacifista que seria assassinado 10 anos mais tarde, em 31 de julho de 1914, por se opor à Primeira Guerra Mundial. Ele foi alvejado com dois tiros na cabeça disparados pelo nacionalista francês Raoul Villain quando jantava no Café du Croissant, na rua Montmartre, no bairro do mesmo nome, em Paris, perto de onde era a redação do jornal naquela época. A partir da década de 1920, L’Humanité se tornou o órgão central do Partido Comunista Francês, uma condição que findaria apenas em 1994. Cinco anos depois, outra mudança: não ostentaria mais, no alto da capa, o vínculo oficial com essa agremiação, o dístico “Jornal do PCF”, que havia sido recentemente adotado, nem a histórica imagem da foice e do martelo. Abriu-se a outras correntes da esquerda, muito embora os dirigentes do partido continuassem influenciando a sua linha editorial. Hoje, L’Huma, como gostam de lhe chamar os franceses, tem como foco questões políticas e sociais contemporâneas, como o feminismo e a emergência ambiental do planeta. No início de 2019, a centenária publicação esteve ameaçada de extinção, mais uma vez, por dívidas astronômicas, mas depois de seis meses de recuperação judicial e uma exitosa campanha de apoio, que arrecadou, ao longo de 2019, a astronômica quantia de 4 milhões de euros somente em assinaturas e doações, saiu do buraco e ganhou novo fôlego.

Nas duas edições diárias que circularam depois do aniversário – não há versão impressa aos sábados e domingos -, as páginas principais trataram do tema mais relevante do momento: a pandemia de Coronavírus que assola o mundo. Na segunda-feira, dia 20 de abril, a matéria principal destacava a “carnificina americana“, apontando o sistema de saúde caro, inacessível e profundamente desigual como uma das causas do elevado número de vítimas nos Estados Unidos. O texto alertava que o desejo do presidente Donald Trump de reabrir a economia a qualquer custo coloca o país em um estado de tensão política nunca antes alcançado, e que pode levá-lo a uma catástrofe ainda maior. Na edição de ontem, a reportagem intitulada “Um drama tão previsível” revelou a precária situação da maioria das residências coletivas de idosos na França. “O alarme foi disparado repetidamente e numerosos relatórios foram encaminhados ao governo desde a eleição de Emmanuel Macron, que nunca respondeu aos desafios”, denuncia o texto, apontando as estruturas deficientes nesses alojamentos e o número reduzido de profissionais da área de saúde à disposição como as principais razões do elevado número de mortos – quase 8 mil – entre seus moradores pela Covid-19.

DE SUFOCO EM SUFOCO

A antiga sede de L’Humanité em Saint-Denis: obra de Niemeyer Foto: info-tours.fr

Na longa e penosa luta pela sobrevivência econômica de L’Humanité, um dos momentos mais duros ocorreu em 2008, quando o jornal foi obrigado a vender sua sede histórica na cidade de Saint-Denis, ao norte de Paris, para saldar dívidas. O belo prédio envidraçado, com linhas curvas, projetado por Oscar Niemeyer, havia sido inaugurado em 1989 e acabou sendo vendido ao governo francês por 12 milhões de euros. A obra do arquiteto brasileiro era mais uma homenagem dele, em concreto armado, à causa comunista. Com uma proposta editorial assumidamente ativista, a publicação sempre enfrentou o desafio de se viabilizar economicamente, pois mantém distância do poder financeiro e industrial. Depende dos assinantes, da comercialização em banca, das campanhas de apoio cultural e das doações. Também conta com a visibilidade de um dos eventos mais populares da França, a Fête de l’Humanité, também conhecida como Fête de l’Huma. Realizada anualmente desde 1929, no segundo final de semana de setembro , essa grande e diversificada festa  reúne mais de 600 mil pessoas, com atrações variadas, de debates e exposições a concorridos espetáculos musicais. Nomes como o de Joan Baez e Leonard Cohen, além da banda Pink Floyd, já se apresentaram nesse megaevento.

O valor da pluralidade de ideias, tão caro à boa parte da sociedade francesa, também explica a longevidade de L’Humanité e ficou evidenciada, novamente, no início da última campanha de arrecadação para ajudar a sobrevivência da publicação, que gerou cerca de 1 milhão de euros apenas nos dois primeiros meses de 2019. Figuras públicas de diferentes áreas e políticos de todas os espectros ideológicos, inclusive da direita, manifestaram publicamente o apoio ao jornal, como  o deputado Aurélien Pradié, secretário geral dos conservadores Republicanos, que fez assinatura do jornal e conclamou outras pessoas a fazerem o mesmo – algo impensável em outros países.

A LUTA CONTINUA NO PÓS-CORONAVÍRUS

Edição número 704 da revista semanal L’Humanité Dimanche, de 16 a 22 de abril de 2020

Atualmente, a circulação média da edição impressa no formato berliner – um pouco maior que o tabloide – atinge cerca de 40 mil exemplares. Além do diário e do site, a equipe é responsável pela revista semanal L’Humanité Dimanche e muitas outras publicações especiais e de debates. Na edição de dia 16 de abril, dois dias antes do aniversário do jornal, o diretor de redação, Patrick Le Hyaric, reafirmou, no editorial 116 anos: mais útil que nunca!, os compromissos históricos da publicação e sinalizou seus principais objetivos no atual cenário mundial:

Neste período excepcional, com uma crise de saúde que funciona como uma crise de sentido e quando uma feroz luta pelo futuro começa, nosso papel assume uma nova dimensão. É através da combinação de um trabalho jornalístico exigente e da preocupação constante pela reflexão que queremos fazer um trabalho útil. Verdade seja dita, não temos realmente uma escolha. O desastre está à espera e nos compele. O bem, a força de L’Humanité,  reside na comunidade daqueles que trabalham aqui, de seus leitores, de seus amigos, daqueles que colaboram conosco, de todos aqueles que desejam se comprometer a fazer surgir uma civilização melhor.

É a eles que nos dirigimos mais uma vez para que a L’Humanité possa viver, e com ela atuar nas lutas que nos são tão caras. Porque, de fato, é com “a realização da humanidade”como Jean Jaurès a proclamou , com o que chamamos de “objetivo comunista”, que trabalhamos ardentemente e apaixonadamente. É nesse sentido que abriremos nossas páginas nos próximos dias para pensadores e sindicalistas, líderes de associações, bem como escritores, artistas, trabalhadores informais e funcionários públicos para que eles estabeleçam sua visão para outro futuro.

Jean Jaurès, o criador do L’Humanité  Foto: Henri Manuel/Domínio Público/Wikimedia Commons

Essas contribuições vão esclarecer, enriquecer, alimentar debates, reflexões, ações para abrir caminhos para um novo futuro. Não queremos nos limitar ao ‘pós-coronavírus’, como somos comandados pelo poder, mas pensar nas maneiras e no projeto de ‘colocar o mundo no seu lugar’ , ajudando a fazer crescer os germes da emancipação que resistem, apesar de tudo, na nossa preciosa humanidade.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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