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Rubens Valente: “Bolsonarismo deturpa o passado para inviabilizar os atores do presente”

Por Mauro César Silveira

No conturbado quadro político brasileiro atual, a obra Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura adquire, cada vez mais, uma aguda importância. Depois de se impor como leitura essencial do abril indígena, o livro do jornalista Rubens Valente, lançado pela Companhia das Letras em 2017, repercute também na Europa. Em extenso artigo que o premiado repórter investigativo publicou, um mês atrás, na respeitada seção Dossier do jornal catalão La Vanguardia, as  ações criminosas do governo Bolsonaro na Amazônia, ameaçando também o presente e o futuro do planeta, são relacionadas com a trágica atuação da ditadura civil-militar brasileira contra nossos povos indígenas. Os incontestáveis dados apresentados no texto intitulado Flechas contra fusiles: el discurso golpista de Bolsonaro sobre la Amazonia inquietam a população do velho continente, sentimento que está crescendo na mesma proporção em que a maioria dos países se aproxima da chamada nova normalidade. Ainda está viva na memória dos europeus o artigo assinado pela jornalista Eliane Brum no El País Brasil – e replicado na versão impressa do jornal espanhol -, em outubro de 2018, alertando para as promessas de campanha do então candidato à presidência da República: sob o título Bolsonaro é uma ameaça ao planeta, a autora informava que o “candidato de extrema direita já anunciou medidas que vão abrir a Amazônia ao desmatamento“. Não deu outra.

Nesta entrevista, realizada pelos meios eletrônicos, como convém aos tempos de Coronavírus – inquiridor em Sevilha, na Espanha, e inquirido em Brasília -, Rubens Valente discorre sobre seu método de trabalho para produzir a sólida obra Os fuzis e as flechas, que abarca um período de 21 anos, as relações entre jornalismo e história e o momento atual do país. Não tergiversou em nenhum instante. Foi  direto ao ponto: “Você olha para essas figuras do governo de Jair Bolsonaro, seus familiares, os generais que o auxiliam no governo. Se tem uma coisa que os une é a profunda ignorância, a imensa distorção, a deliberada destruição do conhecimento acumulado sobre todos os fatos históricos sobre os quais eles falam, do Holocausto à ditadura militar brasileira.” Colunista do UOL desde março passado, ele revelou, antes da entrevista, que pretende retomar a questão indígena em breve, lançando a sequência de Os fuzis e as flechas, abordando agora o período que se estende da redemocratização do Brasil ao governo Bolsonaro. No diálogo a seguir, suas respostas oferecem valiosas lições de jornalismo e história como esta: “A história não é uma coisa velha esquecida na prateleira, ela é termômetro vivo do presente e uma bússola para o futuro. Essa é a beleza dos livros de história, dos livros-reportagens que tratam do passado, eles podem ser um diálogo real com o leitor contemporâneo, podendo produzir efeitos concretos na realidade.

J&H – Quais são os maiores desafios que você enxerga quando o jornalismo decide remexer a história?

Rubens Valente – Começo pelo risco de ser injusto com os personagens. Acho que o principal desafio de alguém que escreve sobre o passado é conseguir falar sobre as coisas tal qual aconteceram, ser fiel aos fatos, ainda que amargos, e ao mesmo tempo apontar as motivações e justificativas daquelas pessoas. Isso nem sempre é possível porque as motivações muitas vezes não ficam claras, não foram documentadas, não aparecem em um testemunho da época, por exemplo. E por mais que existam coisas assim, haverá sempre uma penumbra, uma incerteza. Não quero, com isso, dizer que nosso papel é justificar atos. Mas creio que inclui procurar as possibilidades que o personagem tinha ao seu alcance naquele determinado momento. Para mim, esse é o verdadeiro e enorme desafio. Um livro-reportagem é diferente de uma biografia, na qual necessariamente o autor mergulha na psiquê do seu biografado. Acho que o livro-reportagem tem, de um modo geral, uma característica, vamos dizer assim, mais panorâmica, mais narrativa, mais geral, ao contar uma história. De qualquer forma vale a regra de que quanto mais próximo chegamos do contexto real da época, das opções em jogo, do ambiente em que aquela pessoa estava inserida, mais perto chegamos da suposta “verdade histórica”. Nem sempre é possível, mas deixar de tentar é o pior que podemos fazer.

Um segundo ponto ligado ao mesmo tema é a narrativa que os documentos permitem fazer sobre um fato. Todos que lidam com documentos produzidos na ditadura militar sabem disso, eles podem ser a redenção e, ao mesmo tempo, o inferno de um jornalista ou de um historiador. Redenção porque podem trazer aquela informação que faltava na narrativa de um evento. Inferno porque não sabemos ao certo como aquele papel foi produzido, por que ele foi produzido e principalmente se ele foi produzido com alguma intenção oculta, não republicana, com objetivos ideológicos. Por isso é muito importante jamais tomar um documento da ditadura como uma verdade irrefutável. Ele tem que ser visto dentro de um conjunto de elementos. Se o que ele está dizendo é corroborado de alguma forma, aí sim temos um pedaço importante da realidade.

J&H – No caso de uma obra monumental de 520 páginas, como Os fuzis e as flechas, abordando todo o período da ditadura, qual foi a tua maior dificuldade?

Rubens Valente – Foram muitas as dificuldades. Primeiro que envolvia um período largo de 21 anos de acontecimentos. O país tem mais de 300 povos indígenas, cada um com a sua própria história, o que me obrigou a escolher certas histórias e deixar de fora outras. Ter deixado de incluir no livro alguns povos indígenas que tiveram histórias marcantes durante a ditadura, como os avá-canoeiros de Goiás, por exemplo, me deixou muito contrariado, comigo mesmo estou dizendo, pois as decisões foram minhas, mas infelizmente eu não encontrei outro caminho. Pretendo retornar a essas histórias que ficaram de fora, imponho isso como uma meta. Talvez uma segunda edição ampliada ou um segundo volume sobre o mesmo período histórico. Essa parte, ter que cortar alguns eventos, foi a mais difícil para mim.

Mas a maior dificuldade, do ponto de vista da execução do livro, para não fugir da sua pergunta, foi realmente encontrar uma linha narrativa minimamente lógica, uma coerência, que impedisse o livro de se tornar uma enorme colcha de retalhos. Depois de muito quebrar a cabeça, achei que não havia outra linha possível senão a cronológica. É o passar do tempo que une os diversos capítulos e histórias. Não sei se fui feliz nessa escolha, mas realmente foi a única que encontrei. Eu não consegui encontrar um elemento em comum entre as diversas histórias porque elas são muito variadas em causas, efeitos e personagens.

“Um dos objetivos fundamentais do jornalismo não é a maior aproximação possível da verdade? Então por que o jornalismo aceita passivamente quando um político distorce e mente sobre a história do seu próprio país?”

J&H – O repórter em quadrinhos Joe Sacco já declarou que considera o jornalismo o primeiro degrau da história. Ele também vê como imprescindível oferecer uma perspectiva histórica na produção de suas reportagens. Qual, na sua opinião, a importância do passado para quem narra fatos do tempo presente?

Rubens Valente – Achei curioso você mencionar Joe Sacco porque nas minhas viagens para o livro algumas vezes me ocorreram as obras dele. Eu teria gostado muito de ter “um repórter em quadrinhos”, como você definiu, como parceria nessas andanças porque tenho certeza de que resultaria em uma segunda obra. Ouvi histórias impressionantes, mas não sei se as palavras que usei no livro foram suficientes para verdadeiramente aproximar o leitor dos fatos.

Valente: “Um país também é o que foi” Foto: Bruno Santos

Sobre sua pergunta, certa vez ouvi uma frase que foi atribuída a Sigmund Freud. Eu não sei se realmente é dele, acabou que nunca conferi, mas é uma das melhores frases que já ouvi na vida. Ele teria dito basicamente que “você é o que você foi”. Está aí encerrado tudo o que se pode dizer sobre a relação entre passado e presente. Um país também é o que foi. Marechal Rondon usava a ideia positivista de que “os mortos governam os vivos”. Mesmo que seja uma obviedade, precisamos sempre que possível repetir que somos o produto de uma longa experiência de erros e acertos, de vitórias e derrotas, então nada mais correto, nada mais esperado, nada mais necessário do que olhar cuidadosamente o passado para rever tudo o que foi feito de mais relevante, tirar dali os acertos e procurar não repetir os erros. Só assim avançamos. A história não é uma coisa velha esquecida na prateleira, ela é termômetro vivo do presente e uma bússola para o futuro. Essa é a beleza dos livros de história, dos livros-reportagens que tratam do passado, eles podem ser um diálogo real com o leitor contemporâneo, podendo produzir efeitos concretos na realidade.

O sentido contrário também é real: quanto menos conhecemos o passado, menos damos respostas corretas para os desafios do presente. Você olha para essas figuras do governo de Jair Bolsonaro, seus familiares, os generais que o auxiliam no governo. Se tem uma coisa que os une é a profunda ignorância, a imensa distorção, a deliberada destruição do conhecimento acumulado sobre todos os fatos históricos sobre os quais eles falam, do Holocausto à ditadura militar brasileira. Toda vez que eles se dirigem ao passado vem junto um monte de enganos e mentiras. Como quando o vice-presidente Hamilton Mourão disse que os brasileiros herdaram a “indolência dos indígenas”. Ora, as batalhas que simplesmente fundaram a ideia de um Exército Brasileiro, as dos Guararapes, no século 17, depois transformadas em nada menos que no Dia do Exército comemorado até hoje em todos os quartéis brasileiros, foram vencidas com o apoio determinante de indígenas brasileiros. Eles derramaram o sangue pela unidade do território nacional. Por que Mourão, que se diz um militar nacionalista, prefere falar de suposta indolência como herança e não da herança patriótica trazida pelo sangue indígena derramado em nome de uma ideia de país? A jogada é essa: o bolsonarismo deturpa o passado para inviabilizar os atores do presente, procurando tirar todo o seu crédito. Assim, se o índio “não fez nada pelo Brasil, é um indolente”, então “para quê tanta terra para eles?” O mecanismo de negação da história é o mesmo da negação dos direitos dos povos indígenas que vieram com a Constituição Cidadã de 1988 – da qual Mourão, aliás, é um feroz crítico. A negação do passado desemboca na negação dos direitos indígenas.

E aqui entra de novo o jornalismo. Um de seus objetivos fundamentais não é a maior aproximação possível da verdade? Então por que o jornalismo aceita passivamente quando um político distorce e mente sobre a história do seu próprio país? Se a correção não pode ser feita no exato momento em que a mentira é proferida, cabe ao jornalismo voltar a essa mentira imediatamente, tão logo seja possível. Não é o que estamos vendo na maior parte das vezes, infelizmente. Por exemplo, Bolsonaro repetiu várias vezes que o então presidente João Goulart foi destituído pelo Congresso Nacional e que os militares foram “chamados” para a intervenção. É o tipo de mentira que, repetidas inúmeras vezes, acaba ganhando contorno de verdade. Por que ele nunca foi corrigido a respeito em horário nobre das TVs? O Congresso declarou o cargo vago em 2 de abril de 1964, mas a movimentação das tropas de Olympio Mourão e a traição de Amaury Kruel haviam ocorrido entre os dias 31 de março e 1º de abril. Portanto, foi um golpe inequivocamente militar (cuja ditadura posterior virou civil-militar), que emparedou Goulart. Ele só cedeu e deixou o cargo, conforme testemunham seus mais próximos colaboradores, porque queria evitar uma guerra civil no país. Só daí veio a sua destituição pelo Congresso – aliás, em um ato ilegal, pois ele ainda estava em território nacional quando veio a decisão do Congresso. As mentiras têm que ser atacadas a todo tempo, desmontadas e expostas.

“Nos anos 60, 70 e 80 quem lançou a pesada mortalha sobre as mortes dos indígenas no país foram os militares brasileiros. E até nisso o governo Bolsonaro macaqueia o passado. Basta ver a ordem atual de que os números de mortos pela pandemia do novo coronavírus tenham sua importância reduzida ou sejam mesmo eliminados da comunicação do governo federal, que passa a privilegiar o número de ‘brasileiros recuperados’ da doença.”

J&H – No início de Os fuzis e as flechas, as esclarecedoras entrevistas com o ex-funcionário do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), Antonio Cotrim Soares, e o sertanista Afonso Alves da Cruz, confirmam a morte de cerca de 40 indígenas Kararaô na região de Porto de Moz, no Pará, na primeira e trágica expedição do regime militar visando contato com tribos indígenas. Mas você expõe as duas versões distintas das fontes sobre a causa da mortandade, atribuída a uma epidemia de gripe ou sarampo. Mais importante que apontar o foco transmissor da doença que vitimou os indígenas, sem dúvida, foi atestar a lamentável consequência do contato com os brancos da expedição. A opção por deixar os depoimentos fluírem na narrativa tem a ver com a transparência do teu método de trabalho investigativo?

Rubens Valente – Sem dúvida foi uma decisão consciente pontuar para os leitores os fatos sobre os quais eu mantinha e ainda mantenho dúvidas e que julguei mais relevantes. Fatos descritos no livro se passaram há 40 anos, 50 anos, e muitas vezes tive que me valer da memória das pessoas que os viveram. A memória, como sabemos, é traiçoeira. Muitas vezes não é que as pessoas mentem, simplesmente relatam algo que julgam ter vivido. Essa diferença é importante. Hoje na criminologia se discute muito o fenômeno das “falsas memórias”. Não é que a pessoa tenha fabricado uma mentira, ela simplesmente relata aquilo que ela acredita que aconteceu, segundo sua memória.

Daí redobrei o cuidado a checagem sobre alguns eventos, procurei ir ao limite possível, mas infelizmente muitas vezes não consegui chegar a um denominador comum. Em alguns dos casos, isso é muito importante observar, um dos problemas foi a absoluta ausência de documentação histórica à disposição dos pesquisadores. Daí que utilizo a expressão “ocultação da história” como uma prática da ditadura militar no trato de alguns eventos que envolveram as mortes entre povos indígenas. Ficou claro para mim que havia todo um cuidado para esconder, minimizar, relativizar. Precisamos lembrar que a imprensa estava sob censura estatal, em especial a partir de 1968. É preciso dizer que essa estratégia deu resultado. Sobre muitos desses eventos baixou uma nuvem de silêncio, que se perenizou ao longo das décadas. É por isso que usei uma epígrafe de Machado de Assis: “Inúmeras, no mar da eternidade / As gerações humanas vão caindo; / Sobre elas vai lançando o esquecimento, / A pesada mortalha”.

Nos anos 60, 70 e 80 quem lançou a pesada mortalha sobre as mortes dos indígenas no país foram os militares brasileiros . E até nisso o governo Bolsonaro macaqueia o passado. Basta ver a ordem atual de que os números de mortos pela pandemia do novo coronavírus tenham sua importância reduzida ou sejam mesmo eliminados da comunicação do governo federal, que passa a privilegiar o número de “brasileiros recuperados” da doença.

J&H – Aliás, ao longo do livro, a transparência do teu método de apuração sobressai, página após página, incluindo as indispensáveis notas de cada um dos 27 capítulos e do epílogo, mesmo quando, eventualmente, todos os esforços despendidos não conseguem elucidar uma determinada trama. Fica evidente que isso confere alta credibilidade ao trabalho, reconhecido inclusive por pesquisadores da área da história. A transparência não costuma ser habitual no jornalismo brasileiro, como sabemos, mas você não acha que deveria ser a principal marca da reportagem, um requisito básico mesmo, distanciando-se dos relatos meramente declaratórios ou apressados que costumam desembocar nas chamadas fake news?

Autor ouvindo o Cacique Pedro Xavante da aldeia Água Boa em Mato Grosso Foto: Renan Carvalhaes

Rubens Valente  – Acho que um autor, ao discutir com o leitor seus achados e suas dúvidas, engrandece seu próprio trabalho. Entendo um livro como um diálogo com o leitor, eu torço para que ele participe do que estou tentando dizer, que reflita e concorde ou não com as minhas conclusões. A tentação é entregar todas as respostas, é assim que um jornalista é ensinado a proceder, mas quando essas respostas não existem, ou existem precariamente, não há nada a fazer senão apresentar bem claramente ao leitor tudo o que temos e o que não temos, mostrar os limites do trabalho. Sempre friso isso, o que eu fiz foi simplesmente um livro-reportagem, um pequeno tijolo dentro da história maior dos povos indígenas no Brasil, então não tenho nem nunca tive a pretensão de encerrar esses fatos. Muitos deles estão aí abertos à investigação, podendo ser lapidados e melhor explicados a qualquer momento. É, aliás, o que eu verdadeiramente espero, que esses fatos não sejam esquecidos, mas continuamente avaliados.

J&H – Algumas informações preciosas, como as graves falhas dos agentes da Funai nos contatos com os parakanã, em 1971 e 1972, responsáveis por muitas mortes dessa etnia, foram obtidas no Arquivo Nacional. Como foi o trabalho lá? Como você encontrou a estrutura do órgão e o acesso ao acervo?

Rubens Valente – O setor do Arquivo Nacional em que trabalhei foi na coordenação regional da instituição, em Brasília. Estavam aqui as caixas entregues a partir de 2007 pela Funai e pelo Ministério da Justiça relativas à ditadura militar e que pude analisar e fotografar, página por página (as que mais me interessaram), por semanas a fio. O apoio da coordenação regional do AN foi fundamental para o meu trabalho. Sempre tive o respaldo dos servidores do AN. O principal acervo que consultei, hoje denominado ASI-Funai (Assessoria de Segurança e Informações), e que na época da pesquisa para meu livro era ainda pouco manuseado, é tão importante para o país que foi escolhido, no final de 2018, para compor o Programa Memória do Mundo da UNESCO.

Ao longo dos últimos anos, o Arquivo Nacional conseguiu escanear acredito que quase todos os documentos desse acervo e os inseriu na base maior conhecida como Acervo da Ditadura, que reúne documentos fundamentais sobre a ditadura militar. Hoje estão disponíveis para consulta na internet na base de dados SIAN. Basta fazer um cadastro para a consulta.

“Não há nada que exponha mais o caráter de uma pessoa do que ver como ela trata um ser humano mais fragilizado e vulnerável. Foi no trato com o índio, com o negro escravizado, com as minorias, que os brasileiros mostraram o seu verdadeiro rosto.”

J&H – Não há dúvida que o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) representou um forte aliado na luta dos indígenas contra a invasão e exploração de suas terras. Mas o órgão parece ter perdido força nos últimos anos. Lideranças históricas, como os bispos Tomás Balduíno, falecido em 2014, e Pedro Casaldáliga, que você entrevistou em 2013 e já padecia do Mal de Parkinson, tendo dificuldade para andar e falar, saíram de cena. Com quem os indígenas podem contar hoje em dia?

Rubens Valente  – Apesar de todo o cenário atual desfavorável, a grande notícia é que o movimento indígena está vivo e dinâmico talvez como nunca na história do país. O CIMI e outras organizações indigenistas, como o ISA (Instituto Socioambiental), a Comissão Pró-Índio, a INA (Indigenistas Associados), o CTI (Centro de Trabalho Indígena), a Survival International, o Greenpeace, entre muitos outros, enfim, um grande leque de ONGs continua a dar suporte ao movimento indígena, em maior ou menor grau e com maior ou menor eficácia. O CIMI continua sendo um parceiro importante para os indígenas, ainda que não receba muita visibilidade. Mas são os indígenas hoje que estão na ponta desse processo, cada vez mais ocupando seus espaços com novas lideranças e associações cada mais vez mais articuladas, como a APIB, a Foirn, o CIR, o Instituto Raoni. Eles se comunicam muito pelo telefone, usam muito o aplicativo whatsapp, estão nas redes sociais, vão aos meios de comunicação, promovem passeatas e protestos, promovem o grande encontro indígena anual, a ATL (Acampamento Terra Livre), em Brasília. Hoje a luta indígena é, em grande parte, desenvolvida dia a dia pelos próprios indígenas, e essa é uma excelente notícia.

J&H – Os assassinatos do padre João Bosco Burnier, que atuava no Cimi do Mato Grosso, em 1976, e do líder Marçal de Souza, da etnia guarani-ñandeva, em 1983, que “foi alçado à galeria da vergonha da impunidade no país”, como você bem escreveu, assim como muitos outros crimes, continuam sem esclarecimento. Qual o peso da impunidade nos massacres que se perpetuam contra a população indígena do Brasil?

Rubens Valente – A história dos povos indígenas é parte indissociável da nossa própria história, dos não indígenas, da aventura dos imigrantes europeus nessa parte do mundo nos últimos 520 anos. Ver como uma dita “civilização” mais armada e mais numerosa, com recursos abundantes, com a audácia suficiente para todo tipo de cometimento de crimes, tratou uma população diferente, menos equipada do ponto de vista tecnológico, é extremamente revelador sobre o nosso próprio rosto. Não há nada que exponha mais o caráter de uma pessoa do que ver como ela trata um ser humano mais fragilizado e vulnerável. Foi no trato com o índio, com o negro escravizado, com as minorias, que os brasileiros mostraram o seu verdadeiro rosto. Por isso que quando olhamos para os indígenas estamos olhando para nós mesmos: para nossa vergonha e, por que não, nosso orgulho também, na forma das políticas indigenistas implantadas a duras penas ao longo de décadas, como a demarcação das terras indígenas, hoje atacadas pelo governo, por ruralistas e por políticos, principalmente do Norte e do Centro-Oeste.

J&H – Tua obra descortina um quadro aterrador da população indígena brasileira durante a ditadura, provocado por uma ação governamental desastrosa, tanto na época do antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) como na sua sucedânea, a Funai (Fundação Nacional do Índio), o que levou o etnólogo francês Jean Chiappino, que esteve entre os suruí em 1972, a defender o uso da “palavra precisa” genocídio para definir a situação. Mas você termina o livro com um tom esperançoso, lembrando que a tenaz resistência de muitas tribos, foi responsável pela retomada do crescimento populacional indígena, que quase dobrou entre os anos 1980 e 2000, chegando a aproximadamente 400 mil pessoas. Qual a sua impressão hoje? Afinal, depois de agressões recentes aos direitos dos índios, como a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, assistimos, perplexos, ações  do governo atual, como a demissão do diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Olivaldi Borges Azevedo, por desencadear uma operação contra garimpos ilegais em áreas indígenas do Pará, como você noticiou na sua coluna no UOL no mês indígena (abril), e a conivência, para dizer o mínimo, ao avanço crescente da mineração em território yanomami, em Roraima, ameaçando tribos isoladas em tempos de pandemia, como já denunciou o ISA (Instituto Socioambiental).

Rubens Valente – Eu sou daqueles que prezam muito a força de cada palavra. Acredito que temos de ter muito cuidado com a palavra genocídio porque seu uso indevido pode banalizá-lo. Se a usamos para toda e qualquer circunstância, quando for realmente necessária pode já não ter a força indispensável. Naquele contexto dos suruís, no começo dos anos 70, era a palavra correta, pois a depopulação era imensa, num processo veloz, como podemos ver pelos depoimentos e documentos da época. Chiappino percebeu que era a única expressão a ser usada e o fez, acredito eu, de forma muito decisiva. Tanto que o governo militar ficou bastante incomodado.

Feita essa ressalva, é extremamente revelador, indicador de uma realidade, que a palavra genocídio volte a ser usada com frequência hoje em dia, durante o governo de Jair Bolsonaro. A palavra está em manifestos de indígenas, indigenistas e antropólogos e já frequenta diversas manifestações de membros do Ministério Público Federal. Por que isso está acontecendo?

Entre os anos 60 e 70, não era nenhum exagero dizer que os indígenas corriam o risco de um genocídio. Eram apenas talvez 200 mil, quando já tinham sido de 5 milhões a 6 milhões, e enfrentavam um duro ataque para o processo de “assimilação” à sociedade envolvente, um esforço permanente dos militares na ditadura. Assimilar, naquele contexto, era extermínio. Essa realidade foi mudando, como procurei contar no epílogo. De fato quase todas, ou talvez todas, as etnias brasileiras experimentaram um período de estabilidade e, depois, de ampliação de sua população. O marco fundamental desse processo não foi na ditadura, foi na democracia civil, com o advento da Constituição de 1988 que permitiu a demarcação pela Presidência da República de centenas de terras indígenas. A partir daí, o processo de reconstrução populacional dessas comunidades encontra uma base sólida no território, onde seus modos de vida podem ser desenvolvidos. É sempre importante lembrar essa obviedade: a garantia do acesso à terra impediu que o índio morresse no Brasil. Ao mesmo tempo, outros grupos que não conseguiram ampliar seus territórios de forma a garantir uma vida mais digna, como os guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, continuam a enfrentar riscos sérios à sua sobrevivência. Para o índio, mais terra é mais vida e menos terra é mais morte, são coisas indissociáveis. Sem terra suficiente, espremidos, os guarani-kaiowá vivem hoje uma tragédia pavorosa, um dos maiores atentados aos direitos humanos no país e no mundo.

Pois bem, aos trancos e barrancos, bem ou mal, assim chegou a política indigenista no país a 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a Presidência. A partir de então, a AGU, o Ministério da Justiça, a Funai se converteram em adversárias dos índios que pretendem o acesso às suas terras. Acusam-nos como “invasores”. Usam um parecer que fala de um “marco temporal” que não encontra respaldo na Constituição, é só uma tese jurídica que ainda nem foi votada pelo Supremo Tribunal Federal, segundo a qual os indígenas que não estavam sobre suas terras em outubro de 1988 não podem mais reivindicá-las, nunca mais.

Além disso, o enfraquecimento dos órgãos de controle e fiscalização ambiental, o descrédito das verdadeiras lideranças indígenas, o estímulo à cisão dentro do movimento indígena, a promessa de abertura das terras indígenas à mineração e ao agronegócio e, por fim, o descontrole da pandemia do novo coronavírus. Esse conjunto de fatores, motivados  todos eles pelo presidente da República e seu grupo político, incluindo militares da reserva e da ativa, é que trouxe de volta à baila a palavra genocídio. Infelizmente, nesse cenário ela cada vez mais faz mais sentido e é empregada cada vez mais de forma apropriada. 

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