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Amores, cocaínas, tangos e moléstias

Enervadas, de Madame Chrysanthème, é uma crítica à vida tediosa da mulher burguesa dos anos 1920

Por Natália Huf

No perfil sobre Madame Chrysanthème, também publicado aqui no Jornalismo & História, Mauro César Silveira diz que “se pudesse, ela não assinaria seus textos como Chrysanthème”. De fato, a narrativa feminista e moderna de Enervadas, de 1922, não deveria precisar ter sido assinada por um pseudônimo. Infelizmente, Maria Cecília Bandeira de Melo Vasconcelos, a mulher por trás do nome, assim como a protagonista Lúcia, viveu em uma época em que o sexo feminino estava destinado a ocupar apenas as funções de esposa, dona de casa e mãe.

Escritora e jornalista, Chrysanthème escreveu mais de 15 livros, inúmeras crônicas e artigos em periódicos. Sua produção permeia os campos do romance, do teatro, do conto e tantos outros gêneros literários, mas, ainda assim, sua voz não é reconhecida pela literatura brasileira. O apagamento de seu nome pelo pseudônimo que escolheu para si precedeu o apagamento de sua presença na tradição literária do país.

Felizmente, em 2019, essa voz foi resgatada com a publicação de Enervadas. Lançado pela Editora Carambaia, o livro teve uma tiragem de somente mil exemplares, e está esgotado das prateleiras de livrarias brasileiras por sorte, segue disponível em edição digital. Antes da publicação pela Carambaia no ano passado, um único exemplar existia no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro; o outro, que fazia parte do acervo da Biblioteca Nacional, também no Rio, desapareceu.

A prosa fluida e divertida de Chrysanthème faz de Enervadas um livro impossível de largar antes de chegar ao fim das suas 168 páginas. Nossa história começa quando Lúcia, aos 30 anos (embora só admita 26, afinal, ser sincera sobre sua idade seria um “crime antifeminino”!), encontra-se acometida por uma misteriosa moléstia. O médico a visita em casa e declara que a paciente é, sem dúvida, uma “enervada”. Mas, afinal, o que é uma enervada?, ela se pergunta e, para mostrar a esse médico que ele “não entende nada de moléstias femininas”, decide escrever suas memórias.

Tanto Chrysanthème quanto sua personagem Lúcia viveram a chamada “Belle Époque tropical”: a influência europeia, especialmente francesa, dominava as grandes cidades brasileiras, e a então capital da República era o principal palco das transformações inspiradas pela modernidade parisiense.

Lúcia se lembra imediatamente do aniversário de 15 anos, um dia pelo qual estava ansiosa e que representou, simultaneamente, a chegada de sua mocidade e o assombro da velhice em sua mãe. Alegando estar doente, ela não permitiu que as amigas da filha aparecessem para o lunch que Lúcia planejara. Poucos meses depois, a morte da mãe muda a vida de Lúcia, que deixa de estudar no colégio onde aprendia o francês e as danças da moda e passa a ser educada em casa. A “alma danada” da menina com tanto tempo livre representa uma afronta para suas tias, enquanto Lúcia se dedica a receber as amigas, dançar e apreciar as flores do jardim de sua casa. Mas, mesmo na juventude, ela já sofria de um mal desconhecido: passava dias sentindo-se muito triste, fechada no quarto, para, de repente, voltar a sentir-se viva e bonita e retomar suas atividades.

É por meio da dança que ela começa seu flerte com Júlio de Azevedo, excelente dançarino de tango, shimmy e fox-trot. Inebriada pelo perfume dos jasmins do jardim, é ela quem dá o primeiro passo: encosta o braço nu na manga do paletó do homem que ela tem certeza de que está destinado a ser seu marido. Para a felicidade de Lúcia, Júlio não fala em casamento, porém, o pai da moça não pensa da mesma forma e os induz a firmar o compromisso. O primeiro beijo trocado entre os dois “frouxo, sem sabor e inexpressivo” é um presságio para o que vem adiante: basta a viagem de lua-de-mel para que Lúcia perceba que, apesar de bom parceiro de dança, Júlio é um péssimo esposo.

Ilustração de capa dá ênfase às flores, que são quase personagens da narrativa Imagem: Editora Carambaia/Divulgação

O arrependimento da protagonista cresce e cresce, até deixá-la inerte. De jovem cheia de vida, alta, esbelta e com “olhos de gata”, Lúcia transforma-se em uma mulher apática, que fecha as portas de sua casa para as visitas e também fecha-se para o mundo. O casal dorme em quartos separados na casa do pai de Lúcia, onde moram e não contribuem com as despesas. A cada dia, ela se vê mais certa da “tragicomédia social” que é a instituição do casamento e percebe em si mesma um “vácuo da existência”, que tenta preencher com pequenos flertes escapistas ou com a paixão arrebatadora e impossível pelo jovem padre Jerônimo dos Reis, filho de um antigo amigo de seu pai, recém chegado ao Rio de Janeiro.

Tanto Chrysanthème quanto sua personagem Lúcia viveram a chamada “Belle Époque tropical”: a influência europeia, especialmente francesa, dominava as grandes cidades brasileiras, e a então capital da República era o principal palco das transformações inspiradas pela modernidade parisiense. A literatura, como apontam os pesquisadores José Pedro Toniosso e Mariângela Alonso no artigo “Chrysanthème: perspectivas histórico-literárias na Belle Époque brasileira”, “cumpria o papel de ser a difusora do espírito da Belle Époque, um veículo de comunicação presente nos salões, confeitarias, livrarias, cafés e redações de jornais e ao mesmo tempo, fazia apologia do progresso e criticava a decadência moral e social dos novos tempos” (grifo nosso).

O realismo de Chrysanthème em Enervadas nos apresenta mulheres da alta sociedade do Rio de Janeiro, entediadas com a vida burguesa que não lhes oferecia grandes desafios. As amigas de Lúcia têm, a cada semana, um amor diferente — Laura, por homens, e Maria Helena, por mulheres —; usam tóxicos como morfina e cocaína, como Magdalena; ou decidem resignar-se ao casamento e ter múltiplos filhos, como Margarida. No posfácio ao livro, a professora da UFRJ, Beatriz Resende, afirma que um dos motivos pelos quais Chrysanthème foi apagada da história da literatura foi o “conservadorismo em torno dos costumes que dominou sobretudo o literariamente ousado e sexualmente casto modernismo, em especial o paulista”.

A imagem de mulher que Chrysanthème apresenta em Enervadas é a de uma mulher para a qual a sociedade da época não estava preparada. As personagens são, acima de tudo, humanas, com desejos, sentimentos e ideias próprias, que sofrem do que Betty Friedan chamou de “problema sem nome” no clássico A mística feminina.

Entre as outras obras da autora estão Gritos femininos (1922), Vícios modernos (1925) e Matar! (1927), títulos provocantes e curiosos, ainda mais ao serem assinados por um pseudônimo feminino. “Literatura que procura o grande público, que lança o choque para chegar aos leitores, impelindo-se sob o rótulo de moderna, que imagem da mulher e de linguagem nos fornece em seu espelho de palavras?”, questiona a pesquisadora Rosa Gens no artigo “Cecília Vasconcelos e as modernas mulheres: a figuração de Chrysanthème” (grifo nosso).

A imagem de mulher que Chrysanthème apresenta em Enervadas é a de uma mulher para a qual a sociedade da época não estava preparada. As personagens são, acima de tudo, humanas, com desejos, sentimentos e ideias próprias, que sofrem do que Betty Friedan chamou de “problema sem nome” no clássico A mística feminina (1963). A mulher que não se vê realizada no casamento, que tem horror à ideia de engravidar — quando Margarida aconselha Lúcia a ter filhos, ela olha para o próprio ventre e promete que ele continuará “para sempre perfeito” — amedrontava. Até hoje, quase cem anos depois, essa imagem feminina ainda assusta tantos homens e mulheres assim como Lúcia e suas amigas intimidavam Carlos, marido de Margarida: as “enervadas”, as mulheres que sabem o que querem e correm atrás de seus objetivos, que buscam em suas carreiras e na educação o sentimento de autorrealização são o oposto da feminilidade romântica e idealizada, ao contrário da definição apresentada ao final da primeira parte do livro de que a mulher enervada é “uma criatura sem vontade própria, joguete das suas sensações, incapaz de realmente sentir, sem objetivos e sem ideais, e de corpo e alma doentes, que lhe servem falsos anseios e lhe indicam falsos caminhos”.

Os onze capítulos que compõem a segunda parte da obra deixam no leitor uma sensação desconcertante após o teor feminista e contestador da primeira metade. Em forma de diário, Lúcia escreve suas “memórias modernas” do que lhe ocorre entre os meses de junho e dezembro de 1918. Alheia ao momento histórico, a guerra lhe parece muito distante. Ela está vivendo num apartamento na Rua do Catete, no “centro barulhento” do Rio de Janeiro, por onde já circulam automóveis; vendeu a antiga casa do pai, pois esta lhe trazia muitas recordações. Divorciada de Júlio, encontrou no advogado Roberto Toledo um amante que, como ela diz, mudou sua personalidade e exerce um certo domínio sobre ela.

Lúcia tenta se adequar à sociedade de sua época, ser uma mulher “normal”, e esse desejo só aumenta quando Roberto promete casar-se com ela quando Júlio porventura falecer. O divórcio no Brasil conferia apenas uma separação de corpos, e uma segunda união não era permitida enquanto o primeiro cônjuge fosse vivo — e essa legislação só mudou na década de 1970. Por algumas páginas, pensamos reencontrar a antiga Lúcia, quando ela é confrontada pela amiga Laura: “Que admirável homem que é o teu amante! Somente, minha querida, talvez ele nunca tenha ocasião de cumprir a sua promessa. Teu marido é tão moço! Que pena perder-se assim uma tão boa vontade masculina!”. As palavras da amiga são, primeiramente, vistas como inveja; em seguida, despertam uma dúvida na mente da protagonista. Mas, nessa busca incessante por deixar de ser aquilo que o médico chama de enervada, acredita nas palavras de Roberto e volta a crer na inveja de Laura, que, após ser abandonada pelo marido, nunca recebeu propostas de casamento: “Tu não és culpada de ser o que a vida, a educação, o casamento infeliz que contraíste te fizeram”, afirma o amante, crente de que a cura para a tal enervação estaria na monotonia do amor romântico entre um homem e uma mulher.

Lúcia ama o cheiro das flores e é sensível a ele. Os primeiros flertes com Júlio, com o padre Jerônimo e com outros homens com quem teve breves affairs tanto durante o casamento quanto depois do divórcio acontecem no jardim de sua casa, próximo ao jasmineiro. O perfume é forte e inebriante. A resignação final de Lúcia ao papel de esposa do advogado Roberto vem após o episódio em que ele contrai a gripe espanhola, epidemia que atingiu o Rio de Janeiro à época; imediatamente em seguida à melhora dele, quem fica enferma é ela. Quando sara da doença, Lúcia ainda sente uma certa repugnância pelos alimentos e os cheiros lhe fazem mal. Das flores que tanto amava e que sempre tinha em seus aposentos, só restaram as que não exalam perfume algum.

Quase um século se passou desde a escrita de Enervadas e, ainda assim, a leitura não poderia ser mais propícia ao nosso tempo. Embora Chrysanthème tenha sido censurada pelo cânone literário de sua época, o resgate dessa e de outras obras da autora configura uma adição importante à literatura brasileira, para ser lida e apreciada pelas nossas próprias enervadas do século XXI, para que nunca se aquietem e deixem de sentir o perfume das flores.

A resposta da autora de Enervadas na entrevista de uma pergunta só:

Está satisfeita com a sua profissão de escritora?

Na edição dominical da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, de 6 de fevereiro de 1938, a já prestigiada jornalista e escritora Chrysanthème respondeu assim, tão incisiva como na sua escrita, à única questão formulada pelo colega Asterio de Campos:

“Melancolicamente, declaro que, se escrever livros ou em jornais, constitui profissão aqui, no nosso Brasil, toda gente se acredita capaz de  borrar papel e de se julgar escritor profissional. Entretanto, o métier de intelectual é árduo entre nós e só não morrerá de fome ou não será despejado do prédio, aquele que acumular, não, ideias, mas empregos. Nesta linda terra, os livros não se vendem, dão-se, e os editores, com um sorriso amarelo nos lábios, recorrem à tradução de obras francesas afim de não falirem. E os infelizes autores nacionais, de olhos vesgos, destituídos e apreciados… pelos amigos íntimos. Lembro-me de um romance meu, intitulado Uma paixão, que valeu pouco dinheiro, mas muita descompostura pelo telefone, visto eu ter suicidado o herói, lindo jovem de idade verde. Atualmente, a profissão de escritor ou de jornalista já não é uma profissão, mas um meio elegante de chamar a atenção sobre si. E, quanto mais fútil é o assunto, tratado nos periódicos ou nos romances, mais aclamado será o seu autor…

“Chrysanthème em seu gabinete de trabalho” Legenda da foto que acompanhou a resposta da escritora na página 9 da Gazeta de Notícias de 6 de fevereiro de 1938

A mentalidade brasileira não gosta de se fatigar, perdendo-se em análises e observações sérias. Ela quer ser divertida, não, instruída. E, dessa forma, a chamada profissão literária transforma aquele que a esta se dedica numa espécie de bouffon do público. Todavia, ainda combatida e criticada, gosto muito de escrever.

E, noto, com uma certa ufania irônica, que várias senhoras e senhoritas me servem sempre a mesma frase: ‘Ah! Chrysanthème, você é a única escritora a quem eu confiaria a minha vida, afim de contá-la num dos seus livros!

Nesta cidade maravilhosa, não existem grandes, nem pequenos nomes. Todos que se dedicam às ideias, padecem decepções. Alguns conquistam glórias, elogios estimativos de colegas amáveis, mas nenhum ganha aquilo, com que os melões são comprados.

E, no entanto, ainda assim amo a literatura, e quando pego a pena e alinho meu papel, esqueço a minha pobreza, o invalor das palavras que traço e o mesquinho dinheiro que este trabalho me concederá. Uma dessas tardes africanas, e debaixo de um sol criminosamente flagelado, ouvi de certo editor lusitano e inteligente:

– Depois da sua morte, as suas obras obterão um sucesso formidável e serão vendidas carísssimas! Resta-me, pois, esta consolação.

Observando ainda o ceticismo no meu rosto, ele acrescentou, afetuoso:

– No Brasil, o escritor somente alcança sucesso quando morre, ou, quando rico, mistura a seu esforço mental, desses de… galanteria… melíflua e amorosa.”

 

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