História,  Jornalismo,  Resenha

Oito histórias de rebeldia do jornalismo independente em Florianópolis

Livro traz relatos de experiências desenvolvidas na capital catarinense com jornais, sites e rádios contra-hegemônicos ao longo de quatro décadas

Por Natália Huf

A foto de capa é de Rubens Lopes de Souza, e o projeto gráfico e diagramação são de Sandra Werle

A imprensa alternativa costuma nascer pela necessidade: sejam comunidades, organizações não-governamentais ou associações que não se veem representadas pela mídia hegemônica, elas precisam encontrar maneiras de fazer com que suas vozes sejam ouvidas. Se na era da cibercultura e da cultura pós-massiva, em que os pontos de emissão são tantos e tão acessíveis, ainda existe um forte silenciamento dos movimentos sociais por parte dos grandes veículos de comunicação, antes da internet, na era da cultura massiva, esse era um obstáculo ainda maior. Em Florianópolis, assim como em muitas outras cidades brasileiras, houve “rebeldes” que ousaram ocupar seu espaço na mídia, e algumas dessas histórias são contadas no livro A rebelião do vivido no jornalismo independente em Florianópolis, lançado no último 30 de outubro.

Organizada pela jornalista Míriam Santini de Abreu, a obra  é uma coletânea de oito relatos de experiências com jornalismo independente realizadas desde os anos 1980 na capital catarinense. Contra a corrente dos grandes jornais, essas publicações alternativas buscavam — e, no caso das que seguem em atividade, ainda buscam — valorizar as vozes das comunidades e bairros, das associações de moradores e movimentos populares. Lançado em transmissão no YouTube, o livro é uma produção da revista Pobres & Nojentas e da Letra Editorial.

As oito experiências relatadas possuem, como aponta a autora na apresentação do livro, “um denominador comum: fazer jornalismo que tem e assume lado e deixa para sabão o adjetivo de ‘neutro’ e para contribuinte da Receita o de ‘isento’”.

O título faz referência ao filósofo francês Henri Lefebvre, autor de A revolução urbana (1970), obra na qual escreve que o cotidiano é o campo de disputa entre as forças que querem dominar e as que desejam se apropriar do espaço. Para o primeiro grupo, o espaço é, portanto, uma mercadoria com valor de troca; já para o segundo, possui um valor de uso. Em entrevista à Folha da Cidade, Míriam diz que a ideia para a organização do livro surgiu durante a pesquisa feita para sua tese de doutorado na Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), “Espaço e cotidiano no jornalismo: crítica da cobertura da imprensa sobre ocupações urbanas em Florianópolis”, defendida em agosto de 2019: “Os veículos tradicionais, hegemônicos, são fartamente estudados, mas os independentes são, de modo geral, ignorados, apesar de cumprirem, em diferentes períodos históricos, um papel fundamental na visibilização das lutas populares”.

As oito experiências relatadas possuem, como aponta a autora na apresentação do livro, “um denominador comum: fazer jornalismo que tem e assume lado e deixa para sabão o adjetivo de ‘neutro’ e para contribuinte da Receita o de ‘isento’”. Enquanto o jornalismo hegemônico é movido pelo valor de troca, as publicações independentes, alternativas, contra-hegemônicas (ou outras denominações que possuam) querem dar ao jornalismo o valor de uso. As experiências relatadas são de veículos jornalísticos que andaram e andam junto aos movimentos populares e à luta que ficou conhecida em Florianópolis como “dos contra”: aqueles que eram críticos e se opunham aos projetos públicos e privados de intervenções urbanas feitas em nome do turismo.

“Denunciamos negociatas, as ações dos velhos políticos, fizemos forte oposição ao governo de Pedro Ivo, pedimos cadeia para Sarney, fechamos uma sucursal do esquadrão da morte carioca instalada na frente da UFSC”. Dario de Almeida Prado Júnior, que integrava o Conselho Editorial do jornal Bernunça

A primeira das histórias contadas na coletânea é a do Bernunça, jornal publicado pela primeira vez em junho de 1986. Quem faz esse relato é Dario de Almeida Prado Júnior, um dos quatro integrantes do Conselho Editorial da publicação. Em tempos de redemocratização, o Bernunça “procurava abordar assuntos nacionais, estaduais e municipais”, falando sobre política e aberto a colaboradores. Como afirma o autor, a provocação era uma constante: “Denunciamos negociatas, as ações dos velhos políticos, fizemos forte oposição ao governo de Pedro Ivo, pedimos cadeia para Sarney, fechamos uma sucursal do esquadrão da morte carioca instalada na frente da UFSC”, escreve Dario. O jornal era vendido no centro de Florianópolis, anunciado aos gritos, e o dinheiro arrecadado com as vendas era o que bancava a impressão seguinte. Além das matérias, o jornal publicava também charges e quadrinhos políticos. A última edição foi publicada em setembro de 1987, após o jornal sofrer um processo movido pelo então ministro da Ciência e Tecnologia do governo Sarney, Luiz Henrique da Silveira, que fez com que a “grana da impressão fosse destinada à nossa defesa”. As seis edições do Bernunça estão disponíveis para consulta no acervo da Biblioteca Estadual de Florianópolis.

Na sequência, o jornalista Jeffrey Hoff, estadunidense residente em Florianópolis, relembra a Folha da Lagoa, que teve o número zero publicado em primeiro de agosto de 1991. O jornal comunitário circulava na Lagoa da Conceição, na época ainda uma vila com pouco mais de sete mil habitantes, e começou a ser produzido após um comentário enviado por Hoff ao Diário Catarinense sobre o debate corrente em relação ao uso do horto do bairro Córrego Grande para a instalação de uma “tecnopólis”. Ao ser barrado da seção de cartas dos leitores devido à “posição diferente” do jornal, o repórter nova-iorquino se viu motivado a iniciar um jornal comunitário. Cadernos espalhados pelo bairro estavam à disposição dos moradores que quisessem sugerir pautas, fazer comentários ou deixar mensagens. O jornal era publicado quinzenalmente, em folhas brancas no tamanho A4, montadas com papel, tesoura, cola e esquadro. Hoff foi abertamente criticado pela mídia dominante florianopolitana, especialmente devido ao embate sobre a marina e o zoneamento da Barra da Lagoa, que lhe rendeu muitas críticas por figuras que ainda ocupam espaço na grande mídia catarinense, como o colunista Cacau Menezes, e até mesmo ameaças de deportação em nota não assinada no jornal de maior circulação em Florianópolis, o Diário Catarinense.

A árvore que dá título ao jornal é símbolo de Florianópolis Imagem: reprodução da capa da primeira edição do Guarapuvu, de agosto de 2002

No terceiro artigo, Ana Claudia Rocha Araújo conta a história do Guarapuvu, jornal do Fórum das Comunidades do Maciço, entidade de unificação das comunidades que integram o Maciço do Morro da Cruz. A primeira iniciativa de comunicação foi a criação de uma rádio comunitária, e a segunda, o “Varal comunitário”. Em agosto de 2002, foi publicada a primeira edição do jornal, em formato tablóide. O tamanho mudou nas edições seguintes, que saíram em dezembro do mesmo ano e em agosto de 2003. Uma das características da imprensa alternativa é a efemeridade, mas o Guarapuvu, com sua abordagem “de dentro para fora” do morro, atingiu tanto as comunidades que buscava representar quanto outros segmentos da cidade, contribuindo para trazer novos pontos de vista à histórias que antes só eram conhecidas por meio da mídia de massa.

A trajetória da Rádio Campeche é contada por Elaine Tavares. Fruto de organização comunitária, a Rádio fez suas primeiras transmissões, ainda na ilegalidade, em 1989, e está no ar há mais de vinte anos, atualmente com uma programação que foge ao padrão das emissoras comerciais. Não é de hoje que os moradores do bairro Campeche, no sul da Ilha, se mobilizam enquanto comunidade: desde as décadas de 1980 e 1990, discussões sobre o Plano Diretor de Florianópolis impulsionam a organização comunitária e a criação de veículos próprios do bairro. O primeiro foi o jornal Fala Campeche, impresso e distribuído no comércio local. Mas, no fim dos anos 1980, surgiu a Rádio, uma forma mais rápida de alcançar os moradores. As primeiras transmissões eram feitas na casa do jornalista Lucio Haeser, com equipamentos dele e de outros moradores do bairro, que se organizavam coletivamente para fazer “a voz da comunidade ressoar no bairro”. A legalização só veio em 2004, seis anos depois do pedido de concessão. Em 2019, o novo estúdio ficou pronto e, segundo Elaine, a Rádio “é  um mosaico de temas e sons, comunitário e popular, tudo pensado e feito com o amor de quem mora e vive no Campeche”.

A revista Pobres & Nojentas nasceu de uma conversa em uma padaria na Praça XV de Novembro, no centro de Florianópolis, fruto do desejo de um grupo de jornalistas de contar as histórias não dos ricos e famosos, como fazem as publicações que se vê nas bancas, mas “dos empobrecidos, do povo que trabalha, luta e constrói mundos”

Capa da primeira edição da Pobres & Nojentas: proposta  de jornalismo libertador

Entre 2006 e 2013, circulou na capital catarinense a revista Pobres & Nojentas, como relatam Míriam Santini de Abreu e Elaine Tavares no quinto artigo do livro. O projeto nasceu de uma conversa em uma padaria na Praça XV de Novembro, no centro de Florianópolis, fruto do desejo de um grupo de jornalistas de contar as histórias não dos ricos e famosos, como fazem as publicações que se vê nas bancas, mas “dos empobrecidos, do povo que trabalha, luta e constrói mundos”. A impressão era viabilizada com o apoio de sindicatos, e a publicação era vendida, principalmente, de mão em mão. A revista foi pensada sobre três pilares epistemológicos: a teoria marxista do jornalismo, a proposta de um jornalismo libertador e a ideia da “croniportagem”, estilo de texto que fica no limiar entre a crônica e a reportagem. As 30 edições impressas foram depositadas na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e serão encaminhadas, ainda em 2020, à Hemeroteca Digital Catarinense. A P&N pode ser acompanhada hoje no blog, ativo desde 2007, e em seu canal no YouTube.

O Portal Desacato, tema do artigo de Claudia Weinman, foi criado em 2007. A história do site é contada por meio de entrevistas pingue-pongue que a autora fez com Raul Fitipaldi e Tali Feld Gleiser, cofundadores do Portal, e Rosangela Bion de Assis, presidente da Cooperativa Comunicacional Sul. Fitipaldi conta que, na época, “alguns de nós já éramos ‘veteranos’ e a tecnologia era um desafio” e, com a criação do portal, “haveria um Desacato entre a nascente mídia eletrônica independente”. Com uma linha editorial anticapitalista e anti-imperialista, o portal publica produções próprias e de colaboradores, buscando “furar a bolha” das mídias dominantes. 

Anita Grando Martins escreve sobre o projeto Daqui — formado pelo portal Daqui na Rede, o impresso Daqui Jornal e o canal no YouTube Daqui na Rede TV —, idealizado pelo jornalista e historiador Celso Martins. Com uma proposta de jornalismo hiperlocal, cobria o dia a dia, as questões políticas e eventos dos bairros Santo Antônio de Lisboa, Sambaqui e Cacupé, no norte da Ilha. Lançado em 2011, tornou-se referência para outros jornalistas que atuavam em Florianópolis e buscavam pautas sobre os bairros e comunidades da região. O falecimento de Celso Martins, idealizador do Daqui, encerrou as atividades do projeto em 2018.

Portal Catarinas: pioneirismo no jornalismo feminista com perspectiva de gênero

O último artigo foi escrito pelo Coletivo do Portal Catarinas e relata as atividades desenvolvidas pelo site desde 2016, com foco em um jornalismo feminista com perspectiva de gênero. A iniciativa surgiu de um coletivo de mulheres e de um financiamento colaborativo que durou 45 dias. Com mais de 160 apoios na plataforma Catarse, o portal foi ao ar em julho do mesmo ano como o primeiro site feminista de jornalismo, produzindo conteúdo jornalístico especializado no tema. Hoje, a rede de colaboradoras é integrada por mais de 30 mulheres. Em 2019, o portal foi formalizado como associação, o que é um passo importante para a profissionalização do trabalho jornalístico desenvolvido no Catarinas.

É perceptível o orgulho dos autores em fazer parte de algo que estremece a narrativa hegemônica dos jornais tradicionais e que colabora com a visibilidade de comunidades que não são ouvidas, nem representadas pela grande mídia. 

“Fazer jornalismo profissional e especializado requer mais do que desejo: é preciso tempo, recursos humanos e materiais”, escreve o Coletivo do Portal Catarinas. Em todos os textos, fica claro que os desafios financeiros são grandes obstáculos para os veículos de mídia independente, sejam eles impressos, rádios ou sites. Mas é também perceptível o orgulho dos autores em fazer parte de algo que estremece a narrativa hegemônica dos jornais tradicionais e que colabora com a visibilidade de comunidades que não são ouvidas, nem representadas pela grande mídia. 

No artigo  sobre a Folha da Lagoa, Joffrey Hoff escreve que “a onipresença das tecnologias digitais parece ter mudado completamente o espaço do jornalismo comunitário, mas sua importância é maior do que nunca, ainda que em novos formatos”. Certeiro. É mais importante do que nunca que o jornalismo ocupe o espaço digital, que é o que está em disputa no cenário atual, e atue de forma relevante para informar as comunidades que ele representa, além de tentar furar a bolha algorítmica que dita quais conteúdos são vistos por cada indivíduo nas redes. Um livro como este é, além de um relato histórico interessantíssimo para que as pessoas, moradoras ou não de Florianópolis, conheçam as experiências, as lutas e as vitórias do jornalismo independente, uma lembrança de que a mídia opinativa e combativa é essencial para provocar mudanças na sociedade. Em tempos de ataque ao jornalismo, à credibilidade da imprensa e aos jornalistas que trabalham para informar a população, histórias  como as  que fazem parte desse livro acalentam as inquietações e podem incentivar novas gerações a se mobilizar por uma imprensa livre e engajada. Como pontua a autora Míriam Santini de Abreu no texto de apresentação, “essa memória histórica não pode nem deve ser apagada, porque essa luta não começou agora”.

A obra organizada pela jornalista Míriam Santini de Abreu pode ser adquirida por R$ 15,00, em formato digital, aqui

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