Jornalismo,  Resenha

“Cala a boca, que eu não te perguntei nada”

Documentário Cercados mostra os bastidores e desafios da cobertura jornalística da pandemia no Brasil

Por Natália Huf

Informação e emoção são boas palavras para definir o documentário Cercados – A imprensa contra o negacionismo na pandemia. Com foco nos grandes veículos de imprensa, o filme retrata os bastidores da cobertura jornalística sobre o Coronavírus, o governo brasileiro e o sistema de saúde. Depoimentos e vivências de profissionais de jornais impressos, rádios e emissoras de TV constroem a narrativa e mostram os desafios de trabalhar com tempo curto, jornadas e salários reduzidos e escassez de informações oficiais. Lançado em 3 de dezembro de 2020, o documentário está disponível no streaming GloboPlay

Assista ao trailer:

O filme começa com a saída de Nelson Teich do Ministério da Saúde, em 15 de maio de 2020. Teich foi o segundo ministro da Saúde do governo Bolsonaro a sair da função em menos de um mês de atividade, e foi substituído pelo interino Eduardo Pazuello, que permanece no cargo até hoje. O ministro que antecedeu Teich, Luiz Henrique Mandetta, foi substituído após discordar do presidente em relação às medidas e posicionamentos perante a pandemia do Coronavírus.

Título do documentário é bastante representativo da posição em que se encontram os profissionais da imprensa hoje em dia: cercados por todos os lados, seja pelo governo e seus apoiadores, seja pelas fake news que se proliferam nas redes sociais.

Dirigido pelo jornalista e documentarista Caio Cavechini, Cercados mostra muitos dos embates travados entre a mídia e o governo brasileiro durante o ano de 2020, em que tudo precisou se adaptar devido ao vírus. Os posicionamentos do presidente foram inúmeras vezes de encontro às recomendações de órgãos internacionais de saúde e de cientistas, e os ataques à imprensa, já corriqueiros por parte de Bolsonaro, se intensificaram. O título do documentário faz referência ao “cercadinho”, área gradeada onde os jornalistas que fazem a cobertura do Palácio da Alvorada, em Brasília, permanecem para entrevistar o presidente. É também bastante representativo da posição em que se encontram os profissionais da imprensa hoje em dia: cercados por todos os lados, seja pelo governo e seus apoiadores, seja pelas fake news que se proliferam nas redes sociais.

O cercadinho onde os jornalistas ficam encurralados fica bem ao lado da área onde se aglomeram os apoiadores do governo. Vestindo verde e amarelo e carregando bandeiras do Brasil, os seguidores fiéis de Bolsonaro fazem coro aos ataques proferidos pelo presidente. “Cala a boca, eu não te perguntei nada” e ameaças de encerrar as entrevistas são respostas dadas por Bolsonaro quando os repórteres fazem perguntas incômodas sobre a pandemia, o caso das “rachadinhas” envolvendo seu filho Eduardo, a saída de ministros de seus cargos e outras denúncias. Como afirma no documentário o diretor de redação do jornal O Globo, Alan Gripp, “Toda declaração pública dele [Bolsonaro] é um ambiente de enorme tensão”.

Jornais e emissoras optaram por parar de realizar a cobertura presencial da entrada do Palácio Imagem: Reprodução/GloboPlay

Uma fala da ombudsman do jornal Folha de S. Paulo, Flavia Lima, resume a relação dos apoiadores do governo com a imprensa. Para ela, a função do jornalismo é olhar para o que está errado, e isso incomoda o governo e muitos de seus eleitores: “Surge uma ‘conspiração’ de que a imprensa teria algo a ganhar com o desespero da população”. É lógico que a imprensa tradicional, os “grandes jornais”, assim como rádios, TVs e portais online, são passíveis de críticas; porém, quando a credibilidade do jornalismo entra em questão, é necessário ressaltar que a produção da notícia depende de um processo de apuração e de um trabalho técnico. 

Cercados é um filme difícil de se assistir. As quase duas horas do documentário se transformaram em três, pois, a cada soco no estômago, precisei parar para respirar. Relembrar todos os ataques que a profissão de jornalista recebeu ao longo do ano, as agressões — tanto verbais quanto físicas — que repórteres, fotógrafos e profissionais sofreram é devastador. A exaustão é visível nos rostos dos jornalistas que dão seus depoimentos e relatam seu trabalho durante a cobertura da pandemia e da crise política que se instaurou (ou, melhor dizendo, que se intensificou) no Brasil a partir da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, em abril passado.

Não é fácil contar a história recente, especialmente quando muitos dos eventos ainda estão em andamento ou não foram “absorvidos” pela história.

Disponibilizado em um canal de streaming da Rede Globo, uma das principais “inimigas” do governo e de seus apoiadores, o documentário fica restrito a um público que provavelmente conhece ou já tem alguma empatia com o trabalho da imprensa. Por isso, infelizmente, é possível que a mensagem do filme não alcance quem mais precisa recebê-la: negacionistas e disseminadores de fake news, por exemplo, dificilmente assistirão a um filme que mostra o lado da imprensa e os desafios que  jornalistas de diferentes mídias enfrentaram — e continuam enfrentando — na cobertura da pandemia.

Ao longo do filme, cenas impactantes despertam inúmeras sensações no espectador, que se vê revivendo momentos tensos de nossa história recente. Além das dificuldades diárias na realização da cobertura, o documentário mostra também o drama de famílias que perderam entes queridos e a história de pessoas que contraíram o vírus, mas se recuperaram após longas internações. Em junho, movimentos antirracistas foram às ruas de diversas cidades para protestar contra a morte de um homem negro em um supermercado, fazendo coro ao movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos, e contra o racismo estrutural entranhado na sociedade brasileira, que exclui a população negra também das medidas sanitárias: “A quarentena nunca chegou na quebrada”, afirma um manifestante em seu depoimento.

Editorial do Jornal Nacional de 8 de agosto de 2020 questionou se o dever do Estado de reduzir o risco de doenças foi cumprido pelo Governo Federal Imagem: Reprodução/GloboPlay

O documentário se propõe a fazer um trabalho difícil: cobrir cerca de nove meses do mesmo ano em que foi produzido. Não é fácil contar a história recente, especialmente quando muitos dos eventos ainda estão em andamento ou não foram “absorvidos” pela história. Ao abordar o drama dos bastidores dos jornais, do trabalho incessante nos hospitais lotados e de um sistema de saúde em colapso, das famílias que muitas vezes não têm dinheiro para enterrar seus mortos e identificar os túmulos, o filme termina com palavras dolorosas: lembrando que as notícias sobre a pandemia perdem cada vez mais audiência e espaço nos jornais.

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