História,  Jornalismo,  Reportagem

A vida e obra de João Antônio em podcast

Paratempo exibe primeiro episódio sobre a trajetória do criador do conto-reportagem

Por Mauro César Silveira

O desabafo proferido mais de 40 anos atrás soa sinistramente profético. Ao escrever, em 29 de abril de 1980, para Mylton Severiano, seu amigo e colega de redação na célebre revista Realidade, da década de 60 do século passado, o jornalista e escritor João Antônio Ferreira Filho, ou simplesmente João Antônio, destilou boa dose de amargura ao atingir o vigésimo quinto ano da sua carreira literária: “Deverei bebemorar com uma solitária taça de fel e desesperança, pois, depois de tudo que fiz e até do meu nome já ter chegado ao estrangeiro, verifico que uma só coisa foi equivocada: nasci no país errado. E o que vejo pela frente são muitos anos de obscurantismo, analfabetismo, corrupção generalizada e miséria braba. As artes e a cultura, nesse lado abaixo do Equador, estão destinadas a ficar abaixo do cu do cachorro. Não tenho dúvida que a nuvem de mediocridade caiu de vez sobre o país.”

O conteúdo dessa carta e de outras correspondências do autor de Malagueta, Perus e Bacanaço pontuam o instigante episódio A construção do escritor João Antônio, no podcast Paratempo, produzido por pesquisadores das áreas de História e Sociologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Logo na abertura do programa de pouco menos de 40 minutos, uma das integrantes da equipe, a doutora em Sociologia Política, Vaniucha de Moraes, lembra que a obra de João Antônio é “marcada tanto pela intensidade de suas figuras marginais como pelo teor autobiográfico que deixava escapar pelas entrelinhas”.

Em seguida, a apresentadora – com mestrado em Jornalismo também pela UFSC – dá as linhas desse primeiro episódio sobre o personagem, lançado neste mês de fevereiro: “Partimos aqui de uma constatação: a de que a ‘persona’ do escritor e jornalista João Antônio é resultado de um processo de construção social. Tudo o que se conhece sobre João Antônio foi paulatinamente construído, no início com sua anuência e relativo controle e posteriormente por escritores, biógrafos, críticos e pesquisadores que se debruçaram sobre os seus papéis. Acompanharemos a história do menino que nasceu na periferia de São Paulo e desejou ser reconhecido como escritor. Esse caminho abarca duas dimensões da experiência autobiográfica: uma associada aos processos de socialização, outra à edificação da ‘persona’ ou imagem pública do escritor. Falaremos a respeito das diversas experiências de socialização, primeiramente na infância, no meio familiar e escolar, e depois, sobre as experiências de socialização secundárias vivenciadas nos meios profissionais – jornalístico e literário – que se incorporam de alguma maneira às suas obras”.

“O boteco é mais. Agasalha traficâncias e briga. Gente encosta o umbigo ao mármore do balcão e queima o pé com bebidas. Fuá, tenderepá, pau comendo quente. Quizumbas”. João Antônio em Um dia no cais

A construção do escritor João Antônio é resultado de pesquisa realizada por Vaniucha de Moraes no acervo pessoal do autor depositado no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da Faculdade de Ciências e Letras de Assis da UNESP. O material disponível para consulta compõe-se de documentos, objetos e textos acumulados durante a vida de João Antônio (1937-1996) e foram muito bem explorados pela jornalista e socióloga na composição do episódio. Além de se reportar às obras literárias, a narrativa contempla o período jornalístico mais profícuo do personagem – entre os anos 1966 e 1969, na revista Realidade, da Editora Abril, que é referência fundamental dos estudos do gênero reportagem na história da imprensa brasileira.

Durante sua passagem pela publicação, João Antônio desenvolve um formato híbrido, o conto-reportagem, anunciado na edição de setembro de 1968. Ocupando 16 páginas da revista, Um dia no cais descreve as 24 horas do maior porto do país, o da cidade de Santos. Para contar histórias de algumas crianças, homens e mulheres, entre tanta gente que orbitava o local, de dia e de noite, viveu lá durante um mês. Envolvente, o início do texto exala tanto jornalismo como literatura:

De longe em longe, uma locomotiva a óleo diesel apita, modorrenta, e vem furando para as luzes na zona do cais.

— Epa!

Um menino branco se esforça, sobe do selim para o cano, mete os peitos contra o guidão, se enverga, equilibra a sacola na bicicleta e corta de fininho o cais. Vai que vai embora. Está quase sozinho com as luzes no comprimento de paralelepípedos, gozando nas curvas. O menino mais o seu calção e a sua japona, seu cabelo cortado rente, sua campainha, trim-trim nas esquinas que atravessa.

Cinco da manhã. As vassouras de piaçava correm nas mãos dos dois garçãos, peitos de fora, calças arregaçadas, tamancos. Batem, esfregam o chão da calçada do Bar Café Restaurante Chave de Ouro.

A cidade, os prédios e os morros dormem de todo. Cais não dorme. Não se apaga. Lá pelos cantões, um que outro olho aceso fica no rabo da manhã. E fica.

O botequim é xexelento, velho encardido. E teima que teima plantado. Aguenta suas luzes, esperto, junta mulheres da vida que não foram dormir, atura marinheiros, bêbados que perturbam, gringos, algum cachorro sonolento arriado à porta de entrada. Recolhe cantores cabeludos dos cabarés, gente da polícia doqueira, marítima ou à paisana. E mistura viradores, safados, exploradores de mulheres, pedintes, vendedores de gasparinos, ladrões, malandros magros e sonados.

O boteco é mais. Agasalha traficâncias e briga. Gente encosta o umbigo ao mármore do balcão e queima o pé com bebidas. Fuá, tenderepá, pau comendo quente. Quizumbas.

No próximo episódio sobre João Antônio no podcast Paratempo, o historiador, escritor e editor Rodrigo Lacerda, responsável pelas reedições das obras do autor a partir do novo milênio, vai falar mais sobre a vida e obra do inventor do conto-reportagem. Em 2006, Lacerda também defendeu, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), a tese de doutorado intitulada João Antônio: uma biografia literária, sobre a trajetória do escritor. O Paratempo é uma ação de extensão do Núcleo de Estudos em Políticas da Escrita, da Memória e da Imagem (NEPEMI), sob a coordenação da professora Letícia Nedel, do Departamento de História da UFSC, com os pesquisadores Gabriel Simon Machado, Gabriela Martini e Caroline Guebert, em parceria com o Metrópolis – Laboratório de Pesquisa Social, coordenado pelo professor Alexandre Bergamo, do Departamento de Sociologia e Ciência Política, também da UFSC, com a participação da pesquisadora Vaniucha de Moraes.

Depois de viver alguns anos de ostracismo e morrer isolado no Rio de Janeiro, em 1996, aos 59 anos, João Antônio foi redescoberto nos anos 2000 pelo mercado editorial e pelo mundo acadêmico, tendo sido alvo de muitas pesquisas nas áreas de Literatura, História e Jornalismo. Entre os exemplos mais recentes, estão o lançamento de Malagueta Perus y Bacanazo, pela Adriana Hidalgo Editora, da Argentina, em 2012, quando ele foi, finalmente, apresentado aos países vizinhos e à Espanha, onde ainda continua em circulação. Cinco anos depois, o pesquisador e escritor Bruno Zeni publicou o livro Sinuca de malandro – Ficção e autobiografia em João Antônio, pela Edusp, que tem origem em tese de doutorado apresentada, também em 2012, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Nesse trabalho, Zeni sustenta que a fase em que as fronteiras entre ficção e jornalismo ficam mais porosas coincide com a maturidade literária do autor de Leão-de-chácara – sua segunda obra, igualmente de contos.

“João Antônio via Lima Barreto como um pioneiro na representação do povo brasileiro dos subúrbios, pobre e marginal, além de também ter tido papel importante na imprensa da primeira metade do século XX”. Júlio Cezar Bastoni da Silva

Na pesquisa de pós-doutorado Corpo a corpo com o Brasil: Os dilemas da identidade nacional em João Antônio, concluída, em 2017, no Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), o pesquisador Júlio Cezar Bastoni da Silva fez um amplo levantamento da produção jornalística do escritor. “O conceito de conto-reportagem”, explica Bastoni, “foi formulado pela equipe da revista (Realidade) para caracterizar os textos de João Antônio. Uma fase até aqui menos estudada de sua atuação na imprensa é aquela em que, além de manter o posto de cronista em O GloboJornal do Brasil Tribuna da Imprensa, também atuou na imprensa alternativa em títulos como O PasquimVersus e Movimento.

João Antônio: obra jornalística e literária fiel à origem periférica Imagem: Acervo pessoal

Nos seus estudos, Bastoni também analisou a influência determinante de Lima Barreto (1881-1922) na produção de João Antônio, que dedicou todos os seus livros, exceto a primeira edição de Malagueta, Perus e Bacanaço, ao escritor consagrado pelo romance pré-modernista Triste fim de Policarpo Quaresma. De acordo com o pesquisador, trata-se de uma relação de continuidade “não exatamente formal, mas ética e, em certo sentido, temática”. Na visão de Bastoni, “ele via Lima Barreto como um pioneiro na representação do povo brasileiro dos subúrbios, pobre e marginal, além de também ter tido papel importante na imprensa da primeira metade do século XX”. Não por acaso, João Antônio escreveu a biografia “parajornalística” (expressão usada por Bastoni) Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, lançada pela Civilização Brasileira em 1977, sobre o período em que se internou no antigo Sanatório da Muda, no Rio de Janeiro, alegando estafa, e onde conheceu um amigo de Lima Barreto, o paciente Carlos Alberto Nóbrega da Cunha.

Anunciada a aguardada reedição desse livro pela editora 34, de São Paulo, desde as vésperas da Festa Literária de Paraty (Flip) de 2017, que homenageou Lima Barreto, há indícios fortes de que, agora, isso está prestes a acontecer. Malagueta, Perus e Bacanaço e Leão de Chácara foram relançados em 2020 pela editora paulista e o próximo da lista é Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, como antecipa o jornalista Aramis Merki II, de A Tabuleta. A esperada reedição da obra mais híbrida de João Antônio – meio biografia com tons de romance, meio memória clássica e muito de reportagem – pode ser uma das raras boas novas, pelo que o cenário atual indica, deste complicado 2021, ainda tão complicado como 2020.

SOBRE A REVISTA REALIDADE

A proposta editorial da revista Realidade e o contexto da época são examinados, detidamente, na dissertação Realidade (Re)vista: o papel do intelectual na concepção de um projeto revolucionário, de Vaniucha de Moraes, defendida no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC em 2010.

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