Diálogos,  História,  Resenha

Pelé em seu labirinto

Relação entre a carreira do mito do futebol e a história do Brasil é o eixo do documentário dos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas

Por Mauro César Silveira

Por vezes, a ironia histórica é caprichosa, quando não implacavelmente cruel. O auge da extraordinária carreira de Pelé coincide com o ápice da ditadura civil-militar que afligiu o país entre 1964 e 1985. As principais marcas de uma trajetória esportiva brilhante, a mais brilhante de um atleta brasileiro em todos os tempos, foram atingidas exatamente no período mais sangrento após o golpe que derrubou o governo democrático de João Goulart. O milésimo gol do ex-jogador do Santos ocorreu menos de um ano depois da edição do famigerado AI-5, o Ato Institucional número 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, que exacerbou o regime de terror e opressão. Já a conquista do seu terceiro título mundial pelo Brasil em 1970 – outra façanha ainda não superada – também foi celebrada pelo duro executor dessas medidas repressivas, o general Emílio Garrastazu Médici, que tentava reduzir a impopularidade da ditadura. Cenas de altos contrastes: momentos ou lampejos de alegria aflorando em cotidiano de sofrimento, dor e tristeza.

Choro na conquista de 1958 na Suécia: protagonismo aos 17 anos Imagem: Divulgação

Tamanho paradoxo histórico persegue o cidadão Edson Arantes do Nascimento desde aquela época. Como uma sombra inapagável, tem sido tema recorrente em entrevistas concedidas dentro e fora do Brasil. Nessas situações, o mineiro de Três Corações sempre driblou as perguntas com a mesma habilidade que impressionou a quem o viu atuar nos gramados. Agora, aos 80 anos de idade, Pelé, ao menos,  é um pouco mais direto sobre sua percepção do que estava acontecendo no país durante a ditadura. “Se eu dissesse que não sabia, que nunca fiquei inteirado disso, eu estaria mentindo”, afirma, referindo-se à prática da tortura pelos militares, no documentário Pelé, dirigido pelos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas, lançado no mês passado pela Netflix. Mas não vai muito além disso. Alega, como sempre fez, que nunca se interessou por política e que as constantes viagens com o time do Santos o impediam de conhecer mais profundamente a realidade. É bem possível que o conteúdo da obra distribuída pela plataforma de streaming tenha sido previamente autorizado por ele. Afinal, o filme produzido pela inglesa Pitch Productions – pertencente à agência de marketing esportivo Pitch International, que detém o controle de comercialização dos amistosos da seleção brasileira – conta com a chancela da Fundação Pelé (Pelé Foundation). Aliás, as duas empresas aparecem juntas nos créditos finais do documentário.

Esse caráter oficioso não retira, contudo, o interesse pela obra de 108 minutos conduzida por David Tryhorn e Ben Nicholas. O filme aborda a trajetória de Pelé desde 1958, quando foi protagonista da Copa do Mundo da Suécia, com apenas 17 anos, até o tricampeonato obtido no México, em 1970, articulando o crescente desempenho esportivo do atleta com a vida política e social do país. Foi o caminho escolhido pela dupla para oferecer uma perspectiva original, na medida em que a vida de Pelé, sobretudo a esportiva, já foi retratada em muitas produções cinematográficas e televisivas. Assim, depois da projeção dele – e do Brasil – no final dos anos 50 do século passado, a partir de uma ideia de modernidade, com sua vertiginosa ascensão profissional, o percurso até o apogeu da carreira cruza, inevitavelmente, com as consequências da obscura ditadura-civil militar. São duas partes bem distintas: uma antes e outra depois do golpe de 1964. E não há dúvida que, nessa estrutura cronológica, a narrativa cresce do meio para o final, face as muitas reticências que sempre cercaram a relação de Pelé com o poder.

“Sempre vinha proposta pra ir falar com o governo, falar com deputado, com governador, sempre tinha uma mensagem que era para voltar”. Pelé sobre a pressão para retornar à seleção na Copa de 70

Para atingir o objetivo de estabelecer a conexão entre a trajetória do atleta e a conjuntura nacional, os diretores se valeram de boas fontes. Entre os 24 entrevistados – incluindo Pelé, alguns familiares e ex-companheiros de clube e seleção brasileira, estes fundamentais para a parte esportiva – aparecem nomes como o ex-diretor da extinta rede Manchete, Zevi Ghivelder, o economista e ex-ministro da fazenda do governo Médici, Antônio Delfim Netto, o editor Roberto Muylaert, o músico Gilberto Gil, a ex-governadora do Rio de Janeiro, Benedita da Silva, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os jornalistas Juca Kfouri, José Trajano e Paulo César Vasconcellos. São alguns deles que oferecem explicações, quase justificativas, para a posição passiva, distanciada, aparentemente neutra, de Pelé, nos anos de chumbo do país. Emerge, então, a figura humana do craque, o mito que sobreviveu à ditadura.

Cenas de repressão durante a ditadura pontuam a narrativa da trajetória esportiva de Pelé Imagem: Divulgação

Uma das cenas comprometedoras daqueles tempos sombrios foi o aperto de mão, com tapinha nas costas, que ele recebeu do general Médici no Palácio do Planalto, em 22 de novembro de 1969, três dias depois de seu milésimo gol – contra o Vasco, no Maracanã -, viajando para Brasília num avião da Força Aérea Brasileira (FAB). Pelé diz que foi convidado e aceitou, como costumava fazer em outros países, minimizando o episódio. “Nunca fui forçado a fazer nada, nunca”, enfatiza na frente das câmeras. O jornalista Juca Kfouri considera, no entanto, que esse encontro não foi nada natural: “Ele não podia, sendo quem ele é, voltar as costas para, afinal, um presidente da República. Você pode falar ‘tá bom, mas, espera aí, Muhammad Ali foi diferente’. Foi diferente, sim, e eu bato palmas para o Muhammad Ali. Ele sabia que, ao ser preso por deserção, não corria o menor risco de ser maltratado, de ser torturado. O Pelé não tinha essa garantia. Epa! Ditaduras são ditaduras. Só quem viveu sabe onde é que arde”.

O documentário mostra que Pelé cedeu também ao participar da Copa de 1970. Depois de duas lesões graves nos dois mundiais anteriores, ele estava decidido a não viver sua quarta experiência na maior competição de futebol do planeta e já anunciara sua aposentadoria da seleção brasileira. Mas as pressões eram enormes. Depois do fracasso de 1966, como observa Kfouri, “ganhar a Copa virou uma questão de governo”. O jornalista relembra o contexto: “A comissão técnica da seleção era quase todinha composta por militares. Foram criados tantos slogans fascistoides, como ‘Brasil ame-o ou deixe-o’ e ‘Ninguém segura este país’. Viveu-se uma euforia nacionalista, no pior sentido do termo, insuflada pela ditadura. O Pelé não gosta de tocar nesse assunto, mas conversas, recados, dados pela ditadura, diziam que era bom ele jogar a Copa”. Mas Pelé toca no tema: “Sempre vinha proposta pra ir falar com o governo, falar com deputado, com governador, sempre tinha uma mensagem que era para voltar”. Delfim Netto, um dos mais poderosos ministros do general Médici, confirma: “Aquilo se transformou para o presidente uma coisa importante, porque se o povo está contente o governo fica contente”. E acrescenta: “O governo mexeu os pauzinhos, não só na escolha do Pelé, o governo interveio no futebol”.

Com mão de ferro, mas sem farda militar, distanciando-se visualmente das truculentas tropas em ação nas ruas brasileiras, Médici usava sua predileção pelo futebol – além do Grêmio, torcia pelo Flamengo – para retirar as manchas de sangue do regime.

Outra ação da ditadura, implícita na declaração de Delfim Netto, foi a substituição do técnico João Saldanha no comando da seleção, três meses antes da Copa do México. Esse tema é o que apresenta mais lacunas no documentário da Netflix. David Tryhorn e Ben Nicholas exploram a polêmica gerada pela afirmação de Saldanha de que Pelé apresentava problemas de visão e precisava de um período de recuperação. Transparece que esse teria sido o motivo da saída do treinador. Não foi. As pressões contra Saldanha surgiram logo depois da sua escolha pela então Confederação Brasileira de Desportos (CBD) para ser o treinador nas eliminatórias para a Copa e recuperar o bom futebol da seleção. Jornalista reconhecido em todo o país, era torcedor do Grêmio como o general, mas ideologicamente estava no campo oposto, como militante de esquerda assumido, filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sua convocação desagradou ainda mais o regime, pois, além disso, ele escolheu os melhores jogadores do país, independentemente da sua posição política. Saldanha formou suas “feras” e o Brasil fez sua melhor campanha em eliminatórias, apresentando um futebol exuberante e goleando a maioria dos adversários sul-americanos. Mas sua ida para o México começou a ser boicotada, culminando com a intervenção do general Médici na composição do grupo que viajaria para a Copa, exigindo a presença do atacante Dario, do Atlético Mineiro, o popular “Dadá Maravilha”. Saldanha ignorou o general e foi imediatamente demitido. Em seu lugar, entrou Mário Lobo Zagallo, que convocou o jogador preferido do general. O Brasil foi campeão, mas Dario nem entrou em campo. As “feras do Saldanha” garantiram o título.

Tricampeonato mundial no México culmina a extraordinária carreira de Pelé Imagem: Divulgação

Era um período crítico da vida do país. Com mão de ferro, mas sem farda militar, distanciando-se visualmente das truculentas tropas em ação nas ruas brasileiras, Médici usava sua predileção pelo futebol – além do Grêmio, torcia pelo Flamengo – para retirar as manchas de sangue do regime. Como descreve bem o jornalista Paulo César Vasconcellos: “Ele sabia que o futebol é algo que cativa. Então, tornou-se comum, aos domingos, o general Emílio Garrastazu Médici estar no Maracanã, com radinho de pilha, tentando criar uma imagem de simpático, enquanto nas prisões as pessoas eram torturadas”. Há consenso histórico de que essa fase foi, inegavelmente, a mais dura dos governos militares: “O Médici foi um ditador na pior fase da tortura, dos assassinatos; foi, eu posso dizer, o ditador mais cruel que o Brasil teve”, define o também jornalista Zevi Ghivelder. Ao ser indagado pelos entrevistadores se o AI-5, assinado por ele, favoreceu a prática de torturas e mortes, o ex-ministro Delfim Netto se saiu com esta: “Seguramente. Porque o homem é o animal que quando tem poder é o único capaz de matar o outro da sua espécie”.

“Eu amo o Pelé. Mas não posso deixar de criticá-lo. Eu achava que ele tinha um comportamento do nego do Sim, Senhor, submisso, que aceita tudo, não contesta, que não critica, não julga. É uma das críticas que mantenho até hoje”. Paulo Cézar Caju sobre o silêncio de Pelé durante a ditadura

Pelé nunca se manifestou publicamente contra a ditadura. E isso tem um preço alto, de acordo com o jornalista Paulo César Vasconcellos: “Pra muita gente vai se olhar menos para o que ele fez dentro do campo e mais para o que fez fora. E fora é caracterizado por uma ausência de posicionamento político. Nesse momento da história isso vai pesar muito, e contra ele”. O ex-jogador Paulo Cézar Lima, mais conhecido como Caju, que integrou o grupo vencedor da Copa de 70 condena esse silêncio: “Eu amo o Pelé. Mas não posso deixar de criticá-lo. Eu achava que ele tinha um comportamento do nego do Sim, Senhor, submisso, que aceita tudo, não contesta, que não critica, não julga. É uma das críticas que mantenho até hoje. Porque se o Pelé desse uma opinião, uma só, isso mexeria muito, principalmente no Brasil”.

Batucando na caixa de engraxate: reminiscência da infância trabalhadora de menino pobre compõe a cena final do documentário Imagem: Divulgação

O músico Gilberto Gil deixa de lado a cobrança do ídolo e ressalta o fôlego coletivo que representou o excelente desempenho da seleção tricampeã no México: “Era o momento que o Brasil vivia o auge da ditadura, o auge da repressão, as investidas contra as liberdades de expressão, de mobilidade, e etc. E no meio daquilo tudo um oásis de beleza, de esperança, de emoção positiva, de emoção estimulante, que foi a Copa de 70”. Talvez seja o que Pelé enxergue mais hoje, quando continua sendo confrontado com seu passado. Posicionar-se? Ele responde: “Não teve condições. Não deu para fazer outra coisa. Não deu. Que que adiantou a ditadura? Pra que lado você está hoje? A gente fica meio perdido. Eu sou um cidadão brasileiro, eu quero o melhor para o meu povo. Não era super-homem, não era milagroso, não era nada. Era uma pessoa normal que Deus me deu a felicidade, o dom, de jogar futebol. Mas eu tenho absoluta certeza de que eu ajudei muito mais o Brasil, com o meu futebol, com a minha maneira de viver, do que muitos políticos que ganham e trabalham para fazer isso”.

Pelé chorou diante das câmeras ao recordar as pressões para o Brasil vencer a Copa. “O grande presente que você ganha na vitória é o alívio”, ensina. Mais difícil parece ser se livrar das fissuras e arranhões provocados pelo distanciamento que sempre manteve das causas políticas. Um labirinto sem fim.

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