História,  Resenha

O fotógrafo francês e a batalha dos meninos

Livro em quadrinhos Guarani – A Terra Sem Mal relata a presença de Pierre Duprat no trágico combate de Acosta Ñu, um dos mais sangrentos da guerra contra o Paraguai

Por Mauro César Silveira e R. Melissa Dos Santos

A realidade dura e crua se impõe, com altivez demolidora, diante das mais sórdidas intenções. No ano de 1868, o fotógrafo francês Pierre Duprat rumou de Paris para o longínquo Paraguai com o único objetivo de captar imagens de mulheres indígenas nuas e depois comercializá-las no continente europeu. Tinha consciência que o momento era turbulento e desembarcou na região do Prata disposto a se manter o mais distante possível das ações militares desenvolvidas pela Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) no território do país governado por Francisco Solano López. Aos poucos, deparando-se com os horrores da guerra, Duprat foi se distanciando do seu torpe propósito, tocado pelas muitas atrocidades que testemunhou. A mais brutal e sangrenta batalha que viu, a de Acosta Ñu, em 16 de agosto de 1869, no período final do conflito, mexeu com ele de vez: 20 mil militares aliados comandados pelo Conde D’Eu – genro do imperador D. Pedro II – perpetraram um autêntico massacre contra uma improvisada força de, no máximo 6 mil paraguaios, muitos em idade avançada e a maioria deles constituída de crianças disfarçadas de adultos, sejam com os rostos pintados a carvão ou adornados por barbas de milho. Estima-se que mais de três mil desses soldados meninos foram mortos.

As andanças de Pierre Duprat na guerra que se estendeu de 1864 a 1870 renascem numa obra em quadrinhos de alta qualidade gráfica, Guarani – A Terra Sem Mal, dos argentinos Diego Agrimbau e Gabriel Ippóliti, lançada em fevereiro pela Comix Zone, de São Paulo. Essa editora especializada em quadrinhos que surgiu em 2019 de uma parceria entre o canal com o mesmo nome do youtuber Thiago Ferreira, radicado no Canadá, e o escritor Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, produziu a pioneira edição impressa do livro na América Latina. Originalmente publicado na França em 2018 com o título de Guarani – Les enfants soldats du Paraguay, o trabalho de Agrimbau (roteiro) e Ippóliti (arte) teve uma versão em ebook lançada no final do ano passado na Argentina. Com capa dura e acabamento primoroso, as 128 páginas de Guarani – A Terra Sem Mal transportam leitores e leitoras para o século XIX e contam a jornada do fotógrafo francês em busca de imagens para um público europeu interessado na beleza exótica que imaginavam ser encontrada no continente sul-americano, com toda a carga de preconceito e superioridade branca ocidental que ainda recai em cima dos povos indígenas colonizados.

A narrativa centra-se no olhar estereotipado do viajante, com observações sobre a paisagem “selvagem” e a condição inferior dos nativos da etnia guarani, e avança pelas mudanças que atingem Pierre Duprat a cada experiência impactante vivida no Paraguai. Com muito contexto histórico permeando os diálogos, no roteiro bem estruturado por Diego Agrimbau, mais o belo trabalho visual de Gabriel Ippóliti, a evolução da trajetória do fotógrafo francês oscila em dois níveis, sempre em alto contraste: a exuberância estética do cenário natural paraguaio se choca com as horripilantes operações de guerra. Uma caminhada, tensa, angustiante, mas transformadora. O ápice da trama é atingido no testemunho ocular da Batalha de Acusta Añu, também conhecida como Batalla de los Niños ou Batalha de Campo Grande (história oficial brasileira), o episódio sangrento de oito horas na vasta planície onde hoje é a cidade de Eusebio Ayala, a 72 quilômetros de Asunción. É o que modifica definitivamente o sentimento do personagem central. Apagada da memória histórica brasileira – com as raras exceções que confirmam a regra -, esse embate flagrantemente desigual ainda aguarda uma versão mais próxima dos fatos, incluindo informações como a decisão do Conde d’Eu de ordenar a continuação dos ataques mesmo quando soube que a maioria dos adversários eram crianças.

Dia da criança paraguaia  revive a bravura dos pequenos guerreiros de 1869

No Paraguai, a data passou a ser celebrada a partir de agosto de 1948, depois de um decreto assinado em mês anterior pelo presidente interino Juan Manuel Frutos Escurra. Desde então, o 16 de agosto é oficialmente o Día del niño paraguayo (Dia da criança paraguaia). Não é, portanto, uma origem casual ou aleatória, como em muitos outros países. Ela mantém uma essência histórica que marcou o passado, a Batalha de Acosta Ñú, com efeitos ainda visíveis no presente. Ao longo da sua existência, o povo paraguaio superou suas dores em silêncio. Um silêncio agonizante, sufocado por pensamentos que reportam às injustiças vividas e sofridas até hoje. Cada pessoa aprendeu a construir-se como um ser orgulhoso do que possui, lutando muito pelo que deseja, em contraposição ao que pode ter, e conhecendo muito bem os limites da sua realidade geográfica.

Há uma energia contagiante que anima a olhar para a frente e construir o futuro. Os paraguaios e as paraguaias riem das suas menores e mais singelas aventuras diárias, escondendo seu punho que nega as injustiças modernas. Apesar de tudo, vivem, lutam e sonham alto, como sempre fizeram. O Día del niño paraguayo pode ser mais um dia, ou um dia qualquer, para quem mal conhece a história do país. Mas quem carrega esse triste episódio do passado como referência para a identidade paraguaia sabe que o 16 de agosto precisa ser relembrado. E sempre é: habituais festivais nacionais, programas de televisão, eventos de instituições públicas em todos os municípios celebram o Dia da criança paraguaia. Artistas se reúnem em espaços públicos para apresentações musicais e empresas estatais e privadas se unem para presentear as milhares de crianças participantes. Muitas associações de mães organizam visitas às casas cuna (lares para crianças órfãs), aos hospitais infantis, entre outras atividades sociais que têm como objetivo divertir as crianças em homenagem aos bravos pequenos guerreiros de Acosta Ñu. Também é costume da maioria das famílias paraguaias homenagear os filhos e filhas de menor idade com presentes, jogos, passeios divertidos e uma “sessão” caseira para explicar “porque 16 de agosto é o dia das crianças”.

A origem da data, eternizada na comovente obra em quadrinhos dos argentinos Diego Agrimbau e Gabriel Ippóliti, se soma a todos os outros trabalhos artísticos que preservam a memória do Paraguai. Uma história que jamais deve ser esquecida por estes países vizinhos, principalmente pelo responsável desse massacre. Deve servir, mais do que tudo, para recuperar – e fortalecer – os laços de fraternidade que uniam o Brasil e o Paraguai antes dessa absurda guerra. É o que desejamos.

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