História,  Jornalismo

Hipólito da Costa e aquela terra longínqua e sossegada

Ao longo dos 14 anos do Correio Braziliense, patrono da imprensa brasileira imaginou o país como uma utopia do grande reino português

Por Luís Francisco Munaro

Muito embora tenha se consolidado como um ofício fundamental para a orientação do “homem moderno”, o jornalismo sempre foi enxergado com desconfiança: ora como refém das circunstâncias e entregue ao eterno presente, ora como subserviente aos poderes políticos e serviçal da burguesia. Ninguém que viva numa democracia liberal, contudo, pode negar a importância do espaço jornalístico, ou da esfera pública que ele condiciona e sustenta, como capaz de fornecer livre trânsito a várias visões de sociedade, notícias e panoramas argumentativos. A experiência histórica mostra mesmo que, sem jornalismo, nenhum estado nacional pode ser considerado democrático.

A partir do século XXI, uma nova crise se abateu sobre o ofício jornalístico, a concorrência dos meios digitais e de várias fontes noticiosas independentes, nem sempre comprometidas com a verdade. Esta situação fez com que, em tom um tanto desolador, Ignacio Ramonet falasse numa “explosão do jornalismo”, referindo-se ao iminente recuo do jornalismo profissional diante de uma infinidade de mídias amadoras. Por outro lado, caberia perguntar: o jornalismo não é um ofício que já nasceu explodindo? Tendo como epicentro os jornais literários que surgiram na França, no século das Luzes, o jornalismo ajudou a corroer a ordem monárquica e gerar uma sociedade republicana, processo que a historiografia consumou chamar de “crítica e crise”. O passado do jornalismo ensina que o ofício nunca alcançou um status estável, muito embora tenha nascido de um processo de intelecção da realidade que envolve a verdade, a crítica e a atualidade.

A crise do jornalismo, quando olhada pelo prisma do primeiro jornalista brasileiro, Hipólito da Costa, torna-se menos crítica na medida mesmo em que mostra como a tensão é inerente ao ofício. Este olhar eu lanço na obra Aquela terra longínqua e sossegada: o jornalismo de Hipólito da Costa, publicada em 2018 pela Editora Fi, de Porto Alegre, primeira editora de acesso aberto do país.

A despeito da grande quantidade de obras que trataram de Hipólito da Costa, inclusive a recente publicação de Isabel Lustosa, O jornalista que imaginou o Brasil: Tempo, vida e pensamento de Hipólito da Costa (1774-1823), lançada em 2019, tento pensar a contribuição de Hipólito da Costa como o fruto de uma tensão entre o jornalismo e a sociedade tradicional, entre um jornalista brasileiro e os jornalistas portugueses, tensões a partir das quais se dimensionou a visão de um lugar ideal no tempo e no espaço: o Brasil purgado dos vícios e guerras europeus, “uma terra longínqua e sossegada”.

Apesar das intensas tentativas de controle de Hipólito da Costa, que foram desde a censura explícita, a perseguição judicial e o financiamento de jornais rivais, o seu projeto jornalístico só se avolumou.

Tendo fugido da prisão do Limoeiro em Portugal onde se viu enclausurado por conta do envolvimento com a maçonaria inglesa, Hipólito passou o restante da vida em Londres, sendo nomeado cônsul geral do Brasil em 1823, posto que, por ocasião de seu falecimento precoce, não pôde assumir. Durante a sua estadia na capital da Inglaterra, Hipólito teve papel pronunciado entre os arquitetos da independência brasileira, contribuindo ativamente para pensar a sociedade, a economia e a cultura brasileiras. Na condição de panfletário de ideias liberais, Hipólito da Costa também auxiliou na formação de uma identidade política entre os indivíduos que direcionaram a independência em 1822.

Ao longo dos 14 anos do seu jornal Correio Braziliense, entre 1º de junho de 1808 e 1º de dezembro de 1822, Hipólito imaginou o Brasil como uma utopia, que está mais ou menos explicitada logo na epígrafe do jornal, dois versos de Camões que se referem às grandes conquistas ultramarinas que coloriram o passado português: “Na quarta parte nova os campos ara, e se mais mundo houvera lá chegara”. A utopia é o Brasil que permite um recomeço da história portuguesa. Ao mesmo tempo em que formou um imaginário utópico do Brasil, Hipólito buscou instruir cuidadosamente seus planejadores sobre como ocupá-lo, dele extrair riquezas e transformar numa nação relevante no mundo moderno.

No decurso de três capítulos, o livro Aquela terra longínqua e sossegada busca entender como, por meio de seu discurso jornalístico, Hipólito ajudou a construir uma imagem do Brasil que acabou apressando a sua independência política. No primeiro capítulo, a obra explora as características da nação brasileira como ela era imaginada por Hipólito, o alcance possível das suas ideias no Brasil e sua devoção à figura paternal do príncipe. Conta ainda a sua formação pessoal ligada à Universidade de Coimbra, sua participação nos círculos de sociabilidade da elite coimbrã, sua vida onde o questionamento da autoridade monárquica era, digamos assim, uma impossibilidade lógica.

No segundo capítulo, a obra apresenta o Hipólito jornalista como fruto da liberdade usufruída em Londres. Quer dizer, busca compreender como os afetos e práticas cotidianas abertos na cidade ajudaram a moldar o trabalho do jornalista e como ele se organizou, depois do grande afluxo de portugueses para a Inglaterra em 1807, como locutor dos planos e projetos desses mesmos portugueses. Vislumbra-se como que um jogo de poderes, um grande tabuleiro de xadrez, onde se confrontam o Portugal antigo e o mundo liberal, uma nobreza fundiária imantada ao Estado e uma burguesia ávida por se liberar das correntes da burocracia nobiliárquica. As vozes desses conflitos subterrâneos vão se refletir no jornalismo: este se transforma não só em seu eco como também participa ativamente do jogo político.

No terceiro capítulo, apresenta-se mais claramente uma proposta jornalística. Não apenas de Hipólito, mas dele e de seus interlocutores jornalistas. Tópico essencial para perceber como é um grande prejuízo perceber um jornalista – como um autor importante em geral – como uma voz isolada, dado a grande quantidade de conflitos e pontos de vista distintos com que se debateu o seu Correio. Os períodos de maior definição e nos quais os argumentos amadurecem são justamente aqueles em que surgem jornais rivais carregando em suas páginas argumentos opostos. Hipólito se vê numa rede jornalística para a qual cada palavra sua gerará um eco imediato em outros jornais, fazendo com que se esboce uma trama polifônica até hoje pouco observada pelos historiadores nacionais. Está em jogo, nessa disputa, uma utopia, a utopia do “Grande Reino”.

Deste mergulho no passado, mais especificamente no início do jornalismo brasileiro a partir daquele que até hoje é considerado o seu patrono, constata-se a sua condição desde sempre crítica bem como o caráter intrínseco da disputa entre várias mídias, cada uma delas podendo jurar de pés juntos deter uma verdade universal. Sendo o grande beneficiário desse jogo o público leitor que, pela disponibilidade de mídias e versões da realidade cada vez mais mutante, pode extrair o seu próprio material argumentativo. Outrossim, mostra que, apesar das intensas tentativas de controle de Hipólito da Costa, que foram desde a censura explícita, a perseguição judicial e o financiamento de jornais rivais, o seu projeto jornalístico só se avolumou. O passado assim oferece lição preciosa para a atualidade.

SOBRE O AUTOR

Luís Francisco Munaro: dissertação pioneira Foto: Acervo pessoal

O pesquisador Luís Francisco Munaro, professor associado da Universidade Federal de Roraima (UFRR), vem construindo uma sólida carreira acadêmica, voltada para as áreas de história da imprensa e história da Amazônia, se debruçando sobre as relações entre mídia e política ao longo da história moderna. O livro que ele apresenta aos leitores e às leitoras do Jornalismo & História tem origem na primeira dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. O trabalho, também intitulado Aquela terra longínqua e sossegada: o jornalismo de Hipólito da Costa, foi defendido em sessão pública realizada no dia 3 de agosto de 2009. Naquela época, ele participou ativamente das leituras coletivas de história do jornalismo que congregavam alunos e alunas da graduação e pós-graduação do Departamento de Jornalismo, além de ter sido um dos seus maiores incentivadores. Era o embrião do Grupo de Estudos de História do Jornalismo na América Latina, que, entre outras atividades, lançou o Jornalismo & História. Sua presença no site é mais do que uma colaboração especial: marca seu ingresso na equipe de pesquisa do projeto. Uma honra para o J&H.

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