História,  Jornalismo

As corridas noticiosas no império inca

Chasquis, os velozes mensageiros da informação na era pré-colombiana, eram protagonistas de um engenhoso sistema de comunicação

Por Mauro César Silveira

O choque de civilização foi grande. Não foram apenas as imponentes cidades, as avançadas técnicas de agricultura, os originais modelos matemáticos, a arquitetura exuberante e uma estrutura governativa eficaz que impressionaram os colonizadores espanhóis. Ao se depararem com o magnífico império inca, abarcando uma distância de mais de 4 mil quilômetros, no sentido norte-sul, se estendendo do atual Equador – mais uma ponta do que viria ser a Colômbia – a áreas que hoje constituem o Chile e a Argentina, os europeus notaram outro sistema inovador: o da comunicação. No século XVI, a cultura pré-colombiana mais expressiva – também conhecida como Tahuantinsuyo – se disseminava pelos seus extensos domínios com uma velocidade espantosa para aqueles tempos. Graças a uma rede de mensageiros, os chasquis, que levavam e traziam notícias entre os pontos mais remotos através dos dois principais caminhos de pedra que uniam o vasto império – o da cordilheira, passando pela capital Cusco, e o da costa do Pacífico.

“As notícias não poderiam ser transmitidas através de uma maior velocidade, nem com os cavalos mais velozes”. Pedro Cieza de León, autor da obra Crónicas del Perú

Primeira parte da obra Crónicas del Perú, de Cieza de León, editada em Sevilha no ano de 1553: autor deslumbrado com os mensageiros incas Reprodução/University of Pennsylvania

Eram vias essenciais para a movimentação de pessoas – civis ou militares -, mercadorias e alimentos. Mas por onde circulava igualmente a informação necessária à administração do imenso território. Nesse aspecto, o papel dos chasquis era fundamental: em revezamento através de incontáveis postos espalhados pelos caminhos (qhapac ñan) conectados com as quatro regiões imperiais (suyus), esses rápidos corredores transportavam pequenos objetos e víveres, além de transmitir determinações do poder assentado em Cusco e colher informações das localidades existentes no trajeto. Geralmente homens jovens com excelente condição física, costumavam percorrer de 10 a 15 quilômetros em cerca de uma hora, permitindo que, alternando-se um após outro, 24 corredores pudessem cobrir, e até superar, a distância de 240 quilômetros em um único dia. Mais: as notícias entre Quito e Cusco, distantes 2.854 quilômetros, poderiam circular em menos de 12 dias, uma façanha para a época. O conquistador espanhol Pedro Cieza de León, que se notabilizou por seu pormenorizado relato do mundo andino na sua obra Crónicas del Perú (1553), dividida em quatro tomos, não se conteve: “Os incas inventaram um sistema de mensageiros que é o melhor que se poderia pensar ou imaginar… As notícias não poderiam ser transmitidas através de uma maior velocidade, nem com os cavalos mais velozes”.

O sistema criado para transmissão das mensagens oficiais e a coleta de informações das diferentes regiões do império inca era mesmo engenhoso. O chasqui – palavra que, na origem quéchua, significa aquele que dá e recebe e depois passou a referir mensageiro ou correio – era a figura central do processo. A maioria usava um quipu, instrumento mnemotécnico para registrar os dados a serem levados adiante, também servindo como registro contábil. Elaborados com fios de diferentes cores, alguns com adornos como ossos ou penas, possibilitavam a formação de distintos nós, que atribuíam a cada cordão um determinado significado ou mensagem. Poderia ser a notícia de um decreto imperial, de um desastre climático, de um nascimento, de uma morte. Os corredores incas também usavam conchas chamadas pututu, como uma espécie de trompete, para avisar sua aproximação aos postos e albergues onde seriam substituídos e acelerar ainda mais a comunicação. Também eram treinados para apurar a memória e repetiam várias vezes em voz alta as informações mais importantes durante o caminho.

Pedro Castillo, eleito presidente peruano, usou técnicas de memorização dos chasquis na infância

Pedro Castillo, presidente eleito do Peru: aprendizado escolar sob influência inca Imagem: https://perulibre.pe/Divulgação

Esses exercícios de memorização dos incas também já foram úteis ao recentemente eleito presidente peruano. Em perfil intitulado Pedro Castillo, o professor rural que quer levar a esquerda de volta ao poder no Peru, publicado em 6 de junho no site El País Brasil, o candidato vitorioso do partido Peru Livre, revelou a forma original que encontrou para realizar as tarefas escolares na sua dura infância na pequena localidade de San Luis de Puña, uma área pobre e longínqua do interior, no extremo norte do país: repetir as lições em voz alta durante a caminhada de duas horas a pé por encostas de até 3 mil metros de altura. Pedro Castilho, hoje com 51 anos, recordou que, naquela época, passava o tempo inteiro falando em tom elevado e gesticulando muito, preocupando muito os vizinhos que colhiam batatas e milho em suas hortas no alvorecer. Certo dia, os agricultores procuraram a mãe do presidente eleito, que, aflita, conversou imediatamente com o filho para saber o que estava acontecendo. Tranquilo, o menino explicou: “Não ligue, não estou doente. Vou fazendo minhas tarefas, escrevo no ar. Assim, quando chego à escola, já sei tudo”.

Os colonizadores espanhóis desconheciam método de transmissão de informações mais rápido.

Chasqui assoprando uma pututu a caminho do próximo posto Imagem: Wikimedia Commons

Mais do que memorizar, os chasquis precisavam cumprir rigorosas normas de conduta. As informações governamentais eram consideradas sigilosas e o segredo tinha que ser mantido. Também não podiam prejudicar o ritmo da cadeia de comunicação, facilitando ao máximo o trabalho do próximo corredor, e nem transmitir notícias falsas. Poucos ousavam transgredir essas recomendações expressas. Afinal, as infrações poderiam ser punidas com a pena de morte, o que inibia atos de indisciplina. O monumental império inca, com uma população estimada no seu apogeu em mais de 6 milhões de almas, concebeu, portanto, um notável e eficiente canal de informações bem antes – mais de três séculos – do aparecimento do telégrafo.

Aliás, as civilizações pré-colombianas ainda clamam por maior reconhecimento histórico de suas outras formas de comunicação, anteriores ao revolucionário invento dos tipos móveis de Gutenberg. O conquistador Hernán Cortés e seus comandados, de acordo com relato do cronista espanhol Bernal Díaz del Castillo, citado por Ríos Vicente (1994, p. 467), se surpreenderam com uma grande produção de livros entre os astecas, no atual México. Tanto a civilização inca e a maia, da América Central, possuíam uma tradição de escrita muito antiga e bem anterior à chegada dos espanhóis. Os colonizadores se aproveitaram disso sem pestanejar: os chasquis, por exemplo, foram usados por um bom tempo durante a existência do Vice-Reinado do Peru, criado em 20 de novembro de 1542. A Espanha não conhecia método de transmissão de informações mais rápido. As corridas noticiosas se constituíram, assim, numa descoberta inesperada e fascinante. Um esboço inteligente de uma das características primordiais da identidade jornalística: a difusão.

Referências

GARGUREVICH REGAL, Juan. Historia de la prensa peruana: 1594-1990. Lima: La Voz, 1991.

RÍOS VICENTE, Enrique. El periodismo en Iberoamérica. In: PIZARROSO QUINTERO, Alejandro (Coord.).  Historia de la prensa. Madrid: Centro de Estudios Ramón Areces, 1994.

SILVEIRA, Mauro César. Um pecado original: os primórdios do jornalismo na Bacia do Rio da Prata. Florianópolis: Insular, 2014.

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