Jornalismo,  Resenha

Novas possibilidades para o jornalismo

Coletânea de artigos contribui para a solidificação da pesquisa sobre o uso dos quadrinhos como suporte para notícias e reportagens

Por Natália Huf

O jornalismo produz, cotidianamente, a história presente. Por meio de textos, fotografias, vídeos e também da linguagem dos quadrinhos, são registros e relatos da nossa história. O aumento na produção de conteúdos jornalísticos em quadrinhos, especialmente reportagens, vem despertando interesse acadêmico sobre o tema e, nos últimos anos, mais artigos científicos, TCCs, dissertações e teses em programas de pós-graduação de Comunicação e Jornalismo vêm se debruçando sobre esse campo de pesquisa crescente. Neste ano, a editora florianopolitana Insular lançou uma coletânea de textos de dez pesquisadores intitulada Jornalismo em Quadrinhos – Contextos, pesquisas e práticas, reunindo artigos sobre a linguagem dos quadrinhos no jornalismo e análises de obras.

O livro é o oitavo volume da série Jornalismo e Sociedade, uma parceria da editora com o Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). O volume traz textos de pesquisadores da área e foi organizado por Célia Maria Ladeira Mota e Vinícius Pedreira Barbosa da Silva. Como sintetiza Fernando Resende no prefácio, “o desafio que este livro traz aos pesquisadores interessados em entender o jornalismo nos dias de hoje é o de (re)conhecer estratégias narrativas que corroboram para o processo de complexificação do exercício de presentificar o acontecimento”.

Na primeira parte do livro, concentram-se os artigos que têm como objetivo discutir o jornalismo em quadrinhos enquanto área, gênero, linguagem: os textos de Augusto Machado Paim, Luiz Fernando Menezes, Iuri Barbosa Gomes e Deise Cavignato versam sobre as pesquisas e práticas envolvendo jornalismo e/em/com quadrinhos. A segunda parte, por sua vez, traz artigos que analisam as narrativas jornalísticas de Joe Sacco, nome que é referência para quem faz, estuda e lê jornalismo em quadrinhos. Com contribuições de Vinicius Pedreira Barbosa da Silva, Juscelino Neco de Souza Júnior, Flávio Pinto Valle e Djenane Arraes Moreira, os últimos capítulos se debruçam sobre esse personagem tão relevante.

A linguagem dos quadrinhos é uma forma de narrar que dispõe de inúmeros recursos e que pode ser explorada de diversas maneiras pelos repórteres que a escolhem como suporte para contar suas histórias.

Augusto Paim, jornalista formado pela UFSM e doutor pela Universidade Bauhaus em Weimar, na Alemanha, escreveu sua tese sobre jornalismo em quadrinhos. Em seu artigo, traz alguns apontamentos: para o autor, a ideia de que a linguagem dos quadrinhos é fácil, infantil ou simples é um conceito ultrapassado; na verdade, é uma forma de narrar que dispõe de inúmeros recursos e que pode ser explorada de diversas maneiras pelos repórteres que a escolhem como suporte para contar suas histórias. Paim posiciona o jornalismo em quadrinhos como uma área, e não apenas como um gênero: “A maneira como a linguagem dos quadrinhos pode encontrar uma possibilidade de uso dentro do jornalismo vai depender do gênero em que se está produzindo conteúdo jornalístico” (p. 68).

No segundo artigo, Luiz Fernando Menezes apresenta uma análise dos gêneros do discurso jornalístico no âmbito do jornalismo em quadrinhos. Menezes é autor, juntamente com a jornalista Amanda Ribeiro, do livro-reportagem em quadrinhos Socorro! Polícia!, publicado em 2018 pela Editora Draco, de São Paulo, produzido como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que é seu objeto de análise no texto. O pesquisador identificou, dentro dessa obra, diferentes gêneros do discurso jornalístico: entrevista, crônica e reportagem. Cada uma delas pode ser percebida pela construção narrativa, e têm finalidades diversas.

Na sequência, Iuri Barbosa Gomes se debruça sobre a produção acadêmica sobre jornalismo em quadrinhos, a partir de um levantamento dos artigos apresentados nas edições nacionais do Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom) entre os anos de 2009 e 2019. Com ênfase no Grupo de Pesquisa (GP) sobre Gêneros Jornalísticos e na Expocom, seção destinada a trabalhos experimentais, o pesquisador identificou apenas quatro trabalhos sobre jornalismo em quadrinhos durante dez anos de congresso. Isso dá indícios de como essa linguagem é abordada nos cursos de jornalismo do Brasil: ainda de forma muito incipiente, mas que vem crescendo ao longo dos anos. Ele aponta também que o jornalismo em quadrinhos suscita uma reflexão importante sobre a distância entre as hard news, apressadas e ditadas pelo ritmo da internet, e da grande reportagem, que depende de longas apurações e de mais tempo para o desenvolvimento do trabalho final.

Gabriela Güllich: opção por reportagens mais aprofundadas Imagem: Reprodução/YouTube

O artigo que finaliza a primeira parte do livro é da pesquisadora Deise Cavignato, que entrevistou quatro mulheres jornalistas-quadrinistas e uma pesquisadora da área para compreender a produção feminina de jornalismo em quadrinhos no Brasil. A partir das falas de Carol Ito, Gabriela Güllich, Helô D’Angelo e Cecilia Marins de Abreu, Cavignato constata que as mulheres da área tendem a colaborar intensamente em seus trabalhos, focar em reportagens e pautas mais “frias”, especialmente devido ao tempo de produção, e também que o jornalismo em quadrinhos vem ocupando mais espaço e ganhando mais leitores na mídia brasileira.

A segunda parte inicia com um breve texto de Vinícius Pedreira, que faz uma apresentação de Joe Sacco, com a biografia do autor, suas aproximações e afastamentos dos temas sócio-políticos pelos quais é mais reconhecido, e também alguns apontamentos sobre a estética e narrativa de suas obras. Essa introdução é muito bem-vinda para aqueles que não conhecem o trabalho de Sacco ou estão pouco  familiarizados com seu estilo.

A presença da autorrepresentação é, de fato, uma das marcas do modelo de reportagem de Joe Sacco, e é uma forma de atestar a presença do jornalismo no local, assim como de transformar a experiência individual do repórter em informação.

O artigo do pesquisador Juscelino Neco de Souza Júnior, na sequência, trata da autobiografia e reportagem em quadrinhos. Para o autor, o formato discursivo da autobiografia foi “um erro fundamental” para as reportagens em quadrinhos, o que hoje constitui um desafio para a separação entre esses dois gêneros, bem como um impedimento para a emergência de novos formatos de jornalismo em quadrinhos. A presença da autorrepresentação é, de fato, uma das marcas do modelo de reportagem de Joe Sacco, e é uma forma de atestar a presença do jornalismo no local, assim como de transformar a experiência individual do repórter em informação.

Joe Sacco autorretratado: narrativa autobiográfica Imagem: The Center for Cartoon Studies (CCS)/Vermont/EUA

Flávio Pinto Valle segue tratando da presença do jornalista nos quadrinhos em sua análise de como Sacco reivindica o estatuto jornalístico nas reportagens em HQ. Segundo o pesquisador, Joe Sacco age como autor, narrador e personagem em suas reportagens. Na condição de autor, o repórter é aquele que orienta a leitura e garante a inscrição da obra no campo do jornalismo. Como narrador, torna-se o protagonista da narrativa: ele é aquele que “sabe”, e transmite o saber por meio da história que é contada. Já como personagem, ele se afirma como jornalista, desempenhando ações típicas de sua função. Dessa forma, Sacco legitima suas reportagens em quadrinhos como peças jornalísticas, transformando-as em documentos autobiográficos.

As narrativas jornalísticas e experiências de palestinidade são o tema do artigo de Vinícius Pedreira Barbosa da Silva, que discorre sobre as representações da Palestina no jornalismo em quadrinhos, uma linguagem que permite criar significados de forma muito particular. Imerso em contexto histórico, o artigo trata de temas e características da obra de Sacco em relação às disputas narrativas sobre a região da Palestina ao longo dos tempos. 

Por fim, o artigo que fecha a coletânea é da pesquisadora Djenane Arraes Moreira, que se debruça sobre a construção das narrativas de ódio nas reportagens de Sacco sobre a Guerra da Bósnia. O jornalismo em quadrinhos, segundo a autora, é um formato narrativo que intensifica a participação do leitor, o que contribui para o impacto das reportagens de Joe Sacco. Por meio da análise de três reportagens do autor sobre a Bósnia, ela discorre sobre o ódio como arma política e ideológica e sobre como isso é retratado nas narrativas em quadrinhos.

Os nove capítulos do livro trazem perspectivas muito interessantes e de grande contribuição para a pesquisa sobre jornalismo em quadrinhos. Uma obra como essa vem para solidificar ainda mais esse campo, que vem crescendo nos últimos anos, como alguns dos autores pontuam em seus artigos. Com intensa discussão teórica, certamente é e será uma excelente referência para futuros estudos.

LEIA MAIS

Recentemente, Mauro César Silveira e Natália Huf, pesquisadores integrantes da equipe do Jornalismo & História, publicaram um artigo sobre jornalismo em quadrinhos e construção da memória. O texto faz parte do dossiê da revista Pauta Geral – Estudos em Jornalismo, publicada pelo Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), e está disponível no site do periódico.

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