Diálogos,  História,  Jornalismo

Os excluídos da História

Jornalismo brasileiro costuma ignorar profissionais dessa área do conhecimento como fontes qualificadas para abordar fatos do passado

Por André Gobi

O historiador é uma figura quase ausente na imprensa brasileira. Não é difícil encontrar reportagens com temas históricos onde não há um historiador comentando. Este profissional geralmente tem dividido as páginas dos jornais com receitas de bolo, com horóscopo e com o Recruta Zero.

No dia 09 de julho deste ano, 2021, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma matéria intitulada Cartas de 1932 revelam histórias de amor e coragem durante a Revolução Constitucionalista. Foi publicada nessa data em referência ao feriado paulista que, segundo a própria Assembleia Legislativa do Estado, comemora a “deflagração da Revolução Constitucionalista de 1932”.

Cartaz de convocação para exército paulista durante a Revolução de 1932 Imagem: Arquivo Histórico de São Paulo

A matéria trata de cartas dos soldados paulistas a seus familiares e amores, escritas enquanto estavam no front. A linha fina logo após o título diz que “pesquisadores preparam livros sobre a revolta paulista”. E aqui chegamos ao que chama a atenção.

Os dois responsáveis pela pesquisa citados pelo repórter são credenciados desta maneira, apenas: pesquisadores. Após uma breve pesquisa, é possível constatar que um deles é historiador, enquanto não há registros de atividades no campo da História por parte do outro. Por se tratar de um tema ligado à História do Brasil e envolvendo uma pesquisa, seria interessante, até boa prática, consultar um historiador para comentar o tema e creditá-lo como tal. Não é o que aconteceu nesse caso. Talvez um deslize ou, então, não tenha sido encontrado outro historiador a tempo para atender ao jornalista. Pode acontecer.

Porém, uma matéria do mesmo veículo, sobre o mesmo tema, no mesmo feriado, mas publicada em 2020, intitulada Mogi Mirim vai restaurar ‘bunker’ paulista da Revolução de 32, também não traz nenhum historiador comentando. Na matéria diz que a estrutura pode ter sido um depósito para insumos agrícolas e que foi usada como uma espécie de bunker para que soldados paulistas se escondessem durante a invasão do exército federal. Não são apresentados, no entanto, registros sobre essa utilização. Quem foi consultado pela reportagem é o turismólogo da prefeitura municipal de Mogi Mirim, cidade próxima a Campinas, descrito também como pesquisador e que conduz de forma teatral os interessados em conhecer a estrutura subterrânea, vestido como um soldado revolucionário. A matéria carece de fundamentações históricas e, em alguns momentos, tem ares de propaganda turística, que foi muito boa para a cidade, que acabara – à época – de ser considerada município de interesse turístico, com o Roteiro de 32, atividade que explora a memória da Revolução.

Se para uma reportagem sobre assuntos econômicos, um economista é consultado, ou para falar sobre uma determinada dieta, um profissional da nutrição é convidado a comentar, entre tantos outros temas, por que o historiador seria frequentemente “desprezado”?

Não há a intenção de menosprezar as matérias ou as pesquisas apontadas, muito menos os pesquisadores. Mas, sim, chamar a atenção para duas reportagens sobre temas caros à História nacional não destacarem um historiador para falar sobre o assunto. Em uma delas, o historiador existente não é citado como tal. Não são casos isolados, existem mais. E aqui fica um questionamento: se para uma reportagem sobre assuntos econômicos, um economista é consultado, ou para falar sobre uma determinada dieta, um profissional da nutrição é convidado a comentar, entre tantos outros temas, por que o historiador seria frequentemente “desprezado”?

Esse questionamento motivou a pesquisa desenvolvida no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LABJOR) da Unicamp sobre a percepção pública da figura do historiador na imprensa. Em um momento onde o negacionismo histórico (e científico, de forma geral) tem ganhado força com revisionismos baseados puramente em correntes ideológicas, é importante entender como a História e o historiador são vistos, principalmente pelos meios de comunicação – ao menos, em uma primeira etapa da pesquisa. A História, para a imprensa, é considerada um conhecimento científico ou mera curiosidade?

E a importância de se compreender como a imprensa entende a História se dá justamente pelo seu papel na formação da opinião pública. Por mais que a imprensa tradicional esteja vivendo uma onda de ataques, seu prestígio ainda é alto, principalmente quando trata de assuntos científicos. Para além do papel histórico que os jornais têm na sociedade moderna, outros fatores atestam sua relevância. De acordo com o resumo executivo de 2019 da pesquisa sobre Percepção Pública de Ciência e Tecnologia realizada pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), os jornalistas são a segunda fonte de maior confiança do público (38%), apenas atrás de médicos (49%). Além disso, de acordo com outra pesquisa do CGEE, de 2015, entre o grupo “Muito Interessado” em Ciência e Tecnologia, 47% faz uso do jornal impresso com muita frequência para se informar sobre assuntos científicos. Já no grupo “Interessado”, a porcentagem dos que leem o jornal com muita frequência também é bem relevante, somando 35%.

Eduardo Bueno também ficou conhecido por declarações machistas e xenófobas em programas de rádio e televisão. No entanto, ele vende livros. O alcance de trazê-lo em uma matéria seria mais interessante para o jornal do que a credibilidade de um historiador de carreira?

Assim, a imprensa tem um papel determinante no que o público entende ou não como conhecimento científico. Partindo das reportagens tomadas como exemplo no início do texto, se olharmos para os dois principais jornais de São Paulo (e do Brasil), Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, a História não parece ser considerada um campo científico. Pelo menos, matérias que tratam de temas históricos não figuram na editoria de Ciência em nenhum dos veículos.

A História e o historiador estão presentes em diversas editorias diariamente

Os dois exemplos citados estão na editoria São Paulo, dedicada a temas gerais. Também está nesta editoria a reportagem Parque Augusta vira sítio arqueológico e revela uma SP de séculos passados, publicada em 01 de agosto de 2020. A matéria conta com depoimento da “supervisora do Centro de Arqueologia de São Paulo”. A profissional em questão é uma historiadora, porém também não foi creditada como tal, apenas como “supervisora”. Confere mais credibilidade?

No recente caso em que manifestantes atearam fogo na estátua do bandeirante Borba Gato, no município de Santo Amaro (SP), reportagem da Folha de S.Paulo preferiu consultar o jornalista e escritor de livros sobre temas históricos Eduardo Bueno, ao invés de um historiador especializado no tema. Bueno é frequentemente consultado para comentar temas históricos, figurando em matérias jornalísticas e documentários, falando sobre temas que vão desde Ditadura Militar até Pré-História. Além disso, tem um canal no YouTube com mais de um milhão de inscritos onde fala sobre assuntos voltados à História, embora não seja uma referência em produção historiográfica. Também ficou conhecido por declarações machistas e xenófobas em programas de rádio e televisão. No entanto, ele vende livros. O alcance de trazê-lo em uma matéria seria mais interessante para o jornal do que a credibilidade de um historiador de carreira?

É possível que Bueno seja visto como uma autoridade em assuntos históricos pelos veículos em virtude dos livros que escreve, corroborando uma hipótese de que para esses dois veículos, a História seja apenas uma pauta para preencher as páginas destinadas a temas culturais ou gerais, uma mera curiosidade, e não resultado de um método de pesquisa e diálogo interdisciplinar entre as Ciências Humanas. Isso pode influenciar na visão do público, considerando o prestígio dos jornais na percepção pública.

Em um momento de absurdos como “nazismo é de esquerda”, “portugueses nem pisavam na África” ou “nem sei o que foi o AI-5”, para não estender a lista de indecências, a imprensa deveria repensar a maneira como transmite o conhecimento histórico, valorizando mais os historiadores que hoje são inimigos declarados de um governo que tem pouco, ou nenhum, apreço pela memória dos muitos que foram excluídos da História.

Em levantamento e análise sobre matérias da Folha e do Estadão durante todo o ano de 2020, constata-se que historiadores estão presentes majoritariamente em conteúdos publicados nas editorias destinadas a assuntos culturais, seguido por pautas políticas. Não raro temas históricos, com um historiador comentando, estão logo após a página de horóscopo, de quadrinhos, às vezes dividindo espaço com uma receita de bolo (que sempre é comentada por uma pessoa formada em gastronomia, nunca por um engenheiro naval. Afinal, a pessoa precisa ser gabaritada para tecer comentários).

Cena rara: presença de historiador para comentar tema histórico

E aqui temos um fato preocupante, pois de acordo com a pesquisa “A Ciência e a Tecnologia no olhar dos brasileiros”, realizada em 2017, também pelo CGEE, temas ligados às Humanidades, como política, arte e cultura obtiveram a menor porcentagem dentre os muito interessados (10% para política e 21% para arte e cultura) e ficaram entre as maiores dentre os nada interessados nesses temas (38% e 15%, respectivamente).

É claro que os historiadores, assim como a História, não estão presentes somente nessas editorias. Assim como outras áreas científicas, estão espalhadas por todas as seções dos jornais. Porém, esse panorama dá uma dimensão do quão restrita é a presença do historiador nos jornais quando citado como tal, principalmente se levarmos em conta o interesse do público apresentado pela pesquisa do CGEE.

Os jornais não são os maiores culpados pelo crescente negacionismo histórico que vem acompanhado de ataques a historiadores e outros pesquisadores das Ciências Humanas. São vários os fatores principais, como uma educação deficiente nesses campos e um ensino de História que por décadas foi sedimentado em narrativa histórica pouco ou nada crítica, amparada na construção de mitos nacionais.

Porém, em um momento de absurdos como “nazismo é de esquerda”, “portugueses nem pisavam na África” ou “nem sei o que foi o AI-5”, para não estender a lista de indecências, a imprensa deveria repensar a maneira como transmite o conhecimento histórico, valorizando mais os historiadores que hoje são inimigos declarados de um governo que tem pouco, ou nenhum, apreço pela memória dos muitos que foram excluídos da História.  A produção do conhecimento histórico é feita por meio de metodologia, não é baseada simplesmente em achismos. A imprensa tem o poder de educar, basta querer mais.

Referências

Bolsonaro diz não ter ‘dúvida’ de que nazismo era de esquerda

Borba Gato não foi caçador de índios, queimaram a estátua errada, diz Eduardo Bueno

Cartas de 1932 revelam histórias de amor e coragem durante a Revolução Constitucionalista

Mogi Mirim vai restaurar ‘bunker’ paulista da Revolução de 32

‘Não sei nem o que é AI-5’, diz general Pazuello, ministro interino da Saúde

Parque Augusta vira sítio arqueológico e revela uma SP de séculos passados

Portugueses nem pisaram na África, diz Bolsonaro sobre escravidão

SOBRE O AUTOR

Historiador formado pela UNESP, André Gobi é especialista em Jornalismo Científico pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LABJOR) da UNICAMP e mestrando em Divulgação Científica e Cultural também pelo LABJOR, onde desenvolve pesquisa na área de Percepção Pública de Ciência e Tecnologia, com foco na percepção pública de História. Possui experiência em editoras voltadas para temas científicos e educacionais e atualmente se dedica à produção de documentários sobre temas científicos e culturais na Pau a Pique Produções.

COMPARTILHE

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *