História,  Jornalismo

A gênese jornalística do Cone Sul: Parte II

Da aliança com o poder à censura da Inquisição: a vida e a morte do Telégrafo Mercantil, o primeiro periódico da Bacia do Rio da Prata

Por Mauro César Silveira

Um desbravador. Um desbravador das letras impressas. No Peru, mas também na Argentina. O espanhol Francisco Antonio Cabello y Mesa partiu de seu país rumo à América do Sul com pouco mais de 20 anos de idade, no final do século XVIII, disposto a dar sequência a suas prematuras experiências com a escrita, seja na imprensa europeia ou na tradução de obras como As aventuras de Telêmaco, do escritor francês François Fénelon. Militar e cortesão agraciado com títulos reais, ele editou na cidade de Lima, a partir de 1790, o Diario curioso, erudito, económico y comercial, considerada a pioneira publicação com circulação diária da América do Sul, que costumava reproduzir artigos dos jornais da península ibérica. Uma década mais tarde, seguiria para Buenos Aires e seria o responsável pelo aparecimento do primeiro periódico da Bacia do Rio da Prata, o Telégrafo Mercantil, rural, político, económico e historiógrafo del Río de la Plata, lançado em 1º de abril de 1801.

Manuel Belgrano retratado em litografía sobre papel, de autoria da pintora suíça Adrienne/Andrea Macaire (1830): homem-chave do Vice-Reinado platino Reprodução: Museo Histórico de Buenos Aires Cornelio de Saavedra/Argentina

A capital portenha, em ebulição desde que se tornara a capital do Vice-Reinado do Rio da Prata, em 1776, como vimos em artigo anterior publicado no Jornalismo & História, atraiu o aventureiro Cabello y Mesa. Em sua passagem pelo Peru, havia cursado Direito Civil e Canônico na Universidad de San Marcos. Essa formação acabou pesando favoravelmente quando ele propôs ao secretário do Real Consulado do Comércio no Vice-Reinado platino, Manuel Belgrano, a criação de uma publicação para divulgar o pensamento ilustrado cristão. Entusiasta pelos benefícios da educação à sociedade, devido a sua passagem pelas universidades ibéricas de Salamanca e Valladolid, entre 1786 e 1793, o bonaerense Belgrano apoiou imediatamente a ideia. Sua aprovação era fundamental para a iniciativa de Cabello y Mesa. Com forte influência na administração regional, ele havia atuado entre 1795 e 1800 como correspondente do importante jornal madrilenho El Correo Mercantil de España y sus Indias. Embora, mais tarde, tenha se afastado da Coroa espanhola e se tornado um dos líderes da Revolución de Mayo, Belgrano era, até então, figura-chave do Vice-Reinado, bem mais poderoso que os secretários administrativos que o antecederam.

“O Vice-Rei, Gabriel de Avilés y del Fierro, e Francisco Antonio Cabello y Mesa deram início ao periódico mancomunados”. Historiador argentino Fernando Sánchez Zinny

Portanto, o Telégrafo Mercantil nasceria sob o signo do poder. As principais interessadas no lançamento de uma publicação, jornalística ou “algo afim”, como sublinha o historiador argentino Fernando Sánchez Zinny (2008), eram as autoridades regionais, “se bem que seu propósito a esse respeito seguramente não era apenas o avanço cultural da sociedade, mas, sim, o desejo de enquadrá-la e dar-lhe uma direção determinada, de acordo com as políticas regalistas, acentuadas em virtude do então predominante despotismo ilustrado, no qual um de seus princípios substanciais está resumido na clássica divisa: Tudo para o povo, mas sem o povo”. Além do indispensável apoio de Manuel Belgrano, a proposta também agradou o principal representante da Coroa espanhola, como sintetiza Sánchez Zinny: “O Vice-Rei, Gabriel de Avilés y del Fierro, e Francisco Antonio Cabello y Mesa deram início ao periódico mancomunados”.

Apesar disso, e da notória carência de informações dos habitantes do território do Vice-Reinado, o projeto editorial do espanhol pode ser visto como um ato de ousadia. Se não fosse a perseverança Cabello y Mesa, certamente, tardaria ainda mais o surgimento de um periódico, em razão da inexistência de um movimento coletivo que o tornasse uma imperiosa necessidade pública. Os historiadores Angel Rivera e Raúl Quintana (1945) sustentam que não seria exagerado afirmar que o jornalista surgiu antes que o jornal e que o segundo foi consequência do primeiro. Mas se o começo do Telégrafo Mercantil deve ser creditado à disposição pessoal de Cabello y Mesa, sua continuidade – por pouco mais de um ano e meio – contou com a adesão de um grupo de intelectuais, que já propagavam o ideário liberal na região. O citado secretário Belgrano não hesitava em disseminar os conceitos apreendidos em sua temporada europeia.

“Ansioso por deixar Buenos Aires a par das populações mais cultas, mercantis, ricas e industriais da iluminada Europa; prestar um serviço a Deus, ao Rei e às províncias argentinas…”. Francisco Antonio Cabello y Mesa, o editor do Telégrafo Mercantil

Antes que o Telégrafo Mercantil fosse lançado, Cabello y Mesa produziu uma “Análisis” da futura publicação, em novembro do ano anterior, como era habitual na época para divulgar os novos periódicos. Em texto que ocupou 16 páginas impressas, ele anunciou que o jornal iria conter artigos que visavam fomentar diferentes ramos do comércio, além de estimular as atividades rurais e a vida econômica em geral. Também seriam apresentadas análises sobre a legislação vigente e sua aplicação, bem como abordagens sobre obras públicas e as riquezas do Vice-Reinado do Rio da Prata. Na parte destinada ao papel de “historiógrafo” que complementava o título, a pretensão era abrir espaço para um amplo campo de questões, como a moral pública, a polícia urbana, a educação, a medicina, a botânica, a literatura, a poesia e até mesmo “fantasias jocosas”. Aos primeiros assinantes que acreditaram no projeto, Cabello y Mesa realçou, numa folha impressa em 14 de fevereiro de 1801, os principais objetivos de sua empreitada: “Ansioso por deixar Buenos Aires a par das populações mais cultas, mercantis, ricas e industriais da iluminada Europa; prestar um serviço a Deus, ao Rei e às províncias argentinas…”.

Edição do primeiro número do Telégrafo Mercantil, de 1º de abril de 1801: início como publicação bissemanal

Com oito páginas no formato conhecido como cuarto menor – geralmente, no tamanho de 16 por 22 centímetros -, o Telégrafo Mercantil começou, em 1º de abril daquele ano, como bissemanal, circulando todas as quartas e sábados, com uma apresentação gráfica discreta, mesmo para os padrões da época. Dentro dos limites da monarquia espanhola, o primeiro número reiterava, nas páginas 3 e 4, as linhas da proposta editorial, com pretensões de representar um avanço ao conhecimento dos habitantes de Buenos Aires: “Comece minha pena, enfim, a informar aos leitores de todos os objetos, progressos e novos descobrimentos da História, da antiguidade, das produções naturais, das Artes, das Ciências e da Literatura deste país ameno, rico e venturoso”. Em alguns meses, o Telégrafo Mercantil passou a circular também aos domingos e o volume impresso sofreu variações, chegando a apresentar edições de apenas quatro páginas. Ao todo, a coleção do primeiro jornal do Cone Sul soma 110 números, com dois suplementos e 13 edições extras, num total de quase 1.300 páginas.

“E que todos os que entrem nesta Sociedade sejam Espanhóis nascidos nestes Reinos, ou nos da Espanha, Cristãos velhos, e limpos de toda a raça ruim, pois não se admitirá nela nenhum Estrangeiro, Negro, Mulato, Chinês…” Francisco Antonio Cabello y Mesa, o editor do Telégrafo Mercantil

Na folha que antecedeu a primeira edição do Telégrafo Mercantil, estavam relacionados todos os que subscreveram o jornal antes mesmo dele sair às ruas. Eram 145 residentes na capital do Vice-Reinado e 101 “forasteiros”, o que supõe um número total maior que 246, na medida em que algumas pessoas assinaram mais de um exemplar. Os interessados poderiam optar por um plano mínimo de um mês, que condicionava o preço ao local da moradia, resultando em cobranças proporcionais aos gastos de expedição do periódico. O perfil médio dos leitores foi delineado em estudo de Martínez Gramuglia (2010), que excluiu as assinaturas institucionais, referentes a vários órgãos da administração regional. A pesquisa envolveu um universo de 331 assinantes, liderados pelos comerciantes, que somavam 116 pessoas, e pelos funcionários públicos, com 106 subscrições, seguidos pelos militares (36) e os eclesiásticos (32), o que evidencia o apoio político e religioso à publicação. Depois, vinham profissionais de outras áreas (14), não identificados (18), outras ocupações (8) e um artesão.

A viabilização do periódico animou Cabello y Mesa a desenvolver novos projetos. Na página 3 da segunda edição, de 4 de abril de 1801, ele expôs seu plano de criação da Sociedade Patriótica, Literária e Econômica do Rio da Prata, aos moldes das instituições similares originadas mais de um século antes na França, de Luís XIV e na Inglaterra, de Carlos II, como fez questão de destacar. Os termos da proposta dão uma boa ideia do espírito do iluminismo ibérico que se estendia pela América do Sul: “Primeiramente, imagino criar este Sábio e Ilustre Corpo, sob a proteção imediata do Exmo. Sr. Ministro da Fazenda das Índias, da Real Junta Governativa, e Econômica do Consulado, como sua Subdelegada nestas Províncias; e que todos os que entrem nesta Sociedade sejam Espanhóis nascidos nestes Reinos, ou nos da Espanha, Cristãos velhos, e limpos de toda a raça ruim, pois não se admitirá nela nenhum Estrangeiro, Negro, Mulato, Chinês…”

Como os textos críticos e satíricos, não previstos na proposta original, desagradavam também os representantes do Santo Ofício, o fechamento do periódico passaria a ser apenas uma questão de tempo.

Ideologia ilustrada espanhola à parte, o Telégrafo Mercantil revelou-se, durante sua existência, um painel diversificado de temas e gêneros de textos. As páginas acolheram polêmicas literárias, por vezes candentes, e em outras dotadas de elevado nível de conhecimento e respeito pelas opiniões dos demais. Compareciam leitores – reais ou fictícios – com opiniões sobre os artigos publicados, aumentando o interesse dos poucos assinantes e constituindo-se “num recurso nada desdenhável desde o ponto de vista jornalístico para aquela primeira expressão da imprensa rio-platense”, como assevera Miguel Ángel De Marco (2006). Proliferavam notas sobre fatos da atualidade e, em algumas edições, os relatos se apresentavam mais detalhados e se aproximavam do que viria ser a reportagem, como na narrativa do exercício militar realizado em Montevideo, em 10 de maio de 1802. Os principais acontecimentos europeus e os dados sobre atividades mercantis e marítimas eram presença frequente nas páginas do Telégrafo Mercantil, bem como preços de produtos em diferentes localidades e o quadro geral da produção no Vice-Reinado. As notícias locais, especialmente as agrícolas, acabariam ganhando espaço no madrilenho El Correo Mercantil de España e sus Indias, invertendo, em determinados momentos, o fluxo de informações entre Espanha e América.

Rei Carlos IV ignorou apelo de Cabello y Mesa Reprodução: Pintura de Francisco de Goya/Wikimedia Commons

Depois de um ano de vida, o jornal passou a viver sérias dificuldades financeiras, face à insuficiência de recursos provenientes dos assinantes e dos pequenos anúncios para atender todas as despesas. Cabello y Mesa chegou a apelar, em correspondência enviada ao rei Carlos IV, para que a subscrição do periódico fosse estendida, compulsoriamente, a todos os órgãos do governo, mas não obteve êxito. Nessa época, os homens da administração do Vice-Reinado do Rio da Prata já não viam com bons olhos a publicação e, logo depois, limitaram a assinatura em dois exemplares – para serem remetidos à metrópole – e exigiram que o advogado cumprisse os objetivos propostos antes do lançamento do primeiro número do Telégrafo Mercantil. Como os textos críticos e satíricos, não previstos na proposta original, desagradavam também os representantes do Santo Ofício, o fechamento do periódico passaria a ser apenas uma questão de tempo. Em outubro de 1802, o Vice-Rei Joaquín del Pino Sánchez de Rozas Romero y Negrete, que assumira o cargo no ano anterior, retirava a licença de impressão, “por abusar dela e por pouca habilidade na escolha das matérias”.

Se a proibição de meios impressos no Brasil até a chegada da família real, em 1808, atrasou o nascimento do nosso jornalismo, as vizinhas nações colonizadas pela Espanha sofreram a ação dos diligentes inquisidores, controlando a ferro e fogo os primeiros periódicos em solo americano.

Com apenas quatro páginas, o primeiro jornal da região publicava seu último número em 17 de outubro de 1802, sob o título Telégrafo Extraordinário Del Rio de la Plata. Na capa, destacava o casamento da infanta María Isabel com seu primo Francisco, herdeiro do Reino das duas Sicílias, ocorrido mais de três meses antes na Espanha. No restante da edição, era transcrito um texto oriundo de Paris, de 21 de novembro do ano anterior, sobre experimentos de vacinação contra a varíola. Logo depois dele, na derradeira página, duas curtas notas encerravam definitivamente o periódico: a chegada de uma embarcação partira de La Coruña, no noroeste da península ibérica, em 21 de junho, e o anúncio da venda de um “negro regular cocinero em 360 ps.”. Depois de tentar revitalizar o teatro Coliseo e exercer a advocacia em Buenos Aires, Cabello y Mesa regressaria à Espanha, onde se integrou às hostes dos chamados afrancesados, que apoiavam a posse de José Bonaparte, em 1808, no lugar do rei Fernando VII.

Os entraves econômicos para viabilizar a publicação talvez expliquem a crescente liberdade editorial que tanto incomodou as autoridades do Vice-Reinado. Mas o fim do Telégrafo Mercantil se deve, sobretudo, ao poder clerical, em congraçamento secular com a monarquia espanhola. Ao tomar conhecimento do texto Retrato Político Moral del Gobierno Secular y Eclesiástico antiguo y moderno de la Sierra del Perú, com pesadas acusações a membros da Igreja, publicado na edição de 15 de outubro de 1802 do Telégrafo Mercantil, o comissário do Tribunal da Inquisição, Cayetano José M. de Róo, enviou uma dura nota ao Vice-Rei, solicitando providências imediatas. Em outras palavras, o fim do jornal.

Se a proibição de meios impressos no Brasil até a chegada da família real, em 1808, atrasou o nascimento do nosso jornalismo, as vizinhas nações colonizadas pela Espanha sofreram a ação dos diligentes inquisidores, controlando a ferro e fogo os primeiros periódicos em solo americano. Uma prática que remonta à ascensão do frade dominicano Tomás de Torquemada, confessor da rainha Isabel I, ainda no século XV, e que ganhou cruel notoriedade por agir sem clemência contra judeus, e mesmo muçulmanos convertidos, ou contra qualquer pessoa suspeita de ato considerado herege. Aliás, a representação espanhola do Santo Ofício contava com autonomia para reprimir e mesmo exterminar qualquer dissidência religiosa, através de concessão especial do Vaticano. E que se estendeu por um largo período histórico: de 1478, com sua fundação pelos chamados Reis Católicos – Isabel e Fernando – até 1834, quando a Inquisição foi finalmente abolida no país. Exatos 356 anos de existência. Muito ruim para os espanhóis e os habitantes das suas imensas áreas colonizadas. Péssimo para o jornalismo. Aqui ou acolá.

Referências

DE MARCO, Miguel Ángel. Historia del periodismo argentino: desde los orígenes hasta el centenario de MayoBuenos Aires: Editorial de la Universidad Católica Argentina, 2006.

SÁNCHEZ ZINNY, Fernando. El periodismo en el virreinato del Río de La Plata. Buenos Aires: Academia Nacional de Periodismo, 2008.

SILVEIRA, Mauro César. Um pecado original: os primórdios do jornalismo na Bacia do Rio da Prata. Florianópolis: Insular, 2014.

Referências Webgráficas

MARTÍNEZ GRAMUGLIA, Pablo. A la búsqueda de lectores: el Telégrafo Mercantil. Questión – Revista Especializada en Periodismo y Comunicación, Instituto de Investigaciones en Comunicación, Facultad de Periodismo y Comunicación Social, Universidad Nacional de La Plata, La Plata, n. 27, v.1, jul./sept. 2010. Disponível aqui.

RIVERA, Angel; QUINTANA, Raúl. Los géneros periodísticos en la época colonial. El Monitor de la Educación Común, Consejo Nacional de Educación, Buenos Aires, p.3-96, 1945. Disponível aqui.

COMPARTILHE

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *