História

Goleada histórica

Tradicional clube argentino Huracán restitui os títulos de oito sócios desaparecidos durante a ditadura, em comovente ato a favor da Memória, Verdade e Justiça

Por Mauro César Silveira

Certificados e um livro, mais duas contribuições do Huracán para a memória histórica da Argentina Imagem: Memoria Quemera/Prensa Huracán

As portas do velho El Palacio se abriram, sem tanto alvoroço, no entardecer da terça-feira passada, dia 5 de outubro. Não era um jogo qualquer no estádio Tomás Adolfo Ducó, inaugurado em 1949, no bairro portenho de Parque Patricios, que abriga as partidas do centenário Club Atlético Huracán. Havia um profundo respeito no ar. Era uma disputa mais dura, uma luta contra o esquecimento, uma atitude de resistência ao apagamento do passado argentino. Reunindo torcedores, dirigentes, atletas e ex-atletas do Globo, como o clube é conhecido, uma cerimônia comovente restituiu a condição de associados de oito desaparecidos durante a ditadura civil-militar que se abateu sobre o país entre 1976 e 1983. Os familiares das vítimas receberam as reimpressas carteiras de sócios, os certificados que atestam a decisão e o Huracán ainda lançou um livro em homenagem a esses torcedores presos e mortos por agentes do Estado, intitulado Restitución de carnets: Socios detenidos-desaparecidos y asesinados por el terrorismo de estado.

Oito pessoas foram acolhidas por “um enorme abraço da Memória, Verdade e Justiça”, como sintetizou muito bem o sociólogo e jornalista Facundo Martínez, colunista do jornal Página/12, de Buenos Aires. São elas: Norberto Morresi, Oscar Oshiro, Norberto Hugo Palermo, Pablo Reguera, José Sanabria, Jorge Gurrea, Daniel Vázquez e Eduardo Vicente. “Esses oito sócios viviam a paixão do futebol, a paixão do bairro, a paixão da luta; este é um ato pela dignidade”, ressaltou no evento o ex-presidente do Huracán, Néstor Vicente, co-autor da obra Restitución de carnets e hoje responsável pela Comissão de Cultura e Direitos Humanos do clube argentino.

“Em vez de disputar uma vaga no Huracán, Norberto preferiu, aos 17 anos, ser um militante por uma Argentina melhor, quando foi sequestrado e, depois, assassinado”. Ex-jogador Claudio Morresi sobre seu irmão

Claudio e Norberto na base do Huracán: sonho desfeito Foto: acervo pessoal

Um dos homenageados, Norberto Morresi, jogou nas categorias de base do Globo. Seu irmão Claudio, ex-atleta que também começou no Huracán e hoje é deputado pela coalizão Frente de Todos, relembrou a convivência dos dois naquela época: “Ainda meninos, quando vínhamos ao estádio, sonhávamos com jogar juntos com esta camiseta, mas em vez de disputar uma vaga no Huracán Norberto preferiu, aos 17 anos, ser um militante por uma Argentina melhor, quando foi sequestrado e, depois, assassinado”. Claudio fez questão de dimensionar o contexto do país naquele período histórico, além de buscar um consolo na solenidade realizada frente ao gramado do El Palacio: “30 mil pessoas. Uma grande arquibancada de pessoas desaparecidas. Eu penso que todos eles estão nos olhando e acredito também que ficam felizes quando nos veem, creio que se sentem orgulhosos de suas mães e demais familiares”.

O comprometimento do clube de Buenos Aires com a causa dos direitos humanos também está perpetuada no hall de entrada do estádio. Na mesma cerimônia, foi descerrado um mosaico erigido ao lado de outras placas históricas do clube, evocando a luta por justiça das Madres de la Plaza de Mayo, através da imagem de um emblemático lenço branco. “Quero felicitar ao Huracán por este lindo encontro de pessoas que têm memória. Muitíssimo obrigado em nome de todos aqueles e todas aquelas que já não estão entre nós, mas que graças a vocês continuarão estando”, manifestou-se Taty Almeida, da entidade Madres de la Plaza de Mayo Línea Fundadora, celebrando também iniciativas de outros times de futebol da Argentina. “Espero que continuem se somando mais clubes”.

“Essas oito histórias são o pontapé inicial de um tema que seguiremos trilhando”. Néstor Vicente, co-autor da obra Restitución de carnets e diretor do Departamento de Cultura da AFA

Cerimônia diante do gramado do El Palacio Foto: Alejandro Santa Cruz/Télam
Madres de la Plaza de Mayo perpetuadas no hall de entrada do estádio Tomás Adolfo Ducó Foto: Alejandro Santa Cruz/Télam

Tudo começou há apenas dois anos, em 3 de outubro de 2019, quando o Banfield, da cidade de Lomas de Zamora, na Grande Buenos Aires, se tornou a primeira instituição esportiva do país a restituir a condição de sócios de pessoas desaparecidas durante a ditadura. No ato público denominado Los 11 de Memoria, realizado no estádio Florencio Sola, foram entregues os títulos de associados a familiares e amigos das vítimas. A homenagem culminava o persistente trabalho do Coletivo de Direitos Humanos do clube. Depois disso, outras agremiações, como o Ferro Carril Oeste, do bairro portenho de Caballito, o Racing, de Avellaneda, e o Estudiantes de La Plata, aderiram à ideia. E, no mês de março deste ano de 2021, Argentinos Juniors, Boca Juniors e River Plate anunciaram a intenção de promoverem ações semelhantes a favor da memória histórica. “Com certeza, existem muitas outras histórias como essas que estão sendo compartilhadas aqui, mas essas oito histórias são o pontapé inicial de um tema que seguiremos trilhando”, apontou Néstor Vicente, que também ocupa o cargo do Diretor do departamento de Cultura da AFA (Asociación del Fútbol Argentino).

O bom exemplo platino convida à reflexão. Seria pedir muito que alguns clubes brasileiros se inspirassem nos vizinhos argentinos e se engajassem na luta para não apagar nosso passado? O compromisso com a construção da memória coletiva, projetando sempre um futuro melhor, tem sido o motor e o êxito de iniciativas como as do Banfield e do Huracán. Por que não fazemos o mesmo em nosso amnésico país?

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O canal no YouTube da Télam, a principal agência pública de notícias da Argentina,  exibe cenas da cerimônia e depoimentos de alguns participantes:

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