História,  Jornalismo,  Resenha

Viagem à pré-história do jornalismo

Exposição virtual da Universidad de Sevilla exibe publicações impressas que circularam no ano de 1621 em diferentes cidades europeias

Por Mauro César Silveira

Publicação intitulada Estado i sucesso de las cosas de Japón, China i Filipinas, impressa em Sevilha por Francisco de Lyra, exposta na sala Notícias de outros mundos Fonte: Tsukuba University Library/Japão

Eram tempos de avisos e relações. Quatro séculos atrás, a circulação de notícias impressas no continente europeu ainda não vencera a barreira do tempo e do espaço, que seria superada somente depois do aparecimento do telégrafo, em 1838. Essa massa informativa também carecia de periodicidade regular, uma das principais características da atividade jornalística atual. Mesmo assim, no distante ano de 1621, muitas publicações registravam as principais decisões e ocorrências da época, oferecendo um painel vivo, movimentado, por vezes chocante, ainda que sob a forma de relatos tardios. Textos ora objetivamente minuciosos, ora flagrantemente fantasiosos, mas sempre reveladores. Esse precioso conjunto impresso pode ser conhecido agora na exposição virtual El mundo en 1621: avisos, relaciones de sucesos y conexiones culturales, lançada pela Universidad de Sevilla durante seminário internacional com o mesmo título realizado na capital andaluza nos dias 18 e 19 deste mês de outubro.

São narrativas que compõem os prelúdios do jornalismo europeu, um período que muitos estudiosos definem como o da sua pré-história. Sob a égide aristocrática, múltiplos redatores estabeleceram a primeira grande rede de informações no continente: um grupo formado por escribas profissionais, ocupantes de cargos políticos e militares, religiosos e comerciantes. Através deles, se sabia que uma cidade da Europa havia sido sitiada ou que uma frota do império espanhol combatera piratas holandeses em alto mar. Nas páginas impressas também se tomava conhecimento de grandes desastres naturais e da atuação de missionários católicos na China e no Japão ou em povoados remotos da Argentina. Um quadro diversificado e nitidamente voltado à composição do imaginário social nos países da região. A exposição está dividida em oito salas temáticas: A Guerra dos Trinta Anos, A rebelião dos huguenotes, Novas de um novo reinado: Andrés de Almansa, Notícias de outros mundos, O eterno inimigo, Figuras centrais, Festejar em tempos de crise e Uma dose de espanto.

As relações eram constituídas de textos caracterizados por uma narrativa detalhada, com traços eventualmente literários, sobre um único fato.

Publicação intitulada Relacion de las cosas del inperio: Brusselas, a 30 de Maio 621, impressa em Sevilha por Francisco de Lyra, exposta na sala A Guerra dos Trinta Anos Fonte: Biblioteca de la Universidad de Sevilla

O ano de 1621 foi particularmente pródigo em acontecimentos, como ressaltam os pesquisadores dos grupos envolvidos no projeto, vinculados às universidades ibéricas da Coruña e de Sevilla e à instituição francesa Université Besançon. Entre os muitos eventos destacados, figuram o avanço da monarquia espanhola sobre a região alemã do Palatinado, após a derrota do rei da Boêmia, Frederico V, na Batalha da Montanha Branca, ocorrida em 8 de novembro de 1620; as ações militares do Império Otomano no Mediterrâneo e em áreas da Hungria e Polônia; e as mortes do arquiduque Alberto, da Áustria, que governava os Países Baixos, e de Felipe III, rei da Espanha. Para descortinar as publicações que registraram esses fatos, precisou haver um esforço interinstitucional: as versões digitalizadas reunidas na exposição virtual da Universidad de Sevilla procedem de diferentes bibliotecas europeias, americanas e asiáticas, com o devido reconhecimento na descrição de cada um dos títulos disponibilizados.

As duas principais formas de comunicação impressa eram herdeiras de uma tradição manuscrita, pré-Gutenberg. Os avisos costumavam oferecer informações sobre o movimento de barcos e preços de mercadorias. Bem mais interessantes, as relações projetam-se, com vigor, no material exposto pela Universidad de Sevilla. Eram textos caracterizados por uma narrativa muito mais detalhada, com traços eventualmente literários, sobre um único fato. “São reportagens primitivas centradas em um acontecimento, real ou imaginário, mas apresentado como real”, definem as historiadoras María Cruz Seoane e María Dolores Sáiz (2007, p. 17). Quando tratavam de temas verossímeis e com maior objetividade, igualmente eram destinadas a uma elite. Mas as relações podiam ser caracterizadas por abordagens sensacionalistas, explorando temas passionais ou mesmo apresentando textos ficcionais e, nesse caso, se dirigiam a um público mais abrangente, fundamentalmente urbano, formado por artesãos e comerciantes, embora pudessem ser lidas pelas pessoas do campo quando faziam suas compras.

Mesmo difundindo notícias sensacionalistas, essas publicações geralmente empregavam as palavras verdadeira, autêntica ou verossímil, entre outras, para qualificar a palavra relação.

Aliás, no século XVII, as relações iriam predominar nesse incipiente mercado noticioso, superando os avisos e as antigas cartas, de tom mais privado, mais voltadas aos monarcas. Em alguns casos, as impressões desses relatos ultrapassavam a mil, atraindo leitores pelo preço baixo e sua forma de difusão, favorecida pelo seu fácil transporte, e atingindo amplas camadas da população, mesmo as mais pobres e analfabetas, porque era comum naquela época a leitura coletiva de textos nas mais diferentes regiões europeias. As professoras Seoane e Sáiz sustentam que as relações tinham o alcance da literatura de cordel e que, de certo modo, se constituíam numa das suas variantes.

Publicação intitulada Relacion verdadera en la qual se da cuenta como diez galeras de Francia junto al estrecho de Gibraltar tomaran quatro naves de turcos, da se cuenta de la batalla, y lo que venía en las naves, impressa em Barcelona por Esteban Liberos, exposta na sala O eterno inimigo Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal

Mesmo difundindo notícias sensacionalistas, essas publicações geralmente empregavam as palavras verdadeira, autêntica ou verossímil, entre outras, para qualificar a palavra relação. Invariavelmente, um desses adjetivos antecedia o nome do impresso. O formato mais comum era 21,5 por 31,5 cm. Mas havia relações que publicavam versos populares no tamanho 22 por 16 cm e de dimensões menores – 11 por 8 -, embora bem menos frequentes. Outros dois formatos utilizados eram igualmente pequenos: 20 por 15 e 15 por 10 cm. As edições variavam entre 4 e 8 páginas e algumas vezes apresentavam uma gravura relacionada com o tema abordado: o desenho de um barco para indicar uma batalha naval, uma flor de lis – a figura heráldica – para se referir a um acontecimento ocorrido na França ou uma cabeça ornada com turbante para ilustrar notícias da Turquia ou do norte da África.

Na península ibérica, as relações receberam diferentes nomes: folhas volantes, folhas de notícias e até mesmo expressões semelhantes àquelas que denominaram os primeiros manuscritos – avisos e cartas novas. Eram comercializadas nos próprios estabelecimentos dos impressores/livreiros e, de forma ambulante, pelos cegos, que tinham autorização dos monarcas para a venda de todo o tipo de impresso na Corte. E contaram com fatores econômicos, sociais e políticos para sua rápida expansão desde o final do século XV: a união ibérica, a conquista de Granada, o início da colonização americana, a evolução dos serviços postais. As cartas de Cristóvão Colombo de 1493 foram reimpressas inúmeras vezes, juntamente com os relatos dos outros navegantes e exploradores, como Hernán Cortés, Américo Vespucio e Alvar Yáñez Cabeza de Vaca. Outro registro histórico importante é a Narración de la batalla de Lepanto – episódio militar de 1573.

A exposição El mundo en 1621: avisos, relaciones de sucesos y conexiones culturales se soma a outras valiosas mostras organizadas pela biblioteca da Universidad de Sevilla no espaço virtual EXPOBUS. Além de rico material do acervo histórico da instituição, estão disponibilizadas visitas online organizadas em seis áreas: Arquitetura, Belas Artes, Comunicação, Economia, Psicologia e Saúde. Vale a pena conhecer.

Referência

SEOANE, María Cruz; SÁIZ, María Dolores. Cuatro siglos de periodismo en España; de los avisos a los periódicos digitales. Madrid: Alianza, 2007.

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