História,  Jornalismo

Nem sempre um mar de leveza

Características da crônica jornalística vão bem mais além da espontaneidade de quem escreve, da simplicidade aparente do texto ou da abordagem de temas considerados amenos

Por Kelly Yshida

Em 1977, Lourenço Diaféria foi preso devido à publicação na Folha de S. Paulo da crônica intitulada Herói.Morto.Nós. Nela, o cronista elogiava um sargento que havia falecido ao salvar uma criança em um zoológico, comparando aos altos escalões que a estátua do duque de Caxias representava naquele momento, dizia inclusive que “o povo urina em heróis de pedestal”. Em meio à ditadura, o texto foi considerado ofensivo aos militares e gerou debates em torno da crônica jornalística.

Reprodução de imagem da página 85 do livro Crônicas do meu tempo, de Trudi Landau, publicado em São Paulo por Massao Ohno/Roswhita Kempf Editores no ano de 1981

Diaféria era um cronista reconhecido, ao tratar de sua atividade ele escreveu que o que é considerado banal não significa algo desimportante: “São apenas coisas que nunca chegam às manchetes da imprensa e ao horário nobre da televisão”. Dessa forma, a crônica possibilita a atenção para o que está além das narrativas excepcionais, das grandes obras, dos personagens consagrados. É no rés do chão que estão aqueles por trás das manchetes de fome, violência, desemprego, nomes que uma capa não teria espaço suficiente pra comportar. Mesmo que o gênero tenha funcionado, por vezes, como “anestesia para as dores da classe média branca” como apresentou a recente crítica de Paulo Roberto Pires.

Mas como que textos para serem breves como nos ensinou o título Comentários da semana, da série de Machado de Assis, poderiam trazer graves consequências ao autor? Ao pesquisar sobre o caso de Diaféria, surgiram algumas inquietações sobre esse gênero literário: a crônica jornalística é um espaço mais leve no jornal? Será que ela é sempre tão despretensiosa? A partir de questionamentos como estes, da trajetória de diferentes cronistas e dos estudos das áreas de História e de Literatura, alguns fatores me parecem centrais para entender este gênero, seja na pesquisa ou na leitura cotidiana.

A primeira característica da crônica jornalística é sua vinculação com o jornal. Uma afirmação óbvia, mas que traz um leque de informações, pois implica na periodicidade, forma, duração, relação com a notícia, configuração do grupo que edita o jornal, relações políticas, censuras, públicos. Mais do que um simples suporte, o jornal faz parte dos embates e do imaginário de uma época. Os textos presentes nele, mesmo considerados efêmeros, ordenam a compreensão dos acontecimentos e dão sentido a uma gama de informações fragmentadas. O cronista, como parte desse mundo, tem como material o cotidiano que tanto fornece conteúdo quanto o faz redirecionar seu foco.

A crônica pode auxiliar na construção de uma história da literatura que questione os lugares de consagração, não como forma de competir por espaço no cânone, mas de perceber que a literatura está na sociedade por outros meios.

A questão do financiamento e da fugacidade foi comentada por Antônio Dimas, que verificou que por vezes há certa “má vontade” com o gênero. Em uma situação em que o escritor elaborava seus textos para garantir renda e que aquela não era sua finalidade como obra de consagração, a crônica tendia a ser vista como trabalho vinculado ao mercado e distante de uma elaboração artística que mereceria prestígio. Nesse caso, o escritor capaz de obras mais densas e profundas consideraria que estava dispensando seu esforço para a necessidade material.

Crônica de Lourenço Diaféria incomodou tanto os militares que ele ficou preso cinco dias, além de ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional Foto: Portal dos Jornalistas

Mas não podemos tirar conclusões generalistas sobre o que consideram todos os cronistas sobre seus ofícios. Além disso, muitos escritores não eram exclusivamente cronistas, como Machado de Assis e os romances, Nelson Rodrigues e o teatro, Clarice Lispector com seus romances e contos.

A trajetória da crônica jornalística no país demonstra ligação com a literatura nacional, onde temos nomes consagrados, e com a formação da imprensa. Mas tanto a literatura quanto a imprensa passam por diferentes fases; por exemplo, há particularidades quando pensamos sobre o jornalismo do século XIX e o do início ou ainda da segunda metade do século XX. Seu alcance e modo de operar se tornaram cada vez mais ligados a uma estrutura mercadológica das empresas de comunicação. Compreender a mídia brasileira neste recorte significa perceber mudanças tanto técnicas quanto políticas.

De qualquer forma, o questionamento desta valoração acaba por exaltar as especificidades do texto. Para quem pesquisa, mesmo os “medíocres acidentes” ou as “rápidas tomadas de consciência” são lugares legítimos de percepção do mundo. Considerada menor, híbrida ou filha bastarda da arte literária, ainda assim como parte da literatura. Ainda mais evidente, nesse sentido, as coletâneas e as biografias de escritores nacionais não nos deixam mentir em relação à categorização destes textos como parte da produção literária.

A crônica pode auxiliar na construção de uma história da literatura que questione os lugares de consagração, não como forma de competir por espaço no cânone, mas de perceber que a literatura está na sociedade por outros meios. O cronista, alocado em um jornal específico, estabelece uma certa conversa com o leitor diária ou semanalmente. Nesse sentido, podemos pensar no ganho de uma análise que atente para uma série determinada pelo autor ou editor do jornal ou delimitada por outros parâmetros. Certamente percebê-las como um contínuo a partir da regularidade pode nos apresentar muito mais do que breves literaturas diárias.

Convenciona-se dizer que a crônica jornalística trata de amenidades, coisas miúdas, pequenos percalços da vida cotidiana, mas devemos tomar cuidado para não cair na armadilha de ver apenas graça e elaborações subjetivas dos autores.

O convívio entre o caráter literário, o aspecto lúdico e a atuação informativa e crítica não é algo inviável. De acordo com Antônio Candido a simplicidade desses textos permite que eles tenham profundidade de significado e um acabamento de forma particular. Por isso, considera que é importante insistir na simplicidade e compreendê-la, uma vez que sua forma e conteúdo se tornam um modo privilegiado de mostrar muita coisa que “divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas”.

Mas podemos questionar essa espontaneidade do cronista, que varia de acordo com o veículo e o contexto. Afinal, até que ponto o texto feito em um veículo comercial, que em determinadas conjunturas estiveram diante de censuras, pode ser um lugar privilegiado de acesso às concepções mais espontâneas? Não se nega que a linguagem coloquial ou o ritmo rápido de produção permitam possibilidades particulares de expressão. Mas também são ferramentas próprias da crônica jornalística e que, quando bem articuladas, permitem que transite entre a reflexão do autor e a notícia.

Texto intitulado Herói.Morto.Nós foi publicado no suplemento Folha Ilustrada em 1º de setembro de 1977

Sua durabilidade pode se expandir ao ser posta em livro, mas ganha novos significados. Para análises em que se pretende compreender a literatura no meio em que é produzida, quais seus diálogos mais mundanos, ganhamos ao acessar o jornal, cotejar o texto em meio às notícias, à redação, inserida em uma empresa ou um grupo de intelectuais. Podendo por vezes compreender as inquietações e referências que envolviam leitor e escritor. Justamente essas entrelinhas que são tão difíceis para acessarmos quando contrapomos uma narrativa macro a um texto cotidiano e opinativo.

É importante destacar que a realidade expressa pela crônica jornalística não se reduz às alusões diretas. As relações que ultrapassam os limites da redação do jornal são importantes para perceber e fundamentar as próprias escolhas dos autores. Há, para além das notícias, outras questões das quais eles lançam mão, de sua própria formação e de cenários externos. É importante lembrar que, mesmo sem notícias ou outras referências explícitas, os debates são sempre relacionados às possibilidades da realidade vivida.

A liberdade de criação que o autor tem diante de seus personagens, cenários, diálogos e de toda a estrutura que compreende o texto, não é ilimitada. Mesmo considerando a potencialidade criativa, há um vínculo entre a obra e o autor que não é, de forma alguma, alheio à sociedade e ao tempo em que vive. O escritor tem seus limites, suas condições, e aquilo que produz não é imune a isto.

Convenciona-se dizer que a crônica jornalística trata de amenidades, coisas miúdas, pequenos percalços da vida cotidiana, mas devemos tomar cuidado para não cair na armadilha de ver apenas graça e elaborações subjetivas dos autores. Assim, talvez em meio às notícias, nessa literatura que se diz ao rés do chão, podemos encontrar menos “coisas doces e leves” do que esperamos.

Referências

ASSIS, Machado de. O Jornal e o livro. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2011.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, Antônio. A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 13-22.

CHALHOUB, Sidney; NEVESMargarida de SouzaPEREIRALeonardo Afonso de Miranda. História das cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2005.

DIMAS, Antônio. Ambiguidade da crônica: literatura ou jornalismo?. Revista Littera. n. 12, Ano IV, set/dez, Rio de Janeiro, 1974, p. 46-51.

LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla (org). Fontes históricas. 2a ed. São Paulo: Contexto, 2006, p.111-153.

PIRES, Paulo Roberto. Exclusão crônica. Folha de S. Paulo. 29 de outubro de 2020.

YSHIDA, Kelly. O falso cômico e o circo urbano: Lourenço Diaféria e o processo desencadeado pela crônica jornalística Herói.Morto.Nós (1977-1980). 284 p. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.

SOBRE A AUTORA

Foto: Acervo pessoal

Integrante do Núcleo de Estudos História, Literatura e Sociedade da Universidade Federal de Santa Catarina (NEHLIS-UFSC)  e docente em Gastronomia, Kelly Yshida é Mestra (2015) e Doutora (2020) em História pela UFSC. Também é formada em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2012) e possui graduação em Gastronomia pelo Instituto Federal de Santa Catarina (2019). Pesquisou imprensa e ditadura na graduação e no mestrado, entrando no mundo das crônicas jornalísticas já no século XX, com as de Lourenço Diaféria. No doutorado, ao estudar a relação entre Brasil e Japão no século XIX, as crônicas continuaram presentes. Entre os temas sobre os quais se debruça estão a literatura e os impressos nos séculos XIX e XX.

VEJA TAMBÉM

Cartaz do filme Mineirinho, de Aurélio Teixeira, lançado em 1967

A jornalista e escritora Clarice Lispector também se ocupou de temas nada leves em seus primorosos textos publicados na imprensa brasileira. A morte do assaltante fugitivo conhecido como Mineirinho, no dia 1º de maio de 1962, depois de ser perseguido por uma força policial composta por 300 homens, seria tema de uma das suas crônicas jornalísticas, publicada na edição do mês seguinte da revista Senhor, que circulou no Rio de Janeiro entre 1959 e 1964, inspirada em publicações estadunidenses, como Esquire e New Yorker. O texto, intitulado Um gramo de radium – Mineirinho, foi um dos textos prediletos da escritora e já foi publicado aqui no Jornalismo & História.

 

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