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Padeiros do espírito

Com algumas ideias que a aproximam, de forma antecipada, da Semana de 1922, agremiação de letras e artes Padaria Espiritual, do Ceará, completa 130 anos

Por Cristiane Garcia Teixeira

No final do século XIX, transformações sociais, políticas e econômicas, uma profusão de ideias sem antecedentes e a participação da classe letrada na política, provocou o surgimento de importantes agremiações, associações culturais e literárias no Ceará. Dentre elas, uma de título e objetivos muito curiosos se fez evidenciar: a Padaria Espiritual.

Assim como a Semana de Arte Moderna, em 2022 a Padaria faz aniversário de nascimento; 130 anos. E alguns de seus estudiosos e estudiosas acreditam que algumas das preocupações dos padeiros – nome que foi dado aos membros – antecederam parte das inquietações dos integrantes da Semana de Arte Moderna de 1922.

Café Java, no centro de Fortaleza, em 1906: no início da década anterior, local abrigou a Padaria Espiritual Foto: Arquivo Marciano Lopes

Foi no Café Java, estabelecimento de Manoel Pereira dos Santos (o Mané Coco), em maio de 1892, que surgiu a agremiação composta por rapazes das letras, música e arte, como Jovino Guedes (1859-1905); Antônio Sales (1868-1940) José Carlos Júnior (1860-1896); Rodolfo Teófilo (1853-1932), entre outros. A única, desse tipo, que existiu no Ceará. Misturando talento, irreverência, jovialidade, humor e fina ironia, os jovens satirizavam o avanço dos valores capitalistas que uniformizavam a alteridade cultural e impunham à população da, então, pequena Fortaleza, o trabalho disciplinado, principalmente aos trabalhadores como os próprios padeiros que eram, em sua maioria, oriundos das classes médias e baixas da sociedade. Esses rapazes buscavam na carreira de homem de letras o passaporte para a ascensão social e a fuga das penosas jornadas de trabalho braçais que estavam mudando o quadro econômico e social da província.

Integrantes da Padaria Espiritual: no centro, sentado à esquerda da mesa, o poeta Antônio Sales Foto: Museu da Imagem e do Som do Ceará

Além de buscar despertar na população o gosto pela literatura, os membros da Padaria procuravam também a valorização da cultura cearense. Faziam críticas agudas aos padres, aos burgueses e seu modo de vida que eram, para eles, a representação do materialismo e das fortunas adquiridas através da exploração. Mas também criticavam os intelectuais cearenses que disseminavam a ideologia do progresso e buscavam reeducar a população para que Fortaleza se tornasse um grande centro industrial, como aconteceu com a anterior Academia Francesa, de 1870.

A Padaria Espiritual passou por duas fases, a primeira aconteceu entre maio de 1892 e setembro de 1894. Nesta fase, a pilhéria, sátira e jovialidade se faziam mais presentes, como no fato descrito pelo historiador Sânzio de Azevedo:

era a época em que, da sacada do segundo prédio que serviu de sede ao grêmio, um dos padeiros, de barbas postiças, fazia conferência para o povo da rua, tempos em que o Mané Coco embandeirava o Café Java, distribuía aluá aos fregueses, e soltava um imenso balão com o letreiro “Padaria Espiritual”, a fim de levar ao Padre Eterno as notícias dos feitos do grêmio; faziam-se piqueniques onde os padeiros, ao som de violinos, conduziam um pão de três metros de comprimento. (1982, p.71).

A segunda fase, de setembro de 1894 a dezembro de 1898, já tinha o oficialismo como referência, embora o humor ainda permanecesse. Foi nessa época que publicaram praticamente todos os livros escritos pelos membros da Sociedade, obras que eram lidas nas reuniões regadas a muitas risadas – quem não pronunciasse pelo menos uma pilhéria durante a reunião pagava multas. Nestas reuniões, que eram regadas também a licores e vinhos, os membros debatiam sobre os assuntos políticos da época.

Movimento também repercutiu em outros lugares do mundo, como demonstram as cartas que a Padaria recebia de remetentes de Portugal e França, que elogiavam a agremiação e que eram publicadas no jornal O Pão.

A Padaria possuiu hino, bandeira e um Programa de Instalação com vários artigos, como o segundo deles que descreveu seus componentes: o Padeiro-mor (presidente), dois forneiros (secretários), um gaveta (tesoureiro), entre outros. Alguns sócios eram chamados de amassadores, as seções eram conhecidas como fornadas e aconteciam nos fornos. Além disso, o jornal que era o porta voz da agremiação na sociedade, teve como título O Pão. Foi com esse impresso que os membros buscavam alimentar o povo, o alimento seria a literatura e a arte. O Pão deu o que falar quando foi lançado na pacata Fortaleza. Com mais de dez seções distribuídas em oito páginas, seus primeiros números foram um sucesso, tanto que os 2.496 exemplares da segunda edição esgotaram em duas horas. O Pão teve 36 edições e em suas páginas foram publicados mais de 200 poesias e 60 narrativas. Parou de circular quando a agremiação findou, mas em 1998, Virgílio e Luciano Maia buscando trazer de volta à vida a Padaria Espiritual, voltaram a publicar o jornal, mas sem sucesso.

Edição número 1 do jornal O Pão, de 10 de julho de 1892

A Padaria Espiritual teve repercussão em grande parte do país, por conta da divulgação feita por Antônio Sales que enviava cartas e convites a homens de letras que residiam em outros estados do Brasil, principalmente no Rio de Janeiro. Mas também repercutiu em outros lugares do mundo, como demonstram as cartas que a Padaria recebia de remetentes de Portugal e França, que elogiavam a agremiação e que eram publicadas no jornal O Pão.

Com relação ao Programa de Instalação, entre seus artigos, os de número 14 e 21 são aqueles que, segundo Luciana Brito, mais se assemelham às preocupações dos integrantes da Semana de Arte Moderna: o primeiro proibiu o uso de palavras estranhas à língua vernácula, permitindo apenas emprego de neologismos do “Dr. Castro Lopes”. O segundo julgava indigna de publicidade qualquer peça literária em que fosse mencionado animais ou plantas estranhas à fauna e à flora brasileira. Os padeiros não eram favoráveis aos exagerados estrangeirismos e, a partir da linguagem, principalmente a valorização do vernáculo tupiniquim, o que pode lembrar o tupy or not tupy dos modernistas, buscavam o enaltecimento da cultura cearense. Tanto os Padeiros, no Ceará, quanto os integrantes da semana de Arte Moderna, em São Paulo, possibilitaram o emergir de uma nova mentalidade social e artística, talvez seja essa a característica que mais os aproxime.

Referências

AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1982.

BRITO, Luciana. Presença da Padaria Espiritual na História da Imprensa e das Artes no Ceará. Patrimônio e Memória, Assis, v. 8, n. 2, p. 67-86, Jul/Dez. 2012. Acesse aqui.

CARDOSO, Gleudson Passos. Padaria Espiritual: biscoito fino e travoso. 2. ed. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006.

VEJA TAMBÉM

Documentário da TV Assembleia do Ceará

A TV Assembleia do Ceará exibiu, em maio de 2020, o documentário Padaria Espiritual no lançamento do programa Arquivo.Doc, baseado em depoimentos e imagens dos arquivos da emissora. As gravações utilizadas nesse trabalho audiovisual  foram realizadas durante a produção de videorreportagem sobre o poeta e “padeiro” Antônio Sales. A produção do programa foi da jornalista Ana Célia de Oliveira, com roteiro e pesquisa musical de Angela Gurgel, coordenadora do Núcleo de Documentários, e edição de  Daniel Cardoso. Assista o documentário de pouco mais de 13 minutos:

A música que Ednardo dedicou à Padaria Espiritual

O cantor e compositor Ednardo, autor de Pavão mysteriozo – abertura da primeira versão da telenovela Saramandaia, da Rede Globo, de 1976 – e uma das “vozes urbanas do nordeste”, como definiu o Jornal do Brasil naquela época, ao lado dos também cearenses Belchior e Fagner, lançou, no álbum Berro, a música Padaria Espiritual, em alusão à agremiação de jovens intelectuais cearenses do século XIX. Confira:

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