Diálogos,  História

Tintas talentosamente fortes

Ressurge a pintora italiana Artemisia Gentileschi, um dos maiores nomes do barroco e primeira mulher aceita na Academia das Artes do Desenho de Florença, mas que só começou a ter seu valor artístico reconhecido na década de 1970, mais de 300 anos depois da sua morte

Por Mauro César Silveira

Mais de três séculos de ostracismo. Um protagonismo de visibilidade muito tardia, tragicamente tardia, quase eterna, cruel morosidade decretada pelo patriarcado ainda vigente. Considerada hoje um dos maiores talentos do barroco no mundo inteiro, a pintora italiana Artemisia Gentileschi começou a sair do limbo na década de 1970 e não apenas pelas suas inegáveis virtudes artísticas. Mas também pela sua história de vida marcada pela superação: órfã de mãe desde menina e vítima de violência sexual aos 18 anos, ela enfrentou a Justiça e o machismo reinante para lutar pela condenação do seu agressor mesmo pagando o alto preço da hostilidade e do preconceito de gênero que imperavam na opinião pública da época. Pela sua coragem e determinação, que caminharam juntas à sua produção artística de elevada qualidade, passou a simbolizar o feminismo do século XVII. Nos últimos anos, Artemisia Gentileschi renasce com vigor no cenário cultural europeu, seja através de exposições sobre suas obras ou como presença estética no cinema. O lado artista, finalmente, sobressai, acima de qualquer outro, confirmando um objetivo traçado muito tempo atrás, em 1649 – dez anos antes da sua morte – numa carta que legou à posteridade: “Vou mostrar o que uma mulher pode fazer.”

Primeira representante feminina na Academia das Artes do Desenho (Accademia delle Arti del Disegno) de Florença, Artemisia Gentileschi torna-se, cada vez mais, referência na luta das mulheres pela igualdade de gênero. “Não à toa, ela foi resgatada como ícone feminista nos anos 1970 por teóricas como Linda Nochlin, e agora está vivendo um novo momento por ser muito visceral, um símbolo de força e resistência”, ressalta a curadora londrina Katy Hessel, idealizadora do @thegreatwomenartists, que divulga nomes femininos importantes no campo da arte. A mesma visão é partilhada pela brasileira Julia Lima, responsável pelo projeto @elasestaoaquinaarte, que também visa valorizar a produção artística feminina: “Há um fantástico movimento dentro dos museus para recuperar pintoras renascentistas e barrocas, mulheres como Artemisia”.

Vênus e Cupido, de 1626: presença em filme de Almodóvar Reprodução: Virginia Museum of Fine Arts/Estados Unidos

Na década passada, um dos primeiros eventos a lançar os holofotes sobre os quadros da pintora italiana foi uma exposição no Museo di Roma, de novembro de 2016 a maio de 2017. A mostra intitulada Artemisia e seu tempo reuniu, na cidade onde ela nasceu em 8 de julho de 1593, quase uma centena de obras de diferentes museus da Europa e dos Estados Unidos. De outubro de 2020 a janeiro de 2021, a National Gallery, de Londres, abrigou a exposição Artemisia, sua maior retrospectiva sobre a artista, depois que a instituição britânica arrematou a obra Autorretrato como Santa Catarina de Alexandria, de 1615, encontrada na França, pelo valor de 4,7 milhões de dólares. No cinema, a pintora italiana também está marcando presença. Em sua primeira produção em inglês, A Voz Humana (The Human Voice), curta-metragem lançado no Festival de Veneza de 2020, o diretor espanhol Pedro Almodóvar estabelece um diálogo entre os tons de azul profundo e vermelho vivo de roupas da coleção da Balenciaga vestidas pela atriz inglesa Tilda Swinton e a obra Vênus e Cupido, pintada em 1626. Antes, em 1997, a vida da pintora havia inspirado o filme Artemisia, dirigido pela francesa Agnès Merlet. No próximo mês, entre 1º e 10 de abril, na Festa do Cinema Italiano, em Lisboa, será exibido o documentário Artemisia – Pintora Guerreira, de Jordan River. E a Viacom CBS International Studios já começou a produção de uma série sobre a artista, inspirada na biografia escrita pela historiadora estadunidense Mary Garrard.

“Têm se procurado repensar associações que apresentaram a pintora como seguidora do pai, discípula de Caravaggio, ou artista que se vingou de seu algoz por meio de composições visuais em que figuras femininas tiravam a vida de seus inimigos, a exemplo das diferentes versões de Judith degolando Holofernes e de Jael cravando uma estaca na têmpora de Sísera”. Cristine Tedesco, professora de História da Arte

Cerca de quatrocentos anos atrás, Artemisia Gentileschi também alcançou reconhecimento, a duras penas, depois de quebrar muitas barreiras ao acesso das mulheres no mundo artístico e seguir em frente após o abuso sexual que sofreu. Ela era a primogênita e a única mulher entre os quatro filhos do artista barroco Orazio Gentileschi. Aprendeu a pintar no ateliê do pai, influenciada pelo naturalismo de Michelangelo Merisi, que se tornou conhecido como Caravaggio, em especial sua dramaticidade e seus fortes contrastes cromáticos. Sem a presença da mãe, que falecera quando ela tinha 12 anos, se dividia entre o aprendizado da pintura, os cuidados dos irmãos menores e as tarefas domésticas da família. Em 1611, aos 18 anos, foi estuprada por seu mentor, o artista Antonio Tassi, amigo de Orazio Gentileschi, em plena aula de pintura. A cena descrita num dos seus apontamentos é horripilante: “Ele trancou o quarto à chave e depois me jogou sobre a cama, imobilizando-me com uma mão sobre meu peito e colocando um dos joelhos entre minhas coxas para que não pudesse fechá-las. E levantou minhas roupas, algo que lhe deu muito trabalho. Pôs um pano em minha boca para que não gritasse. Eu arranhei seu rosto e arranquei seus cabelos”.

Judith decapitando Holofernes, de 1620: a pintora (à direita) autorretratada no papel da personagem bíblica Reprodução: Galleria degli Uffizi/Florença/Itália

Um dos quadros mais conhecidos de Artemisia Gentileschi, Judith decapitando Holofernes, concluído em 1620, é tido como referência direta ao estupro sofrido nove anos antes e, por isso, tornou-se, no último quartel do século XX, base da história da arte feminista. Considerar essa obra-prima uma expressão da raiva acumulada desde a violência sexual perpetrada contra a artista é uma interpretação que faz todo o sentido. A representação do ato bíblico em que Judith, num quarto escuro, corta dramaticamente a garganta do general assírio Holofernes, que havia invadido sua cidade natal, Bethulia, oferece um detalhe inquietante: a presença da própria pintora, que se serviu de modelo para essa personagem. Sua própria imagem, como Judith, exibe firmeza, convicção, para não dizer uma certa serenidade, como se estivesse saboreando, depois de um largo período de tempo, a aguardada vingança.

Pesquisas mais recentes procuram ampliar o olhar sobre o percurso artístico da pintora italiana. Na tese de Doutorado intitulada Artemisia Gentileschi: trajetória, gênero e representações do feminino (1610-1654) disponível aqui -, defendida em 2018 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a professora de História da Arte Cristine Tedesco esquadrinhou as andanças da artista em diferentes centros culturais europeus do século XVII e analisou as construções que ela fazia de si e também como representava o feminino tanto nas correspondências que escreveu como nos seus trabalhos pictóricos. “Têm se procurado repensar associações que apresentaram a pintora como seguidora do pai, discípula de Caravaggio, ou artista que se vingou de seu algoz por meio de composições visuais em que figuras femininas tiravam a vida de seus inimigos, a exemplo das diferentes versões de Judith degolando Holofernes e de Jael cravando uma estaca na têmpora de Sísera”, realça Cristine Tedesco, que desenvolve estudos sobre o protagonismo feminino nas artes no período entre os séculos XVI e XVII, na península italiana, com especial atenção para a vida e obra de Artemisia Gentileschi. Um estimulante relato da pesquisadora sobre as novas perspectivas que se abrem sobre o legado da artista, publicado em 8 de janeiro do ano passado na revista DASartes, pode ser acessado aqui.

“Encontrar a assinatura durante a remoção da pintura em excesso foi um momento extraordinário, maravilhoso”. Simon Gillespie, conservador e restaurador de obras artísticas

A tese de Cristine Tedesco evidenciou que a pintora se inseriu no contexto das Cortes da península italiana e da Inglaterra – projetou-se em cidades como Roma, Florença, Veneza, Nápoles e Londres -, percorrendo os centros de financiamento das artes plásticas no século XVII e desenvolvido uma produção “à altura das exigências de alguns dos mais importantes líderes políticos e colecionadores de sua época”. Para atingir seus objetivos, enfrentou relações abusivas e tensionou as monolíticas fronteiras de gênero vigentes naquele período.

David e Golias, de 1630: autoria reconhecida quase quatro séculos depois Reprodução: Simon Gillespie Studio/Londres/Inglaterra

Esses êxitos pessoais e profissionais emergem depois de uma perene e espessa névoa histórica. Pior do que isso: mais do que obscurecida, a produção de Artemisia Gentileschi, ou pelo menos parte dela, passou para mãos masculinas. Por muito tempo, sua primeira pintura, o óleo sobre tela Suzana e os anciões, de 1610, quando ela contava com apenas 17 anos, foi atribuída ao seu pai Orazio. Não foi a única. Houve muitas outras obras creditadas a outros pintores. O apagamento mais duradouro foi o do grande quadro David e Golias, de 1630, que levou quase quatro séculos para que fosse finalmente reconhecido como trabalho de sua lavra. Quando essa pintura a óleo foi leiloada em 1975, Giovanni Francesco Guerrieri, um dos alunos de Orazio Gentileschi, ainda levava a fama. Em novo leilão realizado em Munique, quatro anos atrás, pela Hampel Fine Art Auctions, surgiram dúvidas sobre a autoria da obra, questionada pelo historiador de arte italiano Gianni Papi em artigo publicado em 1996, apontando o nome de Artemisia Gentileschi como o correto. Finalmente, em março de 2020, o reconhecimento chegou. Depois de alguns meses de restauração do quadro em Londres, no estúdio do respeitado conservador de obras artísticas britânico Simon Gillespie, com a participação de Gianni Papi, surgiria a comprovação para corrigir, de forma cabal, a histórica injustiça: a descoberta da assinatura da obra, com o nome Artemisia inscrito na espada de David.

Um achado que comoveu o experiente profissional. “Encontrar a assinatura durante a remoção da pintura em excesso foi um momento extraordinário, maravilhoso”, anunciou Gillespie em nota pública divulgada exatos dois anos atrás. E acrescentou: “Esta descoberta destaca a importância da prática de conservação em respaldar as conclusões dos historiadores da arte”. Ele tem absoluta razão. As preciosas técnicas de restauração do presente podem, sim, reavivar outras mulheres do passado, estejam no anonimato ou tenham sido usurpadas em seus nomes pelo ainda onipotente universo masculino. Não deixa de ser um sopro de esperança na semana que marca o dia da luta das mulheres pela igualdade de gênero.

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