A trajetória de Oliveira Lima, personagem típico do país do toma lá, dá cá
Por Mauro César Silveira
A desesperada ação do governo de Jair Bolsonaro, se socorrendo do chamado centrão para tentar sobreviver ao impeachment, tem profundas raízes históricas. O clientelismo, no âmbito do poder, marcou o período colonial brasileiro, manteve-se depois da independência e se consolidou durante o longo reinado de D. Pedro II. Nem mesmo os ventos republicanos inibiram esse costume tão arraigado na trajetória política do país. Bem ao contrário. A antiga tradição fisiologista revigorou com o advento do novo regime. É o que revela, com sólida base de pesquisa, o jornalista e escritor Maurício Oliveira, na sua mais recente obra, o livro eletrônico Toma lá, dá cá: como a troca de favores moldou a sociedade e o jornalismo no Brasil. Nas últimas décadas, a frase “é dando que se recebe”, consagrou-se no Congresso Nacional. Pinçada, em 1988, de um texto de São Francisco de Assis, com boa dose de cinismo, pelo ex-deputado Roberto Cardoso Alves, um dos fundadores do grupo heterogêneo de parlamentares que cobra seus votos por cargos e recursos públicos, essa emblemática expressão alcança, neste momento trágico do Brasil, o seu ápice. A leitura de Toma lá, dá cá ajuda a entender como nos tornamos a nação do compadrio, da desmedida troca de favores pessoais, com desprezo absoluto pelo interesse público.
Lançado pela Ornitorrinco, de São Paulo, o ebook alcançou, em 17 de junho passado, o primeiro posto entre os livros digitais de jornalismo mais vendidos pela Amazon. Fruto de minuciosa apuração desenvolvida ao longo de cinco anos no Brasil e nos Estados Unidos, Toma lá, dá cá é uma versão modificada da tese de doutorado defendida pelo autor em maio de 2019 no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em linguagem menos acadêmica, mais jornalística, livre das 509 notas de rodapé do trabalho científico, a obra reúne as melhores virtudes de Maurício Oliveira: em seu texto envolvente, desfilam personagens em seus contextos históricos, com a projeção das informações mais relevantes, ao lado de uma riqueza de detalhes que dão ritmo e sabor à narrativa. Foi assim na maioria dos outros 18 livros que ele publicou antes, como Amores Proibidos na História do Brasil, Patápio Silva: o Sopro da Arte, Garibaldi: Herói dos Dois Mundos e Pelé: 1283.
VANTAGENS PESSOAIS ACIMA DE TUDO
Com mestrado em História Cultural também pela UFSC, Maurício Oliveira juntou a bagagem acadêmica com a larga experiência profissional em revistas como Veja e Exame e jornais como Estadão, O Globo e Valor Econômico para lançar o foco na atuação jornalística de Manuel de Oliveira Lima – a face menos conhecida do diplomata e historiador que viveu de 1867 a 1928. A importância desse olhar singular é notável: os trabalhos de Oliveira Lima publicados em jornais e revistas, dentro e fora do país, foram deixados de lado mesmo em uma obra fulcral como História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré. E o resultado da abordagem original é mais do que revelador. A partir do personagem central de Toma lá, dá cá, escancara-se a troca de favores na sociedade brasileira na virada do Século 19 para o Século 20.
Nas 209 páginas do livro, despontam outros personagens ilustres do cenário cultural daquela época e dão a dimensão da prática do compadrio que envolvia o poder e o jornalismo: Barão do Rio Branco, Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco, José Veríssimo, Machado de Assis e Rui Barbosa. Aliás, imagens deles conectadas à figura central de Oliveira Lima na capa é um dos acertos da edição de Marco Pace. Uma ilustração de caráter didático. Sintetiza a rede de relações públicas e privadas, em diferentes circunstâncias, aproximando intelectuais e detentores do poder em torno de um objetivo comum: a obtenção de vantagens pessoais. Como diplomata, Oliveira Lima passou a maior parte da vida fora do país, mas sua condição de colaborador regular de jornais e revistas brasileiros, por mais de quatro décadas, permitiu que ele se relacionasse com os mais influentes integrantes do mundo cultural e político brasileiro. Foi na primeira fase da sua trajetória profissional – a mais exitosa – que ele tirou maior proveito disso, em articulações de causar espanto por tamanha eficiência. Conseguiu ingressar na cobiçada carreira diplomática, designado para a 2ª Secretaria da representação brasileira em Lisboa, sem ter o altamente recomendável diploma em Direito, com apenas 22 anos de idade. Algum tempo depois, em 1897, antes de completar o trigésimo aniversário, teria seu nome incluído, mesmo com baixa produção literária, entre os fundadores da Academia Brasileira de Letras, ao lado do já renomado Machado de Assis.
JORNALISMO COMO MOEDA DE TROCA
Na verdade, Oliveira Lima percebera, desde cedo, como o jornalismo poderia constituir-se em preciosa moeda de troca para ascender profissionalmente. Foi uma descoberta verdadeiramente precoce. Aos 14 anos, residindo com os pais em Lisboa, esse pernambucano de Recife criou a revista Correio do Brasil, com o objetivo de divulgar na Europa temas relacionados ao país natal. Aos 17, passou a assinar uma coluna no Jornal do Recife. Mais tarde, atuaria em O Repórter, de Lisboa, e na Revista de Portugal, editada pelo escritor Eça de Queiroz. A partir daí, a participação em publicações brasileiras se intensificaria, desde a célebre Revista Brasileira e o Jornal do Commercio ao O Estado de S. Paulo, onde escreveria até o final da vida. O livro mostra que a atuação no jornalismo rendeu as maiores benesses até seus 33 anos. Em 1912, já na segunda fase da vida, alegando razões de ordem médica, Oliveira Lima antecipou sua aposentaria como diplomata. E doou a sua numerosa biblioteca para a Catholic University of America, de Washington, depois de obter um emprego vitalício para ele e sua companheira Flora, com quem se casara aos 23 anos.
Essa doação, composta originalmente por cerca de 40 mil itens, entre livros, quadros, esculturas, mapas e fotografias dos tempos do Brasil Colônia e do Brasil Império, constitui hoje a Oliveira Lima Library, biblioteca vinculada à mesma universidade. Esse valioso acervo foi fundamental para que o autor de Toma lá, dá cá pudesse esquadrinhar a vida do personagem central da obra. A análise pormenorizada de 570 correspondências pessoais cuidadosamente preservadas em Washington, muitas delas inéditas, foram cotejadas com a produção jornalística e dados biográficos de Oliveira Lima. No esforço exaustivo de cruzamento de informações, tão caro à história quanto ao jornalismo, também deve ser destacado o exame que Maurício Oliveira fez das 7.700 páginas que compõem a coleção da terceira fase da Revista Brasileira, entre 1895 e 1899. As andanças do pesquisador ainda encontraram cartas escritas ou recebidas pelo intelectual pernambucano na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, e na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife.
Vale a pena conhecer os pormenores das movimentações do personagem central nessa convidativa viagem que o autor nos propõe através da ascensão e queda do diplomata. As palavras de Maurício Oliveira, em determinada parte do livro, instigam à leitura e evidenciam a importância da sua mais nova obra:
“As circunstâncias que definiram cada uma dessas fases dizem muito sobre o funcionamento da sociedade brasileira, não só naquela época, como ainda hoje. Ele ascendeu rapidamente na juventude, período em que associou estrategicamente a publicação de textos na imprensa à obtenção de vantagens pessoais. Nessa fase, vários dos artigos que assinou foram cuidadosamente calculados para ajudá-lo a construir uma sólida rede de apoio, processo que consolidava por meio de correspondências privadas. Depois de já ter conquistado duas grandes metas ainda antes dos 30 anos – a nomeação para a carreira diplomática, em 1890, e a inclusão de seu nome entre os fundadores da Academia Brasileira de Letras, em 1897 –, Oliveira Lima teve uma falsa sensação de liberdade e de autonomia. A ilusão de que poderia escrever o que bem entendesse o levou a deixar de ser estratégico em relação ao que publicaria na imprensa. A partir do desentendimento com Assis Brasil, em 1899, o jornalista Oliveira Lima se tornou mais claramente antagonista do diplomata Oliveira Lima. Com isso, sua rápida ascensão converteu-se num longo processo de decadência.”
VEJA
PARA CONHECER O PENSAMENTO POLÍTICO DE OLIVEIRA LIMA
A tese de doutorado intitulada Ser ou não ser antiamericano? Os Estados Unidos na obra de Oliveira Lima, defendida por Nathalia Henrich, em 2016, no Programa de Pós-graduação em Sociologia Política, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), permite que se conheça as várias fases do pensamento político de Oliveira Lima. Nesse trabalho acadêmico, a produção jornalística do diplomata e historiador também foi examinada. Parte do material publicado na imprensa fez parte da análise. Ela pode ser acessada aqui.