História,  Jornalismo,  Resenha

Narrativa cinematográfica do livro “O mez da grippe” revive o impacto da epidemia de um século atrás

Por Natália Huf

"As victimas avolumam-se
21 óbitos sendo 16 de grippe

Os cinemas fecharam
A grippe torna-se contagiosa
Sete dias por semana

Agora está morrendo mesmo muita gente."

A manchete do jornal Diario da Tarde de 12 de novembro de 1918 afirmava o que há algum tempo as autoridades sanitárias de Curitiba já vinham avisando: a gripe espanhola já havia chegado e estava se espalhando pela capital paranaense.

Utilizando recortes de jornal, propagandas, documentos oficiais, ilustrações, poesia e relatos, Valêncio Xavier reconta os meses em que a cidade de Curitiba foi atingida pela epidemia da gripe espanhola. Paulista de nascimento, Xavier mudou-se para Curitiba aos 21 anos, onde residiu até seu falecimento, em 2008. Escritor, roteirista, cineasta e diretor de TV, foi autor de diversos livros e colunista da Gazeta do Povo entre os anos de 1995 e 2003. E foi na literatura que produziu uma de suas maiores obras, o livro O mez da grippe, publicado pela primeira vez em 1981 — e agora, em 2020, reeditado pela curitibana Arte & Letra.

A leitura em tempos de pandemia do novo Coronavírus é, no mínimo, curiosa: transporta o leitor para pouco mais de cem anos atrás, ao mesmo tempo em que faz firmar os pés no hoje, ao confrontar a obra com a realidade contemporânea.

Reimpresso pela última vez em 2002, pela Companhia das Letras, o livro retorna ao catálogo das livrarias em momento bastante oportuno. A leitura em tempos de pandemia do novo Coronavírus é, no mínimo, curiosa: transporta o leitor para pouco mais de cem anos atrás, ao mesmo tempo em que faz firmar os pés no hoje, ao confrontar a obra com a realidade contemporânea. As manchetes e reportagens dos jornais Diário da Tarde e Commercio do Paraná que integram o livro foram publicadas entre outubro e dezembro de 1918 e informam desde a chegada do vírus às terras paranaenses até o fim daquele ano, quando “Curytiba e subúrbios” contabilizavam 45.249 casos de Influenza e 49 óbitos causados pela doença.

Valêncio Xavier: brilhante colagem literária Foto: Jornal Cândido/Biblioteca Pública do Paraná

Além dos fragmentos jornalísticos, Xavier brinca com maestria através de ilustrações, relatos do passado, fotografias e diversos elementos que compõem a bricolagem e constroem a narrativa cinematográfica de O mez da grippe. A justaposição de textos dos dois periódicos, de propagandas de estabelecimentos e produtos da época se torna, ainda, uma crítica à “verdadeira epidemia que é a tacanhice do assimilacionismo colonialista frente ao ‘invasor prestigioso’ representado por um vírus”, como escreve a poeta Luci Collin na contracapa do livro.

É interessantíssimo, ao longo da leitura, comparar a abordagem dos dois jornais da época: o Diário publicava constantemente matérias sobre o número de mortos e de doentes, além de comunicados de autoridades oficiais; o Commercio, por sua vez, aparentava ser, em diversos momentos, negacionista, tratando a doença como um mero boato excessivamente alardeado. Faz pensar nas angulações e nos editoriais de jornais que lemos hoje, e também em muitos de nossos governantes, que tratam a atual pandemia com desprezo.

Divertido e instigante, O mez da grippe é uma obra essencial para conhecer e se aproximar da memória do nosso país, especialmente em tempos como os que vivemos.

Também inevitável é o paralelo entre as ações das autoridades sanitárias da época e as de hoje, constantemente recomendando os cuidados necessários à população e decretando o fechamento de cinemas, igrejas e outros estabelecimentos. Um século atrás, o Serviço de Prophylaxia Rural do Paraná emitiu um comunicado avisando, entre outras muitas recomendações, que “a homeopathia, o espiritismo e as hervas, não curam a grippe, como nenhuma outra molestia infectuosa ou parasitária“.

Em entrevista ao (também curitibano) Plural, o editor da Arte & Letra, Thiago Tizzot, diz que a publicação de O mez da grippenão teve uma relação direta com o que tá acontecendo agora, foi mais uma coincidência mesmo“, e que “ter a obra fora de catálogo é algo muito ruim para a cidade. Poder contribuir para que a obra do Valêncio esteja acessível de novo é importante“.

Texto-legenda desta imagem, publicada pelo Commercio do Paraná em 1918: “Onde iremos parar? A que ponto chega a insolencia de um boche. O allemão Rodolfo André Damn veio á rua 15 de Novembro, onde praticou uma necessidade phisiologica na porta da redação do ‘Diario da Tarde‘ e em seguida veio escarrar na porta da nossa redação”. 

Fotografias históricas ajudam tanto quem nunca pôs os pés em Curitiba quanto quem é familiarizado com a cidade a imaginar o cenário da epidemia, que, vale dizer, dividiu espaço nas manchetes com o fim da I Guerra Mundial. “Germanophilos“, “boches” e o Kaiser eram figuras corriqueiras nas páginas dos periódicos, ao lado das notícias sobre a moléstia que acometia a cidade.

É impossível interromper a leitura antes que se chegue ao fim das 76 páginas. Divertido e instigante, O mez da grippe é uma obra essencial para conhecer e se aproximar da memória do nosso país, especialmente em tempos como os que vivemos. Faço minhas as palavras de Luci Collin: “É crítica ácida, é jogo. Não hesite em ler logo esse livro que respeita o que há de mais inteligente e estimulante numa narrativa“.

COMPARTILHE

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *