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Parem as máquinas

Censura dos EUA esbarra na luta pela imprensa livre e o direito de reportar dossiês reveladores sobre a Guerra do Vietnã

Por Bárbara Dal Fabbro

Parem as máquinas! Essa era a frase mais temida pelos jornais impressos ao redor do mundo, pois denotava que algo estava errado e que precisariam possivelmente refazer a revisão e a diagramação do jornal antes de rodarem a edição do dia seguinte. A relação entre governos e o jornalismo é constantemente permeada pela discussão de liberdade de imprensa e censura. As autoridades políticas veem como legítima a interferência em conteúdos reportados pela mídia se entendem que estes ferem as leis que embasam o ideal de nação. Já a imprensa argumenta que sendo o governo o representante do povo, seus atos devem ser reportados de forma transparente e imparcial a fim de torna-los de livre conhecimento da opinião pública que o elegeu. Como equilibrar a discussão?

Um dos acontecimentos mais marcantes deste embate é brilhantemente trabalhado no filme The Post: A Guerra Secreta, de 2017, disponibilizado pela Netflix no Brasil na semana passada. À primeira vista, o longa-metragem chama a atenção pelo peso do elenco: Meryl Streep, Tom Hanks, Bob Odenkirk e Sarah Paulson, para citar alguns. O investimento necessário para buscar a garantia de atuações à altura do roteiro de Josh Singer e Liz Hannah só não é mais impactante do que o diretor escolhido para conduzir esse episódio polêmico da recente história norte-americana, Steven Spielberg.

O filme aguça a curiosidade do espectador colocando a premiada veterana Meryl Streep no papel de Katherine Graham, a Kay, dona do The Washington Post, em um momento crucial para a perpetuação da empresa da família (em 1971) pois, sob seu comando, está prestes a lançar ações na Bolsa de Valores, com o intuito de ganhar fôlego financeiro e dar seguimento ao trabalho iniciado por seu pai. Kay descreve-se como uma dona de casa e, ao longo da trama, deixa clara sua inabilidade, e também insegurança, em gerir os negócios da família após o falecimento de seu esposo.

O editor-chefe do jornal, Ben Bradlee, é personificado por Tom Hanks, e traz um paralelo bastante importante em relação à dona do veículo. Ele, um jornalista seguro e ávido por um furo que possa fazer com que a publicação se destaque no acirrado mercado jornalístico, conduz sua redação de forma enérgica, encorajando seus repórteres a buscarem junto a suas fontes fatos que possam dar a projeção que ele acredita que o Post merece, junto a grandes nomes do mercado jornalístico, como o The New York Times.

A trama gira em torno da publicação de uma série de matérias pelo Times que denunciam diversas gestões de governos norte-americanos, suas dúvidas e acobertamentos sobre a atuação do país na Guerra do Vietnã. Até então, devido ao constante interesse no assunto e prolongamento do conflito bélico (iniciado em 1955), seria um exercício de apuração e reportagem louvável da imprensa da época; porém, a fonte das informações advém de documentos sigilosos do Pentágono. Aqui reside o “x” da questão: toda informação advinda de um governo eleito pode e deve ser pública? Quem define se uma informação é sigilosa ou não? Qual o critério a se adotar?

Como era de se esperar, a série de matérias causa um frenesi em todo o país, que anualmente enviava jovens soldados para o conflito e recebia-os de volta com sequelas irreversíveis ou sem vida, em caixões envoltos na bandeira americana, símbolo máximo da nação. Frente a isso, o então presidente Richard Nixon, processa o jornal The New York Times, embasando suas alegações na Lei de Espionagem, que determina que os dossiês usados como fontes das informações são documentos ultrassecretos e que nunca deveriam ter sido revelados daquela forma, pois colocariam em xeque a segurança da nação.

A interpretação de Meryl Streep nos brinda com uma análise muito íntima sobre a forma como as mulheres eram vistas pela sociedade norte-americana.

A proibição da veiculação de mais matérias é concedida pelo judiciário, o que faz com que o Times não mais as publique. Contudo, como já causara comoção e movimentação popular contra a participação americana na Guerra do Vietnã, os documentos acabam indiretamente chegando às mãos de Bradlee e seus repórteres. Destaque para a atuação de Bob Odenkirk como o repórter Ben Bagdikian, que irá acionar seus contatos e localizar a fonte que detinha os dossiês. O jornalista viaja ao encontro da fonte e volta a Washington com mais de 4 mil páginas não numeradas dos estudos e relatórios secretos.

É nesse momento que o conflito interno no The Post se instala. Bradlee reúne alguns de seus jornalistas em sua casa para analisar os documentos de forma intensa e rápida a fim de garantir que pudessem publicar uma matéria de capa já na próxima edição, o que dava a eles 10 horas para análise, escrita, edição e revisão desse material. Enquanto isso, o editor-chefe precisa convencer Kay e os demais diretores do Post sobre a importância da publicação das matérias com as informações que compõem os documentos, de forma a defender a liberdade de imprensa no país.

Uma cláusula na abertura da empresa na Bolsa de Valores torna-se o principal motivo de Kay hesitar na publicação já que os acionistas poderiam retirar-se sem prejuízos caso, em sete dias do anúncio na Bolsa, uma “tragédia” se abatesse sobre o jornal. Diretores e advogados insistentemente aconselham-na a não publicar tais reportagens já que o Times estava sofrendo processo do governo americano por tê-lo feito.

É a partir desse momento que a interpretação de Meryl Streep nos brinda com uma análise muito íntima sobre a forma como as mulheres eram vistas pela sociedade norte-americana. Tendo herdado o jornal de seu falecido marido, que o herdou do pai dela, e nunca tendo diretamente se envolvido com a empresa da família, ela deve, agora, colocar-se como a dona do veículo e definir quais os rumos editoriais tomar em uma situação bastante delicada. Em uma conversa compartilhada ao telefone com seu editor-chefe e diretores, ela decide por publicar.

O editor está com os olhos no relógio e a cabeça na redação, enquanto os advogados ainda tentam dissuadir Katherine, chamando de irresponsabilidade, lembrando que ela poderia ser condenada. Novamente, vê-se que os homens falam e que a voz da mulher não é ouvida.

Ben conta vitorioso à sua mulher, Tony, que Katherine resolveu pela publicação. É aí que a personagem, até então com poucas falas, mostra-o como a sociedade trata as mulheres. Chama Kay de corajosa, e o marido insiste que ela não é a única. “O que você tem a perder?” Ao responder que poderia perder o emprego e a reputação, ela continua: “Nós dois sabemos que isso só vai abrilhantar sua reputação. Quanto ao seu trabalho, sempre poderá encontrar outro. (…) Kay está em uma posição onde nunca imaginou que estaria. Uma posição que muita gente acha que ela não deveria ocupar. E quando repetem infinitas vezes que você não é suficientemente boa. Que sua opinião não importa tanto. Quando ignoram você. Quando, para eles, é como se você não existisse. Quando sua realidade foi essa por muito tempo, é difícil não se deixar pensar que é verdade. Então, tomar essa decisão… arriscar sua fortuna e a empresa que é a vida dela… eu acho que é muita coragem”.

Após a decisão, o take seguinte muda o cenário para um quarto escuro em que Kay conversa com a filha e expõe que até o suicídio do marido, quando tinha 45 anos, nunca havia “precisado arranjar um emprego”, sua vulnerabilidade e insegurança são reiteradas nos olhares, na postura e na modulação de sua voz. Todavia, as frases seguintes mostram o peso que ela estava carregando e a vontade de honrar seu legado: “Eu amo tanto o jornal. Eu não quero que seja minha culpa. Não quero ser a pessoa… Não quero deixar o Phill, meu pai, meus filhos e todos decepcionados.”.

É tarde da noite e segue-se o encontro entre os grandes protagonistas no hall da casa de Kay. Ben, esbaforido por ter corrido até lá, diz a ela que houve uma complicação e que a fonte deles pode ser a mesma do Times, o que configuraria uma acusação de desacato e todos poderiam ser presos. O editor, assim, admite que se deu conta do que está em jogo para ela.

Kay (Meryl Streep): pressão masculina não dobrou a diretora do Post Imagem: Divulgação

As cenas seguintes trazem a nostalgia das rotativas rodando o jornal, em closes que acompanham os tipos sendo perfilados para formar as matérias e as páginas sendo montadas para serem colocadas na prensa. Ao som das máquinas de tipografia vamos lendo as frases que compõem a tão polêmica matéria que o Post está prestes a publicar. Juntam-se a Ben e Kay os advogados e alguns diretores do Post. A preocupação no ar é palpável. O editor está com os olhos no relógio e a cabeça na redação, enquanto os advogados ainda tentam dissuadir Katherine, chamando de irresponsabilidade, lembrando que ela poderia ser condenada. Novamente, vê-se que os homens falam e que a voz da mulher não é ouvida.

Ao, finalmente, conseguir se fazer ouvir, Kay traz à tona a missão de um jornal: “Sim, eu entendo. Nós temos uma responsabilidade com a empresa, com todos os funcionários e com a saúde do jornal a longo prazo. Entretanto, o prospecto também fala sobre a missão do jornal, que é ‘coletar e reportar notícias’, certo? E ela também diz que o jornal irá ‘se dedicar ao bem-estar da nação e aos princípios da liberdade de imprensa’…”. De forma firme e empoderada, pela primeira vez em toda a trama, a personagem enfrenta a pressão de sua diretoria e mantém a decisão de lutar pela liberdade de imprensa.

Fica clara que não se trata mais da publicação ou não dos documentos, mas do antagonismo estabelecido entre liberdade de imprensa e segurança do governo.

O jornal é finalmente rodado. A câmera acompanha o papel passando pelas máquinas, o que aumenta a expectativa quanto ao que virá a seguir, a repercussão. Acompanhamos a distribuição e a agitação das páginas sendo lidas, dos telefones tocando na redação. Chega o momento crucial, o assistente do ministro da Justiça liga para o Post e reitera que a publicação das informações coloca em risco a defesa do país e que é proibida pela Lei de Espionagem, título 18 do código dos EUA, seção 793. Pede respeitosamente que as “informações de tal natureza não sejam publicadas” e que os documentos sejam devolvidos ao Departamento de Defesa. Nesse momento, com uma calma impressionante, Bradlee, respeitosamente, recusa.

A partir daí, é possível acompanhar tanto Post quanto Times sendo levados ao tribunal e tendo que defender a liberdade de imprensa. Como as decisões são conflitantes, os jornais são levados à Suprema Corte. Fica clara que não se trata mais da publicação ou não dos documentos, mas do antagonismo estabelecido entre liberdade de imprensa e segurança do governo. Nesse momento, Bagdikian, visualmente contente, entrega ao preocupado Ben uma sacola de papel com diversos jornais publicando os documentos secretos e diz: “Eu sempre quis participar de uma pequena rebelião”.

Ben leva os jornais a Kay e mostra a ela a força de sua decisão; e que todos seguiram seu exemplo e também publicaram os dossiês. “Ao menos não estamos sós”. Começam a repercutir discussões sobre a forma como os presidentes governam, e fica claro que o povo não pode permitir que o façam sozinhos, sem a ajuda do Congresso. Os norte-americanos vão às ruas lutar pela liberdade de imprensa. Times e Post, lado a lado, submetem-se à Suprema Corte.

Ao final do julgamento, em frente ao tribunal, o dono do Times é cercado pelos jornalistas para dar sua declaração, enquanto Katherine desce as escadas, quase sem ser reconhecida. Porém, não é bem assim, percebem-se silenciosos e orgulhosos olhares de todas as mulheres por quem Kay passa. É uma cena de uma força ainda maior devido à música escolhida que coroa o momento como uma solenidade, uma virada de página. E por 6 a 3, a imprensa livre vence.

O desfecho não poderia ser mais “simples” e impactante, Kay está na redação, Ben se junta a ela, vendo o jornal com a decisão sendo rodado e ela, sorridente, diz: “Sabe o que meu marido dizia sobre as notícias? Dizia que era o primeiro rascunho da História”. E, assim, a imprensa garante seu direito à liberdade em um dos episódios mais marcantes dos últimos cinquenta anos. O Post deixou de ser um jornal local e se tornou uma das referências em mídia impressa nos EUA e no mundo.

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