A última entrevista de Quino oferece boas lições ao jornalismo
Por Mauro César Silveira
O que nós, repórteres, podemos fazer para nos aproximar de uma pessoa arredia e tentar entrevistá-la? Algumas boas pistas podem ser encontradas no documentário Buscando a Quino, do ator e cineasta argentino Carlos “Boy” Olmi. A obra foi lançada em maio deste ano em alguns países de língua espanhola, quatro meses antes da morte do celebrado cartunista que criou a rebelde menina Mafalda – ícone mundial da luta contra a opressão política. Gravada dois anos atrás, mas somente divulgada em 2020, a produção superou um desafio que parecia quase intransponível. O personagem procurado para falar sobre sua vida sempre foi um homem muito tímido, de poucas palavras. Além da postura habitualmente esquiva, aos 85 anos, padecia de vários problemas de saúde e havia perdido boa parte da visão. E mais: um ano antes, falecera sua companheira Alicia Colombo, com quem vivia em Buenos Aires desde a década de 1950, e, em razão disso, ele decidira isolar-se em Mendoza, sua cidade natal, ao pé da Cordilheira dos Andes.
A proposta para que Olmi entrevistasse o desenhista partiu de Jonathan Herzfeld, um dos mentores do Festival Internacional de Inovação Social (fiiS). Missão considerada praticamente impossível pelo círculo de amigos de Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino, que parou de desenhar em 2009. Em declaração ao jornal online espanhol elDiario.es, em 25 de maio de 2020, o diretor mostrava-se bem consciente do que lhe esperava nessa empreitada: “Todo mundo que o conheceu me avisou do risco. Disseram que Quino sempre foi tímido, lacônico e reservado. Que disse quase tudo em seus desenhos primorosos, mas que não gostava de falar”. As muitas pesquisas que fez sobre o personagem reafirmaram, de maneira cabal, essa característica. Era reticente com entrevistas, ainda mais para desconhecidos.
Estímulos de aproximação na bagagem
Mas Olmi nunca pensou em desistir. Em vídeo divulgado no canal do fiiS no YouTube apresentando o documentário, ele conta que recebeu a incumbência com muita emoção. Admira o trabalho de Quino desde criança e leu todos os seus livros, que considera obras-primas não só do desenho, “mas da poesia, da reflexão e do pensamento”. Suspirou e foi à luta. Insistente, obteve o apoio da famíla para seguir em frente. Depois de tudo que ouviu e leu sobre o cartunista, decidiu traçar uma estratégia para “se aventurar” na visita à casa de Quino em Mendoza. Reuniu uma equipe técnica de quatro “pessoas muito sensíveis”, com respeito extremo à intimidade do artista em seu refúgio, e incluiu na bagagem estímulos de aproximação: músicas preferidas dele e da pequena Mafalda, que nas tirinhas ressaltava sua predileção pelos Beatles; uma garrafa de vinho e a enciclopédia Tesouro da Juventude, obra que entrevistador e entrevistado, coincidentemente, nutriam afeição em comum desde a infância. “Quando sentei pela primeira vez diante dele e lhe tomei a mão, no meio do silêncio, senti que tinha se produzido o milagre esperado”, recorda Olmi o primeiro encontro, que deu início a 42 dias de convívio durante as gravações. “Quino me abriu sua casa e seu coração”.
O resultado, em pouco mais de 26 minutos, é comovente. No documentário, os elementos que o cineasta levou para Mendoza para tocar a alma do entrevistado, gerando empatia, estão presentes. É uma preciosa lição para jornalistas que perseguem uma relação de igualdade com determinadas fontes, como apregoa sempre a jornalista e professora brasileira Cremilda Medina. Obra cinematográfica que explora olhares, gestos, conversas pausadas e principalmente os silêncios, com boa dose de lirismo, Buscando a Quino, se reveste de grande importância histórica, pois foi última entrevista desse gênio do traço. Mas também pode ser vista hoje, pouco tempo depois da sua morte, ocorrida em 30 de setembro, como uma bela homenagem póstuma. O trabalho foi disponibilizado pela Universidade Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), com sede na cidade de Caseros, região metropolitana de Buenos Aires: