Javier Viveros: “As guerras são pedreiras inesgotáveis de histórias”
Maior roteirista de quadrinhos do Paraguai aborda a importância dessa arte visual para a reconstrução do passado
Por R. Melissa Dos Santos
Ele já era um renomado escritor e poeta quando, em meados da década passada, enveredou para o fascinante mundo dos quadrinhos. Hoje, se constitui num personagem importante da história do presente do Paraguai: mestre em Literatura pela Universidade Nacional de Assunção (UNA), membro da Academia Paraguaia da Língua Espanhola, atuante engenheiro informático e, indiscutivelmente, o mais prolífico e qualificado roteirista de livros ilustrados do país. Em pouco tempo, se tornou o grande protagonista do atual boom da chamada nona arte em terras paraguaias. É o coordenador de vários projetos para disseminar conhecimento histórico através da ferramenta literária de maior impacto texto-visual – as narrativas em quadrinhos.
Nos últimos anos, produziu vários álbuns ilustrados, reunindo os melhores desenhistas do país. E, neste 2020, quando o final da guerra contra a Tríplice Aliança completou 150 anos, acabou de lançar o livro Epopeya del 70, pela Editorial Rosalba, abordando fatos e personagens do maior conflito bélico da história da América do Sul. Em primorosa edição colorida de 200 páginas, a obra foi inteiramente roteirizada por ele e contou com os melhores artistas do traço do Paraguai, como Roberto Goiriz, Enzo Pertile, Juan Moreno, Kike Olmedo, Adam, Andrewken Pl, Rolando Medina e Ruwer Amarilla.
Nesta entrevista, o multifacetado Javier Viveros fala da ousadia de marcar território com roteiros, baseados nas mais importantes guerras, ilustrados com impactantes imagens desenhadas pelos melhores cartunistas paraguaios, mas também nos conta seus primeiros passos na direção dos quadrinhos históricos, seus maiores desafios nessa trajetória e os novos projetos profissionais.
J&H- Como surgiu a ideia de fazer quadrinhos a partir da história do Paraguai? O seu trabalho de redação de roteiros e edição de quadrinhos começou por acaso, por inspiração quando você visitou uma livraria no centro de Assunção?
Javier Viveros – A resposta à segunda pergunta é meio sim. Como já havia tentado fazer quadrinhos, quando me encontrei com um cartunista, mas aquele projeto não deu certo. Algum tempo depois, quando fui assinar um contrato de um livro meu com a Servilibro (editora paraguaia) que seria distribuído com o ABC (ABC Color, jornal paraguaio), pude entrar em contato com o romance gráfico Vencer ou Morir, obra-prima de Enzo Pertile. Entrei primeiro em contato com o Enzo pelo Facebook, depois pelo celular e não demorei em começar a escrever os roteiros de Pólvora y Polvo, gibis da Guerra do Chaco que eram publicados no jornal Última Hora, com desenhos do maestrísimo (magistral) Enzo Pertile e o lendário cartunista Juan Moreno.
“As histórias em quadrinhos constituem um veículo ideal para transmitir conhecimentos, para contar histórias, devido à sua potente combinação de imagem e texto.”
J&H – Qual a importância dos quadrinhos para a reconstrução dos acontecimentos históricos?
Javier Viveros – As histórias em quadrinhos constituem um veículo ideal para transmitir conhecimentos, para contar histórias, devido à sua potente combinação de imagem e texto. É um aliado ideal na sala de aula. Embora também possa atingir diferentes faixas etárias: pode-se desfrutar dessa arte em qualquer idade.
J&H – De todas as versões em quadrinhos, qual você acha que mais atingiu o público e por quê?
Javier Viveros – Acho que Epopeya – La guerra del Chaco nos quadrinhos foi o livro mais bem recebido, certamente pela novidade da proposta, pela forma de apresentá-la e pela honestidade nua e crua dessa abordagem. Tínhamos o apoio de pessoas muito antes do livro ser lançado, quando tínhamos apenas uma promessa a oferecer. As pessoas se envolveram com o projeto, deram seu apoio e pudemos marcá-lo com sucesso. Esse foi o primeiro passo para finalizar uma edição que levasse a obra de arte diretamente do artista ao leitor, sem passar pelos intermediários deletérios que sempre conseguem aumentar muito o preço de venda do material ao público.
J&H – Os quadrinhos transmitem cem por cento a história do nosso país ou são adequados apenas para transmitir a ideia do que aconteceu na história e despertar o interesse dos leitores em estudar versões do passado?
Javier Viveros – Não há arte que possa transmitir um fato histórico a cem por cento. Na saga Epopeya há recriações de capítulos da nossa história, de memórias de ex-combatentes e também ficção histórica. O leitor interessado poderá então acessar outras fontes para continuar ampliando seus conhecimentos sobre os vários capítulos de nossa história que são abordados por Epopeya.
J&H – Dos acontecimentos históricos da guerra no Paraguai, qual é o que mais o impactou pessoalmente e por quê?
Javier Viveros – Sem dúvida, a Guerra Guasu (Guerra contra a Tríplice Aliança), porque sendo uma guerra total, marcou com sangue e fogo nosso destino como coletividade. Mas se falamos de um capítulo particular dessa guerra, assinalarei, sem ambiguidades, a aproximação dos encouraçados por nossas tropas, fato que com coragem ou imprudência só poderia ser comparado à batalha dos barqueiros de José María Fariña (militar da marinha paraguaia na mesma guerra).
J&H – Muitas histórias da Guerra contra a Tríplice Aliança ainda estão presentes no imaginário popular, como a fuga das tropas paraguaias no final da guerra, carregando o piano de Madame Lynch, esposa de Solano López. Qual a importância desses episódios para os quadrinhos históricos? O que as imagens do passado podem nos dizer sobre hoje?
Javier Viveros – Nem tudo é pólvora e sangue na guerra. São episódios de cores diferentes e não os desprezamos. Também estou muito interessado nessas pequenas histórias. E isso é assim porque, além das patentes militares, das datas das batalhas e do número de mortos, o meu principal interesse é o ser humano que está preso nas mandíbulas antropofágicas de uma experiência limite como a guerra.
“A página da Epopeya no Facebook tem cerca de 25.000 seguidores. Existe um público fiel que acompanha nossas publicações nas redes sociais e adquire os exemplares que imprimimos.”
J&H – Como o leitor paraguaio percebe as histórias em quadrinhos? O leitor paraguaio é fã de quadrinhos ou realmente não se interessa muito por esse tipo de arte?
Javier Viveros – A página da Epopeya tem cerca de 25.000 seguidores. Existe um público fiel que acompanha nossas publicações nas redes sociais e adquire os exemplares que imprimimos. É graças a eles que já conseguimos lançar 5 volumes da Epopeya e que já temos o sexto volume nos braços da imprensa.
J&H – Diante do exposto, como as histórias em quadrinhos do Paraguai impactaram no público?
Javier Viveros – A recepção tem sido ótima. Com o primeiro número da Epopeya, as pessoas tiraram fotos de si mesmas na praça de sua comunidade, em frente a uma estátua relacionada à Guerra do Chaco e nos enviaram para que pudéssemos publicá-las na fanpage. Uma bela comunidade se formou em torno do projeto. E queremos acreditar que isso levou muitas pessoas a mergulhar mais fundo nas páginas dos livros de história.
J&H – Fora os quadrinhos baseados no passado bélico, que outras histórias você contou através de desenhos?
Javier Viveros – Dirigi a coleção Literatura Paraguaia em quadrinhos, da editora Servilibro. O que fizemos lá foi colocar algumas das melhores histórias do Paraguai em formato de quadrinhos. Consegui escrever 8 dos 10 roteiros. Também escrevi os roteiros do livro Te lo cuento em comic (Te conto em quadrinhos), que contém histórias de grandes autores como Kafka, Tchekhov, Saki, Emilia Pardo Bazán e Bocaccio nesse formato, com desenhos do grande Adam. Também escrevi dois novos roteiros de aventuras para Dago, o famoso personagem de Robin Wood, para uma revista em que homenagearemos nosso compatriota, um dos melhores escritores de quadrinhos do terceiro planeta.
J&H – Continuando com a ideia anterior, quais histórias você gostaria de contar?
Javier Viveros – Eu gostaria de contar histórias de ficção científica e fantasia, contá-las com as ferramentas majestosas dos quadrinhos.
J&H – Como você se sente em relação ao trabalho dos demais integrantes da equipe que fez parte da criação dos quadrinhos do livro Epopeya del 70? Você acha que a maneira como eles querem contar a história se reflete em seu trabalho? Ou acha que vocês podem evoluir juntos ainda mais?
Javier Viveros – Pela Epopeya del 70 tive a oportunidade de trabalhar com aqueles que considero os melhores cartunistas do nosso país. O nível de desenho desses artistas é de exportação. Me sinto honrado e coberto de glória escrevendo roteiros para que eles possam revelar toda a magia de sua arte, algo pelo qual sempre serei grato. Epopeya del 70 foi o auge para mim. Mas tudo é sempre aperfeiçoável.
J&H – No Paraguai, muitos livros ilustrados foram lançados durante a pandemia. O confinamento foi um fator que favoreceu essa grande produção gráfico-visual?
Javier Viveros – Não é improvável que o confinamento tenha muito a ver com isso.
J&H – Podemos esperar mais quadrinhos históricos? E a guerra contra a tríplice aliança é um tema que pode gerar mais quadrinhos?
Javier Viveros – As guerras são pedreiras inesgotáveis de histórias. Muito já se falou, por exemplo, sobre a Segunda Guerra Mundial, mas sempre sai um novo livro ou filme contando algo que ainda não foi tocado pela arte. Pelo menos a respeito da Epopeya pode-se esperar mais um número (depois de Epopeya – Penurias y fatigas), um número que se chamará Epopeya – Pólvora y polvo e que agrupará os 16 fascículos publicados nos domingos com o jornal “Última Hora” mais dois novas histórias: uma de Enzo Pertile e outra de Juan Moreno. Ao publicar como parte da Epopeya aquelas histórias que representaram minha primeira incursão na nona arte, estaríamos fechando o círculo, como um ouroboros que morde o rabo e enche as presas com mel.