Duas reportagens reveladoras e as infinitas possibilidades do jornalismo autoral
Narrativas pessoais sobre os bastidores do WikiLeaks, de Natalia Viana, e as condições de trabalho dos dekasseguis, de Juliana Sayuri, têm grande valor histórico
Por Mauro César Silveira
O relato impressionista, na primeira pessoa do singular, com uma narrativa envolvente desde o primeiro parágrafo, não é uma cena incomum no jornalismo europeu. Pelo contrário. O protagonismo da pessoa que escreve está presente mesmo nos impressos mais tradicionais, que estimulam a produção de textos autorais, como acontece em trabalhos de maior fôlego do El País, da Espanha, especialmente em matérias produzidas por enviados especiais ou correspondentes internacionais. No Brasil, os canais de informação mais ortodoxos ainda resistem a essa tendência, embora já considerem situações em que esse tipo de escrita possa ser admitido, como prevê a “instrução geral” número 32 do Manual de Redação do Estadão: “O recurso à primeira pessoa só se justifica, em geral, nas crônicas. Existem casos excepcionais, nos quais repórteres, especialmente, poderão descrever os fatos dessa forma, como participantes, testemunhas ou mesmo personagens de coberturas importantes. Fique a ressalva: são sempre casos excepcionais”. Assim, devem ser saudadas duas excelentes reportagens autorais que estão sendo publicadas no país neste primeiro mês de 2021: O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo, de Natalia Viana, na newsletter em série lançada em 4 de janeiro, através de uma parceria entre a Agência Pública de Jornalismo Investigativo, e o Canal Meio – especializado nesse novo formato – e Diário de dekassegui – A rotina dos imigrantes que trabalham em fábricas japonesas, de Juliana Sayuri, disponibilizada 12 dias depois pelo TAB, canal de conteúdo multimídia do UOL.
“Fui andando, arrastando a mala sobre os bocados de gelo que se formavam na calçada. Mal dormi na casa de uma amiga brasileira, jornalista, que arregalou os olhos e me encharcou de perguntas. ‘Você está metida nisso aí, não é’? Eu escutaria aquilo muitas vezes”. Natalia Viana
A série de narrativas autorais de Natalia Viana – uma das fundadoras da Agência Pública – tem um inestimável valor histórico. Nos episódios despachados semanalmente para os correios eletrônicos cadastrados, de forma gratuita, no Canal Meio – quem aderir agora recebe os anteriores antes do próximo capítulo -, a jornalista conta os bastidores do “extraordinário projeto de um grupo de jovens jornalistas, desenvolvedores e advogados que acreditavam estar mudando o mundo”, sob a liderança do australiano Julian Assange. Como única participante brasileira da mais ousada ação do site WikiLeaks, concebida secretamente “durante noites em claro na friorenta mansão de Ellingham Hall, no norte da Inglaterra”, como descreve no primeiro episódio, ela revela os detalhes de todos os movimentos que culminariam, em 29 de novembro de 2010, na publicação em cinco dos maiores jornais do mundo – Der Spiegel, Le Monde, The New York Times, The Guardian e El País -, mais a Folha de S. Paulo no Brasil, do mais portentoso vazamento da história do jornalismo. O material monumental era constituído de 251.287 telegramas diplomáticos do Departamento de Estado que desnudavam a ingerência dos Estados Unidos na política interna de mais de 170 países na primeira década do século 21.
Os primeiros episódios de O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo prendem a atenção de quem lê como nos mais arrebatadores thrillers, cinematográficos ou literários. Mistério, suspense, pressões e ameaças de toda a espécie cercam todos os envolvidos na arrojada empreitada de divulgar essa volumosa quantidade de documentos sigilosos do governo norte-americano. No segundo capítulo da série, o relato apreensivo dos momentos vividos em dezembro de 2010, quando Natalia Viana regressava para o Brasil sem ter conseguido criptografar os arquivos digitais que portava, é uma boa amostra da força da sua narrativa: “Parti, de trem, agarrada à mochila. Foram horas longas, contornadas pela neve que me seguiu até a capital. Em Londres, causou um caos enorme: os trens não saíam das estações, os ônibus fugiam da rota usual. Consegui um ônibus até o bairro periférico onde passaria a noite, mas ele me deixou a meia hora do meu destino final. Fui andando, arrastando a mala sobre os bocados de gelo que se formavam na calçada. Mal dormi na casa de uma amiga brasileira, jornalista, que arregalou os olhos e me encharcou de perguntas. ‘Você está metida nisso aí, não é’? Eu escutaria aquilo muitas vezes. Levei o pendrive dentro de uma trouxa de roupa suja e embarquei em um voo JJ8085 da TAM no aeroporto de Heathrow às 20:45 do dia 1º, com destino a Guarulhos, São Paulo”.
Ela terminou a redação desse episódio tomando conhecimento da decisão da juíza britânica Vanessa Baraitser, da tradicional Corte de Old Bailey, de rejeitar a extradição Julian Assange para os Estados Unidos por razões humanitárias, temendo que lá o australiano, que padece da Síndrome de Asperger, possa se suicidar, face ao seu progressivo estado de depressão. “Finalizo esse texto francamente emocionada”, confessa Natalia Viana, que decidiu escrever sobre sua experiência com o WikiLeaks no final do ano passado, quando se cumpriu 10 anos do chamado Cablegate, sobretudo por que se aproximava o julgamento de Assange em Londres.
Mas a decisão da juíza Baraitser não tem caráter definitivo, como adverte a jornalista e escritora Marta Peirano, em artigo intitulado Julian Assange queda en manos de Joe Biden e publicado pelo El País no domingo passado. “Uma das primeiras decisões da administração Biden será perseguir ou não perseguir a Assange”, observa. E a colega espanhola dimensiona o dilema que espera sucessor de Trump: “Joe Biden chega à Casa Branca e tem mais de um problema urgente para resolver. Conter uma pandemia, controlar um hackeamento massivo, tranquilizar uma sociedade dividida e restaurar a dignidade das instituições democráticas que afirma liderar. Julian Assange pode não ser uma de suas prioridades, mas se o fundador do WikiLeaks morrer em uma prisão britânica esperando sua decisão, ele terá perdido a oportunidade de libertar a imprensa da armadilha (enquadrar o australiano como espião e não como jornalista) que seu governo (Biden era o vice de Obama) planejou há dez anos”.
“Yukie é rápida como um robô. Depois de 9 anos na fábrica, ela conseguiu tirar 3 meses de licença não remunerada para tratar uma hérnia no pescoço. Voltou a todo vapor”. Juliana Sayuri
Outra reportagem autoral socialmente relevante é a da jornalista Juliana Sayuri. Diário de dekassegui – A rotina dos imigrantes que trabalham em fábricas japonesas, publicada pelo TAB. Ela trabalhou durante três meses, no final de 2019, em uma fábrica japonesa de peças para automóveis na cidade de Toyohashi, no Japão. A experiência é relatada, agora, em formato de diário, denunciando as massacrantes condições de trabalho que atingem os trabalhadores e trabalhadoras oriundos do Brasil. A história é dividida em três partes. Na primeira, Juliana narra o choque que representa o começo do treinamento para os imigrantes recém chegados ao país. Na segunda, revela a rotina desgastante de atuar no ritmo alucinado exigido na linha de montagem, sob a pressão de um monitoramento permanente da chefia imediata na busca por índices de produtividade cada vez maiores. Na última, descreve as ameaçadoras reuniões com a direção da empresa e, finalmente, seu pedido de demissão.
Narrativa também em primeira pessoa, Diário de dekassegui oferece um painel vivo do cotidiano da fábrica, reportando as aflições e os sonhos de homens e mulheres que partiram do Brasil para o outro lado do mundo com a esperança de dias melhores. O preço é bem elevado: uma jornada diária de 12 horas em pé, com movimentos incessantemente mecânicos e cronometrados. Um trecho da reportagem dá uma ideia dessa labuta: “Minhas mãos estavam ardendo. ‘Qual o truque de vocês pra aliviar a dor?’, perguntei. Karina sugeriu antiinflamatório, munhequeira e Salompas. Yukie imediatamente a interrompeu: ‘Não ilude a menina. A dor não passa nunca.’ Yukie é rápida como um robô. Depois de 9 anos na fábrica, ela conseguiu tirar 3 meses de licença não remunerada para tratar uma hérnia no pescoço. Voltou a todo vapor. Por dia, damos cerca de 6.250 passos (o equivalente a 3,3 km, informa meu smartphone) sem sair do lugar, executando os mesmos movimentos mecânicos o dia todo. É o quadro perfeito para desenvolver LER”.
Com ótimas ilustrações de Marcos de Lima, a narrativa autoral de Juliana Sayuri evidencia que, em alguns casos, o relato pessoal é a melhor, a mais adequada, se não a única, opção jornalística. A trajetória profissional de Natalia Viana, exposta na série O ano em que o WikiLeaks mudou o mundo, reafirma isso, contribuindo para entender melhor o jornalismo brasileiro de natureza industrial contraposto às infinitas possibilidades de uma proposta editorial verdadeiramente independente. De um certo anonimato como freelancer, mais de 10 anos atrás, até a criação, com sua colega Marina Amaral, da Agência Pública, hoje uma referência em jornalismo investigativo no Brasil, ela comprovou, novamente, que, “às vezes, somos nós mesmos que criamos nossas oportunidades”, como costuma dizer uma das integrantes da equipe do Jornalismo & História, a pesquisadora paraguaia R. Melissa Dos Santos. O genuíno jornalismo precisa, mais do que nunca, de iniciativas marcadas pelo desprendimento, como as de Natalia Viana e Juliana Sayuri. Só assim nossa atividade profissional pode continuar almejando a legitimação da sua existência na sociedade.