Outro genocídio bem brasileiro
Aclamada obra da jornalista Daniela Arbex inspira a série Colônia, sobre o maior hospício do Brasil, em Barbacena, Minas Gerais, aterrador cenário de 60 mil mortes ao longo de sua existência
Por Mauro César Silveira
Os estigmas costumam resistir ao tempo como os metais refratários às mais elevadas temperaturas. A cidade de Barbacena, no sul de Minas, ainda não se livrou da imagem associada a lugar habitado por aqueles seres “anormais”. Não adiantou a árdua luta da repórter investigativa Daniela Arbex para quebrar o silêncio histórico em torno do Colônia, como era chamado o maior manicômio do Brasil, e contar as histórias das pessoas sobreviventes ao método de confinamento forçado que se estendeu até o ano de 1996. Não adiantou que ela recuperasse a identidade, os dramas e sonhos, a condição absolutamente humana de cada uma delas. Não adiantou denunciar as atrozes e injustificadas internações. O preconceito ainda grita nessa região mineira. Até o início do século XIX, Barbacena era o recanto da Igreja Nova (Nossa Senhora da Piedade, atual matriz), erguida em 1748. Depois do fim do isolamento de doentes psiquiátricos, em tom tão alegórico quanto realista, a grande produção de rosas cresceu e projetou outra face do município ao resto do país. Mas, anos depois, a cicatriz continua se impondo. Não tem jeito. Ainda prevalece sua fama de “cidade dos loucos”. Como sentenciou certa vez o grande escritor paraguaio Augusto Roa Bastos, o passado é incorrigível. Desde 1903, por mais de nove décadas, o atual Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena se constituiu no aterrador cenário patrocinado pelo descaso do poder público do país: vítimas de maus-tratos ou da mais completa negligência médica, faleceram no antigo hospício mais de 60 mil pessoas, muitas delas consideradas indesejadas socialmente, como mães solteiras, mulheres engravidadas pelos patrões, gays e prostitutas.
Agora, a contundente e aclamada obra da jornalista Daniela Arbex, Holocausto Brasileiro, lançada inicialmente pela Geração Editorial, de São Paulo, em 2013, que vendeu mais de 300 mil exemplares, alcança a arte ficcional, inspirando a série Colônia, dirigida por André Ristum, com seu segundo capítulo sendo exibido hoje às 22 horas, no Canal Brasil, mas também disponibilizada (todos os dez episódios) nos serviços de streaming Globo e GloboPlay. Baseada em histórias reais narradas no livro, a série aborda a sofrida trajetória de gente marcada por agressões de toda a natureza, como o uso constante de eletrochoques. Filmada em preto e branco, com mãos sensíveis, Colônia conta no elenco com nomes como Arlindo Lopes, Augusto Madeira, Bukassa Kabengele, Eduardo Moscovis, Fernanda Marques, Naruna Costa, e Rejane Faria. O diretor André Ristum, que também assina o roteiro com Marco Dutra e Rita Gloria Curvo, revelou, em entrevista à revista TELA VIVA, que a ideia nasceu durante a leitura de Holocausto Brasileiro: “A história do Colônia me impactou muito desde que eu li o livro da Daniela e, depois, tomando mais contato com o que de fato aconteceu. Era uma coisa totalmente desumana, com as pessoas sendo levadas para esse lugar sem nenhum tipo de diagnóstico, de problemas reais. Isso mexeu muito comigo e foi o motor que me impulsionou a contar essa história. Questões humanas me tocam e me inspiram muito”.
O livro de Daniela Arbex ganhou nova edição em 2019 pela Intrínseca, do Rio de Janeiro. Com 280 páginas, recebeu um posfácio redigido pela autora, atualizando algumas informações sobre o tema central do seu trabalho. Em sua primeira versão, da Geração Editorial, Holocausto Brasileiro já havia sido reconhecido, em 2013, como o melhor livro-reportagem do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte, e agraciado, no ano seguinte, com o 2º lugar no 56º Prêmio Jabuti, na mesma categoria. Resultado de muitas entrevistas realizadas com ex-funcionários e sobreviventes, o relato jornalístico de Daniela Arbex oferece, de maneira detalhada, o cotidiano de dor no manicômio de Barbacena. A importância desse livro para a construção da memória brasileira foi destacada no prefácio escrito pela igualmente jornalista e escritora Eliane Brum: “É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta”. Sua apresentação de Holocausto Brasileiro, transcrita a seguir, é a mais acabada síntese da obra, a começar pelo título. Vale a pena ler.
Os loucos somos nós
Por Eliane Brum
O repórter luta contra o esquecimento. Transforma em palavra o que era silêncio. Faz memória. Neste livro, Daniela Arbex devolve nome, história e identidade àqueles que, até então, eram registrados como “Ignorados de tal”. Eram um não ser. Pela narrativa, eles retornam, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque era epilético. Ou ainda Antônio Gomes da Silva, sem diagnóstico, que ficou vinte e um dos trinta e quatro anos de internação mudo porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava. São sobreviventes de um holocausto que atravessou a maior parte do século XX, vivido no Colônia, como é chamado o maior hospício do Brasil, na cidade mineira de Barbacena. Como pessoas, não mais como corpos sem palavras, eles, que foram chamados de “doidos”, denunciam a loucura dos “normais”.
As palavras sofrem com a banalização. Quando abusadas pelo nosso despudor, são roubadas de sentido. Holocausto é uma palavra assim. Em geral, soa como exagero quando aplicada a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guerra. Neste livro, porém, seu uso é preciso. Terrivelmente preciso. Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia. Tinham sido, a maioria, enfiadas nos vagões de um trem, internadas à força. Quando elas chegaram ao Colônia, suas cabeças foram raspadas, e as roupas, arrancadas. Perderam o nome, foram rebatizadas pelos funcionários, começaram e terminaram ali.
Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município.
Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças.
Homens, mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto, alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não alcançavam as manhãs.
Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezesseis pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo — e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio do Colônia, na frente dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida.
Pelo menos trinta bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados. Este foi o destino de Débora Aparecida Soares, nascida em 23 de agosto de 1984. Dez dias depois, foi adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário, sua mãe, Sueli Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e funcionários pela menina. E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”. Só muito mais tarde, depois de adulta, Débora descobriria sua origem. Ao empreender uma jornada em busca da mãe, alcançou a insanidade da engrenagem que destruiu suas vidas.
Esta é a história que Daniela Arbex desvela, documenta e transforma em memória, neste livro-reportagem fundamental. Ao expor a anatomia do sistema, a repórter ilumina um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de funcionários e também da sociedade.
É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta. Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios, esteve no Brasil e conheceu o Colônia. Em seguida, chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo presenciei uma tragédia como esta.”
Um repórter, quando faz bem o seu trabalho, é assinalado pelo que vive. A dor só vira palavra escrita depois de respirar dentro de cada um como pesadelo.
Quando começou a apurar a série de reportagens que marcariam o nascimento deste livro, Daniela descobriu-se diante de um impasse. Seu filho, Diego, tinha apenas quatro meses de vida. Ela tinha acabado de virar mãe, ainda amamentava e colocava-se, por vontade própria, no parapeito do horror. A repórter sabia que mergulharia no inferno — e, de novo, aqui o inferno não é uma hipérbole. Sabia também que, no inferno, não há fim de expediente. Um repórter, quando faz bem o seu trabalho, é assinalado pelo que vive. A dor só vira palavra escrita depois de respirar dentro de cada um como pesadelo. Como repórter experiente, que, pela qualidade de suas matérias, ganhou os principais prêmios nacionais e internacionais de jornalismo, Daniela sabia o que se estendia diante dela. E, mesmo assim, fez a sua escolha. E o filho? Diego se orgulharia dela.
Depois da série de reportagens publicada na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora, Daniela seguiu investigando. Viajava noventa e cinco quilômetros até Barbacena, todas as manhãs, e voltava à tarde, já exausta pelo que viu e ouviu, para iniciar a rotina no jornal. Entrevistou mais de cem pessoas, parte delas nunca tinha contado a sua história. Além de sobreviventes do holocausto, Daniela escutou o testemunho de funcionários e de médicos. Um deles, Ronaldo Simões Coelho, ligou para ela meses atrás: “Meu tempo de validade está acabando. Não quero morrer sem ler seu livro”. No final dos anos 1970, o psiquiatra havia denunciado o Colônia e reivindicado sua extinção: “O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma”. Perdeu o emprego.
Umas poucas vezes, os esqueletos do Colônia subiram à superfície. Passada a comoção pública, voltavam ao fundo empurrados pelas pedras de sempre. Em 1961, a rotina do hospício foi contada na revista O Cruzeiro, pelo fotógrafo Luiz Alfredo e pelo repórter José Franco. O título da matéria era: “A sucursal do inferno”. Em 1979, o repórter Hiram Firmino e a fotógrafa Jane Faria publicaram a reportagem “Os porões da loucura”, no Estado de Minas. O documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton, filmado em 1979, tornou-se um símbolo da luta antimanicomial.
No início dos anos 1960, ao voltar para a redação de O Cruzeiro depois de conhecer o Colônia, o fotógrafo Luiz Alfredo desabafou com o chefe: “Aquilo não é um acidente, mas um assassinato em massa”. Apesar da denúncia estampada na revista de maior sucesso da época, a realidade só começaria a mudar – lentamente – duas décadas mais tarde, a partir dos anos 1980, quando a reforma psiquiátrica ganhou força. Hoje, restam menos de 200 sobreviventes. Parte deles morrerá internada, parte tenta inventar um cotidiano em residências terapêuticas, com os farrapos de delicadeza que lhe sobram. Como Sônia Maria da Costa, que às vezes coloca dois vestidos porque passou a vida nua.
Neste livro, Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil. Agora, é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda não acabou.
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O documentário Holocausto Brasileiro, calcado no livro de Daniela Arbex, foi lançado em 14 de outubro de 2016, no Festival do Rio, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil, no centro da capital carioca. A adaptação para o cinema foi feita pela própria jornalista, que dirigiu e produziu o filme junto com Armando Mendz, numa parceria da Vagalume Filmes e HBO. Confira o trailer: