História,  Jornalismo

Jornalismo de trincheira paraguaio do século XIX renasce em quadrinhos na quarentena

Por Mauro César Silveira

O lendário Cabichuí emerge do passado na quarentena paraguaia. Aparece o número 96, que dá sequência ao satírico jornal editado nos campos de batalha da guerra contra a Tríplice Aliança a partir de 13 de maio de 1867.  Lançado no final de 2019 em Assunção, o álbum ilustrado El Cabichuí perdido, produzido por uma equipe de 18 cartunistas e roteiristas que homenageia os combatentes que escreviam e desenhavam na publicação do século XIX, é uma das opções de leitura mais adotadas no Paraguai nesta época de confinamento .

No alto das capas, o Cabichuí costumava mostrar, como identidade visual, um negro sendo picado por vespas – o significado do nome do jornal em guarani -, em alusão à maciça presença de escravos nas tropas formadas pelo Império de D.Pedro II. O Cabichuí e os jornais e revistas ilustrados brasileiros foram potentes armas psicológicas de guerra, destinadas a levantar a moral dos soldados, mas havia uma fundamental diferença entre as produções das duas nações em conflito: as criações satíricas do nosso país continental eram concebidas bem longe da guerra, a maioria delas na Corte, no Rio de Janeiro.

FICÇÃO REPLETA DE REALIDADE

No prólogo, o renomado cartunista, escritor e professor Roberto Goiriz, mentor do projeto, dimensiona o Cabichuí das trincheiras: “Seu aporte pode ser analisado desde diferentes disciplinas, que abarcam o jornalismo, a propaganda, a ilustração, o humor gráfico… uma riqueza extraordinária que contrasta com a sua humilde fatura: devido à escassez de recursos, foi impressa em papel de fibra de caraguatá, uma planta nativa da região. As tintas utilizadas foram extraídas de feijão preto ou de frutas silvestres e misturadas com cinzas. Escritores, poetas, linotipistas, chargistas e gravadores (a técnica empregada era a xilogravura) eram, ao mesmo tempo, soldados. Você pode imaginar esses criadores voltando de alguma batalha, exaustos, curando as feridas e chegando para trabalhar no conteúdo de uma nova edição …

Sobre o El Cabichuí perdido, Goiriz destaca o caráter cultural da proposta: “Foram publicadas 95 edições do Cabichuí, mas nós, que integramos esse álbum de homenagem ao jornal, descobrimos em nossa imaginação o número 96, para continuar a batalha cultural com novas criações, desde o relato histórico até as narrativas de ficção científica, desde o humor disparatado até as reflexões sobre o conflito. Este número fictício se enche de realidade com a contribuição de criadores de diferentes áreas, unidos no propósito de valorizar nossa cultura, entendendo que sua produção é uma forma de emancipação e de defesa da nossa soberania. Criamos para recordar, homenagear, para difundir que, mesmo em meio ao mais profundo desespero, é possível a esperança e é desejável a luta, até o final“.

“Specimen de bom gosto artístico na corte paraguaya em Paso Pocú” (cópia fiel da estampa da segunda página do jornal ilustrado Cabichuí n° 46). Reprodução do Suplemento da Semana Illustrada, de 17.11.1867

A Biblioteca Nacional do Paraguai disponibiliza digitalmente toda a coleção do Cabichuí em dois lotes: do número 1 ao 55 e da edição 56 até a 95. Editado em Paso Pucú, quartel-general de Solano López, essa publicação teve algumas páginas reproduzidas na carioca Semana Illustrada, afinada com a política imperial, como forma de estimular a reação dos artistas das revistas ilustradas brasileiras. Numa das charges, que a Semana Illustrada mostrou em 17 de novembro de 1867, o almirante Ignácio aparece no alto da embarcação lançando falsas esperanças aos seus comandados – sete negros, em mais uma referência à escravidão no Brasil –, alegando que os santos estariam a favor do Brasil. O último número, o 95, foi impresso na localidade de San Fernando, em 20 de agosto de 1868.

 

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