Tristán Roca, o jornalista boliviano exilado no Paraguai em plena guerra
Um estrategista das comunicações durante o maior conflito bélico sul-americano
Por Leonam Lauro Nunes da Silva*
Um trabalho de pesquisa sempre reserva surpresas. Quando escrevi a respeito das relações na tríplice fronteira (Brasil, Paraguai e Bolívia) durante a Guerra Grande, deparei-me com um personagem ímpar, de grande força: Dr. Tristán Roca Suárez. Em determinado momento da escrita da dissertação de mestrado, atinei que sua atuação, performance, em meio ao quadro social vigente requereria colocá-lo, não mais na condição de coadjuvante, e, sim, de protagonista do evento bélico que tanto impacto causou na vida dos países envolvidos e, quiçá, em todo o continente. Percebi, logo, que a sua história poderia render um trabalho único, apoiado, basicamente, nas ações empreendidas ao longo do período em que viveu, com a sua família, em solo paraguaio, exilado, devido ao enfrentamento político que manteve com as autoridades bolivianas constituídas à época.
Tristán Roca Suarez era considerado por Mariano Valencia Melgarejo, Presidente da Bolívia, como um perigo em potencial, pois tinha o dom da palavra, sendo capaz de mobilizar seus conterrâneos, cruceños, contra o golpe de Estado que derrubou José María Achá do poder. À época, prefeito de Santa Cruz de la Sierra, sentiu que a perseguição alcançara o grau máximo quando foi preso, algemado, e remetido juntamente com sua família para a cidade brasileira de Corumbá, ao sul da Província de Mato Grosso, que, naquele momento, estava sob ocupação do exército paraguaio. Chegou até a localidade através de um caminho aberto durante a guerra, com o objetivo de promover a interação entre bolivianos orientais e paraguaios. Sua estada em Corumbá foi curta. Logo, conseguiu estreitar relações com a oficialidade paraguaia, convencendo-os de que poderia prestar relevantes serviços atuando na capital, Assunção. Assim, a viagem teve continuidade, agora por via do caminho fluvial: o Rio Paraguai.
Valeu-se de experiências como fundador do primeiro jornal de Santa Cruz de la Sierra, intitulado La Estrella del Oriente, cujos exemplares começaram a circular pelas ruas cruceñas no alvorecer de 1864.
Ao aportar na “mãe das cidades sul-americanas” não perdeu tempo. Saiu à campo para mostrar suas habilidades enquanto periodista. Valeu-se de experiências pregressas na área, afinal havia sido o fundador do primeiro jornal de Santa Cruz de la Sierra, intitulado La Estrella del Oriente, cujos exemplares começaram a circular pelas ruas cruceñas no alvorecer de 1864. Com a posse das matrizes do periódico, dirigiu-se até a imprensa oficial da República do Paraguai para oferecer seus préstimos. Não teve dificuldades em ser admitido, passando a colaborar com El Semanário. O jornal era publicado pela Imprensa oficial do Paraguai, tendo como missão informar a população sobre os acontecimentos políticos e sociais. A guerra, naturalmente, ocupava lugar de destaque na pauta da publicação.
Após a vitória das tropas paraguaias na Batalha de Curupaiti, em meados de 1866, as ruas de Assunção pulsavam de entusiasmo; havia confiança na vitória frente à Tríplice Aliança. Imbuído por esse espírito, Tristán Roca, escreveu um artigo sobre o brilhante feito em armas, conquistando definitivamente a simpatia daqueles que dirigiam o país, em especial de Francisco Solano López.
Em 1867, o intelectual cruz-serrano recebeu a incumbência de dar forma e conteúdo a uma pioneira publicação, que deveria comover o coração dos paraguaios, especialmente da soldadesca, alimentando a chama da resistência contra a invasão dos aliados. Assim, em abril de 1867, chegavam às ruas de Assunção os exemplares da primeira edição de El Centinela, o primeiro dos chamados “periódicos de guerra”. No seu editorial inaugural, dedicado ao Presidente paraguaio, definia-se como “uno de eses soldados jóvenes que habeis hecho célebres en los campos de batalla”.
El Centinela inovava na medida em que articulava textos (ensaios, poemas, crônicas) com uma rica produção imagética, calcada nas xilogravuras.
Forjado à semelhança de La Estrella de Oriente, no tocante a sua diagramação, El Centinela inovava na medida em que articulava textos (ensaios, poemas, crônicas) com uma rica produção imagética, calcada nas xilogravuras. Estas eram concebidas de duas formas. A primeira, de caráter mais acadêmica, erudita, com influência europeia, pode ser percebida nas produções destinadas ao periódico El Centinela, editado em Assunção, pela Imprensa Oficial; o trabalho de execução feito pelos gravadores Manuel L. Colunga e Juan José Benítez era acompanhado de perto pelo conceituado arquiteto italiano Alejandro Ravizza, que idealizava as charges. A segunda, mais popular, presente em Cabichuí, foi forjada em meio aos campos de batalha, feita por soldados habilidosos na arte de entalhar madeira. A historiadora Josefina Plá ressalta o caráter inédito e popular das charges em xilogravuras – sem precedentes na América do Sul -, fruto do engenho e da conjuntura belicosa nas quais foram concebidas. Enquanto diretor e redator-chefe do periódico El Centinela, Tristán Roca tinha a missão de engendrar a melhor forma dos receptores apreenderem as mensagens difundidas.
Não é possível dissociar texto e imagem ao realizar o presente estudo, uma vez que o trabalho jornalístico era realizado em equipe, com alto grau de coesão. Não havia em El Centinela um setor específico destinado às charges. Estas estavam integradas ao conteúdo textual, pois, assim, o “arquiteto” da publicação, Tristán Roca, visava atingir diferentes extratos da sociedade paraguaia. Para tal, esforçava-se, inclusive, em adequar a linguagem e estabelecer estratégias para alcançar uma comunicação mais eficiente com o público em geral, leitores e não leitores. A produção jornalística, portanto, incorporava-se do espírito “sério-jocoso”, tendo a força necessária para atingir a alma daqueles que empreendiam uma “guerra total” e que viam, dia-a-dia, seus recursos exaurirem. O intelectual cruceño tinha ciência a respeito do público com o qual dialogava. Falava aos soldados do front, mas também à alta sociedade, ansiosa com os rumos da guerra.
Mentor intelectual daquela que se revelou uma eficiente estratégia de comunicação, Tristán Roca Suarez perdeu a vida em 22 de agosto de 1868, em San Fernando, sendo uma das vítimas dos célebres processos movidos por Francisco Solano López, que acusaram centenas de pessoas por conspirarem contra seu governo, considerando-os como “traidores da pátria”. Aquele que ajudou a construir, com sua pluma, a imagem do “El Supremo”, hoje, tenta sair de seu “desterro” histórico através de estudos que o elevam à condição de “operador mítico”, pois arquitetou e organizou com consciência as fundações que, hoje, sustentam a ideia de uma identidade nacional, entronizada na memória da sociedade paraguaia.
Referências
FERNÁNDEZ, Hernando Sanabria. La ondulante vida de Tristán Roca Suarez. La Paz: Libreria Editorial Juventud, 1984.
PLÁ, Josefina. El grabado. Instrumento de defensa. Edição em fac-símile de Cabichuí, Asunción: Museo del Barro, 1984.
SILVA, Leonam Lauro Nunes da. Relações na Tríplice Fronteira: a participação da Bolívia no Contexto da Guerra Grande (1865-1868). 2009. 127 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2009.
* Leonam Lauro Nunes da Silva é professor efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso, Campus Pontes e Lacerda – Fronteira Oeste. Doutor pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, onde defendeu a tese intitulada “Tristán Roca Suárez e sua atuação na Guerra Grande – Ecos do labor intelectual de um desterrado (1866-1868)”. Este artigo apresenta aspectos abordados na sua palestra sobre o jornalista Tristán Roca, proferida, em 28 de julho de 2020, no Congresso Internacional Virtual “La lucha por la memoria”, organizado pela Universidad Nacional de Asunción, Paraguai.