História,  Jornalismo

Jornalismo escrito à mão: a pioneira e inovadora Gazeta de Buenos Aires

Primeiro manuscrito noticioso do Cone Sul nasceu sob a pena de um comerciante francês que adulava as autoridades da Coroa espanhola para viabilizar a publicação

Por Mauro César Silveira

Buenos Aires fervilhava nos anos 60 do século XVIII e as folhas volantes se multiplicavam cada vez mais. Percebendo o interesse dos portenhos em obter informações sobre os mais diferentes temas, seja pela crescente proliferação dos escritos avulsos ou pela intensa procura dos periódicos que chegavam da Espanha, o comerciante francês Jean Baptiste de La Salle – homônimo do santo católico – lançou, em 1764, a Gazeta de Buenos Aires. Ele reuniu várias folhas manuscritas em um pequeno caderno, com notícias variadas, mas ainda sem uma periodicidade regular. Na Argentina, ficou conhecido como Juan Bautista de La Salle – a versão espanhola do seu nome -, que adotou mais de uma década antes, ao passar pela Península Ibérica rumo à América do Sul.

A novidade teve vida fugaz, não passando do primeiro ano. Os quatro exemplares conhecidos, com oito páginas cada um, estão guardados no Archivo General de la Nación, na Argentina, e correspondem aos dias 19 de junho, 24 de julho, 28 de agosto e 25 de setembro, indicando a pretensão de que fosse um manuscrito mensal. O tamanho das edições preservadas é de 15 por 25 centímetros.

Na Bacia do Prata, o fenômeno dos manuscritos avançava, desde as primeiras décadas daquele século, sobre dois eixos bem distintos um do outro – o das publicações denominadas pasquines e o das “notícias comunicadas”. A primeira modalidade reunia cáusticas manifestações políticas, que corriam de mão em mão com bastante sigilo ou eram fixadas de maneira anônima nas paredes dos prédios. Eram textos indignados contra os representantes da Coroa hispânica, que também circulavam de casa em casa. Já as notícias comunicadas, em tom menos estridente, ofereciam informações que as autoridades avaliavam como úteis para a população, sem apresentar juízos de valor, como a movimentação de embarcações e fatos ocorridos na Corte.

Entre os dois formatos, o primeiro manuscrito jornalístico da região que hoje conhecemos como Cone Sul é herdeiro das notícias comunicadas. Especula-se que Juan Bautista de La Salle não apenas contava com a tolerância dos representantes da monarquia espanhola, mas recebeu apoio econômico deles. Em muitos textos, sobravam elogios à administração regional. Também era externada a preocupação com a saúde do então governador e futuro vice-rei do Rio da Prata, Pedro de Cevallos, e não faltavam menções adulatórias às suas qualidades militares, assim como expressões de repúdio aos seus adversários políticos.

Ainda que estivesse vinculado ao poder, Juan Bautista de La Salle é tido, para o historiador argentino Miguel Ángel De Marco, como “o indiscutível precursor do jornalismo nestas latitudes”.

Mas em relação às notícias comunicadas, a Gazeta de Buenos Aires inovou na forma de apresentação do conteúdo, com textos opinativos e alguns comentários jocosos e, por isso, mesmo tendo caráter áulico, é considerado por muitos historiadores platinos como a pioneira publicação jornalística da região. Ainda que estivesse vinculado ao poder, Juan Bautista de La Salle é tido, para o historiador argentino Miguel Ángel De Marco (2006), como “o indiscutível precursor do jornalismo nestas latitudes”. Demonstrou ser homem de certa formação intelectual, que se mostrava qualificado em apresentações públicas, diante dos órgãos oficiais, e, “se não se caracterizava por sua boa caligrafia, lhe sobrava entusiasmo para empreender a nova tarefa”.

Primeira página da última edição conhecida da Gazeta de Buenos Aires, de 25 de setembro de 1764

O mesmo historiador transcreve o “justo” balanço do trabalho da Gazeta de Buenos Aires, produzido por seu colega José María Mariluz Urquijo (1988): “Cabe anotar a seu favor que, embora se estruturasse à semelhança de outras gazetas de seu tempo, não é de modo algum cópia delas, mas sim um produto original, que se nutre da realidade local. Mediante a Gazeta de Buenos Aires cobram vida não só a cidade, mas seus diferentes bairros, e através dessa publicação nos inteiramos não apenas do que se passa, mas do que pensam os portenhos sobre algumas questões de vital interesse para eles naquela época”.

Os pesquisadores que se debruçaram sobre esse período histórico definem o manuscrito de La Salle, no mínimo, como “oficioso”. Nem poderia ser diferente. Sánchez Zinny (2008) avalia que os maiores interessados em que começassem a brotar iniciativas de divulgação de informações eram as autoridades espanholas na região, resguardados os interesses políticos da Coroa e a condição peculiar do Iluminismo ibérico, que manteve quase intacto o poder eclesiástico e apoiou a ação repressora da ala mais dura da Inquisição. Tudo, então, deveria ser rigidamente controlado. E as autoridades coloniais se empenhavam muito nessa tarefa.

Sánchez Zinny (2008) reconhece, no entanto, o notório interesse por informação e uma real inquietude cultural de boa parte dos habitantes de Buenos Aires naquela época. Uma evidência clara da busca por conhecimento era o número de assinantes de jornais espanhóis na região do Rio da Prata nas últimas décadas do século XVIII: nada menos que 300, número elevado para aqueles tempos. A chegada de embarcações no porto da atual capital argentina também era cercada de grande expectativa, não apenas para os comerciantes que aguardavam mercadorias importadas, mas porque traziam impressos e noticias do continente europeu.

Não há dúvida que os manuscritos cumprem duplo papel na espiral do tempo. Depois do surgimento da imprensa, se constituíram em possibilidade de acesso à informação censurada. Hoje, se preservados, compõem um conjunto de valiosas fontes históricas.

A manuscrita Gazeta de Buenos Aires pode ser apontada como o embrião do jornalismo impresso que se materializaria bem depois, em 1º de abril de 1801, na primeira edição do Telégrafo Mercantil, o pioneiro periódico gráfico do Cone Sul. Sem pretender comparar o conteúdo das edições do manuscrito com os atuais jornais, como faz questão de observar, De Marco (2006) assinala que a publicação dividia os temas em seções, como ocorre já há algum tempo na imprensa industrial. Estavam claramente diferenciadas, na manuscrita Gazeta de Buenos Aires, as informações comerciais e administrativas, militares e religiosas, sociais e de conteúdo ameno ou educativo, jurídicas e policiais. O foco era quase exclusivo nos fatos da região, deixando os temas europeus para as folhas – impressas ou não – que chegavam da Espanha em embarcações que aportavam na cidade. Na pena do francês La Salle, a proximidade já despontava como importante valor-notícia. Um comerciante com aguçado faro jornalístico. Bem à frente de seu tempo.

Livro organizado por Marialva Barbosa preenche importante lacuna na história do jornalismo brasileiro

No livro Os Manuscritos do Brasil: Uma rede de textos no longo século XIX, organizado pela professora Marialva Barbosa e lançado pela Eduff (Editora da Universidade Federal Fluminense) em 2018, podem ser conhecidos mais detalhes da Gazeta de Buenos Aires e de outros escritos à mão da região platina. Mas o grande mérito da obra é preencher uma importante lacuna que havia na história do jornalismo brasileiro: o estudo das produções artesanais que circularam no país durante o século XIX, antes e depois da criação da Imprensa Régia. O livro seleciona duas dezenas de periódicos do Brasil, todos manuscritos. Com tiragens mínimas, eram críticos, satíricos, literários, eróticos ou difamadores. Quase todos produziam um único exemplar, que podia se multiplicar diante do olhar dos leitores, já que eram, algumas vezes, afixados em locais públicos para a leitura coletiva. Esse exemplar único costumava passar de pessoa a pessoa, como ocorrera no século anterior com a Gazeta de Buenos Aires, permitindo a multiplicação das mensagens que divulgavam.

A exemplo do que tinha acontecido na Europa, a rígida vigilância das publicações impressas deu sobrevida, na América do Sul, aos textos produzidos à mão. Lá, os manuscritos avançariam até o século XVIII, sejam na forma de folhas satíricas aos monarcas e seus ministros, ou como cópias de livros para sua distribuição nos lugares onde estavam proibidos. Aqui, seriam combustíveis menos controlados dos processos emancipacionistas. Não há dúvida que os manuscritos cumprem duplo papel na espiral do tempo. Depois do surgimento da imprensa, se constituíram em possibilidade de acesso à informação censurada. Hoje, se preservados, compõem um conjunto de valiosas fontes históricas.

Referências

DE MARCO, Miguel Ángel. Historia del periodismo argentino: desde los orígenes hasta el centenario de Mayo. Buenos Aires: Editorial de la Universidad Católica Argentina, 2006.

SÁNCHEZ ZINNY, Fernando. El periodismo en el virreinato del Río de La Plata. Buenos Aires: Academia Nacional de Periodismo, 2008.

SILVEIRA, Mauro César. Um pecado original: os primórdios do jornalismo na Bacia do Rio da Prata. Florianópolis: Insular, 2014.

MARILUZ URQUIJO, José María. La gazeta de Buenos Ayres (1764). Revista Investigaciones y Ensayos, Academia Nacional de História, Buenos Aires, edição nº 38, 1988.

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