História,  Jornalismo

O futuro no passado

Esvaziada pela pandemia, Veneza valoriza sua rica história de 1600 anos e sua posição vital nas primícias do jornalismo

Por Mauro César Silveira

A movimentação foi caindo, compelida sem trégua, de maneira implacável, pelo avanço da pandemia. O alarido retumbante, onipresente, quase eterno, nas ruas do centro histórico de Veneza, foi diminuindo de intensidade mês a mês, desde o início do ano passado. Hoje, a Serenissima respira devagar, ao sabor plácido das águas que contornam suas mais de 100 ilhas, na reverenciada lagoa junto ao Mar Adriático. Desapareceram os turistas, as grandes embarcações, o vaivém humano incessante entre a Praça São Marcos e o seu entorno, como a Basílica, com seu campanário, e o Palácio Ducal. O ambiente sonoro veneziano ressurgiu quase que por milagre: do buliçoso Mercado do Rialto, na voz de seus comerciantes de peixes e verduras, ao ribombar dos sinos e às estridentes gaivotas. Quase dois meses depois de completar 1600 anos – celebrados em 25 de março – Veneza e seus moradores refletem sobre os efeitos do turismo predatório e estudam alternativas mais sustentáveis para o futuro. Uma das propostas que sobressai é a revalorização da longa e rica história da cidade italiana, através de atividades culturais que desestimulem o visitante de um dia e reduza a presença massiva nos seus canais e nas ruelas da região central.

Palácio Ducal sempre foi ameaçado pelos grandes navios dos cruzeiros marítimos Foto: Dany Caetano

As primeiras medidas já foram anunciadas. O governo do primeiro-ministro Mario Draghi aprovou, no dia do aniversário de Veneza, um decreto-lei que introduz disposições urgentes para impedir a entrada na lagoa de navios de cruzeiros com mais de 40 mil toneladas. Até pouco mais de um ano, circulavam, a poucos metros do Palácio Ducal, embarcações de 300 metros, pesando 700 mil toneladas. Recentemente, o vereador Simone Venturini anunciou que os excursionistas passarão a pagar para entrar na cidade, 3 euros na temporada baixa e 10 na alta. Somente depois que a Covid-19 desacelerou o mundo, a situação insustentável do município ganhou contornos mais nítidos: estudo de 2018 realizado pelo professor Jan van der Borg, especializado em economia turística na Universidade Ca’Foscari, de Veneza, apontava que o centro histórico recebia naquele ano 52 mil visitantes diários para uma população de pouco mais de 51 mil pessoas. Uma conta quase exata: um turista por habitante. Dos quase 200 mil moradores do século XVI, essa região experimentou um decréscimo vertiginoso em três décadas, de 1980 a 2010, passando de 93.598 para 59.942 almas. E a população continuou baixando, somando, neste 2021, 51.112 pessoas.

“O futuro de Veneza depende da conservação da herança do passado”. Gabriella Belli, diretora da Fundação de Museus Cívicos 

Os venezianos sonham com a possibilidade de reverter esse quadro, mas mantendo condições de sobrevivência econômica. Uma reinvenção que passa pela retomada do protagonismo artístico da cidade, da arquitetura ao teatro e ao cinema, mas, sobretudo, pela longeva existência do lugar. Um exemplo é o acervo da Fundação de Museus Cívicos: 700 mil obras de arte, cinco bibliotecas especializadas e um portentoso arquivo fotográfico. “O futuro de Veneza depende da conservação da herança do passado”, sentencia Gabriella Belli, a diretora da instituição. Nesse viés histórico, o papel desempenhado pela cidade nas primícias do jornalismo também merece ser ressaltado. Muito tempo depois de sua fundação (no remoto ano de 421), Veneza é palco central do que, para muitos pesquisadores de história da imprensa, são as primeiras características dessa atividade. A partir do século XIV, se nota no que então era um movimentado centro do comércio mundial, a difusão das notícias de forma frenética. É um marco inicial datado: “Quando de forma ordenada, seriada, em oferta pública, com preço, quando aparecem aqueles fatores mais elementares dessa forma específica de comunicação em torno das folhas avulsas (fogli a mano), avisos, gazetas e ‘preços correntes’ entre o trezentos e o quinhentos italianos, quer dizer, no primeiro Renascimento” (TIMOTEO ÁLVAREZ, 2008, p. 26).

Sossego nos canais de Veneza: imposição da pandemia Foto: Dany Caetano

Entre os personagens renascentistas que já desenvolviam um ofício com as características definidas por esse historiador se destacava o escritor e dramaturgo italiano Pietro Aretino (1492-1556). Ele esteve a serviço de muitos monarcas, como o rei francês Francisco I, e ficou conhecido como “o açoite dos príncipes”, em razão da sua capacidade para produzir libelos demolidores contra os adversários de seus contratantes. Autodidata, esse filho de sapateiro acabou se projetando naquela época graças ao talento para escrever notícias em avisos ou cartas, com grande impacto e apelo popular, comercializados na fervilhante Veneza daquela época. Aretino é um dos melhores exemplos da fase primitiva de produção e circulação de notícias, ainda distante do jornalismo que se consolidaria definitivamente a partir do século XIX.

Mas se recuarmos um pouco mais no tempo, na considerada por muitos autores como a pré-história do jornalismo, também seremos obrigados a olhar para essa cidade italiana. A Serenissima era o principal polo de atração dos textos manuscritos que circularam pela Europa, por volta do século XIII, bem antes do aparecimento da tipografia. Na sua área central, corriam de mão em mão informações de caráter econômico, o principal fator a mover aqueles papéis, que se disseminaram notadamente na Itália (Avvisi) e na Alemanha (Zeitungen), “escritos muitas vezes redigidos para atender os interesses dos grandes, dos ricos mercadores, ou dos banqueiros, por gente dedicada exclusivamente a isso como ofício” (TERROU, 1970, p. 20).

Visão da ponte do Rialto sobre o Grande Canal: local de posto de vendas das primeiras gazetas Foto: Dany Caetano

A produção manuscrita – avisos e folhas soltas – começou através da correspondência privada entre os comerciantes, mas se estendeu a militares e membros do clero, atendendo as necessidades de comunicação de cada um desses segmentos. Já no século XIV, os autores dos textos eram profissionais estabelecidos e conhecidos em países como a França (nouvellistes) ou a Itália (novellanti, rapportisti ou menanti), oferecendo seus serviços a monarcas e negociantes. (GUILLAMET, 2008, p. 45). Pela sua importância comercial, Veneza foi o maior centro de difusão de notícias nesse período, inclusive contando com um posto de vendas junto à ponte de Rialto, sobre o Grande Canal. Lá, os manuscritos eram chamados de gazzetas, em alusão ao preço de cada exemplar – uma gazzeta, a moeda veneziana – que, depois, daria nome a muitas publicações impressas surgidas a partir do século XVII e que atualmente ainda batiza muitos jornais mundo afora. As primeiras gazetas eram bem diferentes: pequenos manuscritos dobrados, que não costumavam exceder ao tamanho de 15 por 20cm, apresentando curtas notícias, invariavelmente sem apresentar título.

Mas esses modestos escritos à mão compõem, sem dúvida, um prelúdio importante do que viria a ser o jornalismo. Agora devem renascer, ao lado das primeiras gazetas, na repaginação turística da cidade, com o devido o reconhecimento do seu valor histórico. O desafio de se reinventar no horizonte ainda pandêmico não parece assustar a velha cidade. Afinal, Veneza tem resistido e superado muitas provações: a dominação austríaca, duas guerras mundiais, pestes variadas, terremotos, incêndios e suas maiores ameaças, as inundações.

Referências

GUILLAMET, Jaume. De las gacetas del siglo XVII a la libertad de imprenta del XIX. In: BARRERA, Carlos (Coord.). Historia del periodismo universal. Barcelona: Ariel, 2008.

SILVEIRA, Mauro César. Um pecado original: os primórdios do jornalismo na Bacia do Rio da Prata. Florianópolis: Insular, 2014.

TERROU, Fernand. La información. Caracas: Monte Avila, 1970.

TIMOTEO ÁLVAREZ, Jesús. Los medios y el desarrollo de la sociedad occidental. In: BARRERA, Carlos (Coord.). Historia del periodismo universal. Barcelona: Ariel, 2008.

VEJA TAMBÉM

Um livro que aborda a história cultural de Veneza de forma original, com uma narrativa envolvente, que percorre o passado da cidade através das refeições típicas do lugar, é Ao gosto de Veneza: um passeio gastronômico pela história e pelo cotidiano da Serenissima, da jornalista Luiza Frey, lançada pela DBA Dórea Books and Art, de São Paulo, em 2012. Originada em Trabalho de Conclusão de Curso apresentado dois anos antes na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a obra, de alta qualidade editorial e gráfica, conta com belas ilustrações do veneziano Nicola Tenderini e pode ser adquirida aqui.

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3 Comentários

  • Luisa Frey

    Que alegria ler este texto e ainda encontrar a referência ao me livro no final. Obrigada mais uma vez pela orientação no TCC, Mauro, e parabéns pela reportagem. A Serenissima é mesmo fascinante!
    Um grande abraço,
    Luisa

    • Jornalismo & História

      Foi uma honra ter sido teu orientador, Luisa. Agradeço os cumprimentos pela reportagem. Teu belíssimo livro está à altura da encantadora Serenissima. Grande abraço também! Mauro, editor do Jornalismo & História

  • Vivien Bonafer Ponzoni

    Texto muito interessante que cativa a leitura.
    Quanto ao livro da jornalista Luiza Frey, Ao Gosto de Veneza,alem da curiosidade do tema é um texto muito gostoso de ler transparecendo que a narrativa foi temperada com um imenso prazer em escreve-lo. Recomendo para os amantes de uma das cidades mais lindas do mundo.

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