História,  Jornalismo,  Reportagem

Um potente lugar de memória

Trabalho mais recente de Joe Sacco, o livro Um tributo à terra consolida a reportagem em quadrinhos como espaço privilegiado de construção da história

Por Mauro César Silveira e Natália Huf

A ideia era reportar as mudanças climáticas sob o ponto de vista de comunidades indígenas em três regiões distintas ao redor do mundo. Em princípio, Joe Sacco pensou em visitar uma área canadense e outros dois locais, um na América Latina e outro na Austrália ou na Índia, e produzir reportagens a serem publicadas numa revista francesa. Mas como em toda a investigação jornalística bem-sucedida o desenrolar do trabalho desvelou um quadro bem mais amplo e, no caso, bem mais trágico. Ao se deparar com a desesperadora situação vivida pelo povo originário dene, que vive desde tempos imemoriais em extensas terras do noroeste do Canadá, o mestre da reportagem em quadrinhos não teve dúvida: planejou seu novo livro, Um tributo à terra (originalmente intitulado Paying the Land), lançado neste primeiro semestre de 2021 na Espanha pela Reservoir Books.

A imagem favorável que Joe Sacco tinha do país canadense se desfez a cada passo da reportagem.

Em 272 páginas, a mais recente obra – ainda sem edição em português – do jornalista e quadrinista maltês radicado em Portland, nos Estados Unidos, dá voz aos espoliados indígenas canadenses, vítimas da contumaz extração de recursos naturais de suas terras. As pessoas entrevistadas por Joe Sacco, durante seis semanas na comunidade, relembram, pelas reminiscências dos seus antepassados, dos tempos remotos em que ninguém lhes determinava o que fazer. A imagem favorável que ele tinha do país canadense se desfez a cada passo da reportagem. A cobiça pela terra dos dene exigiu uma ação sistemática do poder político e econômico para romper os laços culturais da comunidade indígena com seu território. O mais chocante de tudo foi descobrir a quantidade de abusos cometidos, como as medidas adotadas para acabar com as línguas indígenas, os maus-tratos a crianças e jovens indígenas por falarem sua própria língua, como Joe Sacco afirmou em entrevista ao site em espanhol Condé Nast Traveler: “Quando voltaram para sua comunidade, eles não podiam mais falar a língua nativa e não podiam se comunicar com seus próprios pais e avós. Todos os fundamentos da cultura foram quebrados. Daí derivam muitos problemas psicológicos. Existe muito alcoolismo nas comunidades indígenas, diretamente relacionado a essa destruição cultural”. Como em grandes reportagens anteriores publicadas em livros ilustrados, ele entrevistou exaustivamente dezenas de pessoas, depois elaborou um cuidadoso roteiro para a narrativa e elaboração dos desenhos, num processo que, nesse caso, se estendeu por quatro anos.

Um tributo à terra consolida o jornalismo em quadrinhos como espaço privilegiado de construção da história, como abordamos em texto publicado esta semana na revista científica Pauta Geral – Estudos em Jornalismo, do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR). Nesse artigo do Grupo de Estudos de História do Jornalismo na América Latina, ao qual o Jornalismo & História está vinculado, destacamos a trajetória coerente e progressiva de Joe Sacco desde Palestina, de 1996 – que chegou ao Brasil em dois volumes lançados pela editora Conrad em 2003 e 2004 -, consagrando a reportagem histórica visual como uma vertente inspiradora para outros jornalistas do traço dos mais diferentes recantos  do planeta. Gorazde, Área De Segurança, A Guerra na Bósnia Oriental 92-95 reafirmou o projeto do quadrinista em 2000 – um ano depois, a mesma Conrad lançou essa obra de 227 páginas no país, portanto, antes mesmo das edições brasileiras de Palestina. Seguiram-se as alentadas Notas sobre Gaza, de 2010, de 432 páginas, (no Brasil, publicadas naquele mesmo ano) e Reportagens, de 2012 (com versão nacional em 2016), ambas editadas pela Companhia das Letras.

Fica nítida a vinculação com a realidade, através de uma estratégia discursiva que lançou as bases do jornalismo em quadrinhos e é referência para todos os profissionais que enveredam pelo mesmo caminho.

Além de se ater a temas socialmente relevantes, como seu principal critério de escolha para as reportagens, Joe Sacco costuma apresentar dados e estatísticas sobre os fatos narrados, incluindo muita informação obtida nas mais diferentes fontes, de arquivos históricos a organismos oficiais, em blocos informativos que podem ser bem extensos, intercalando a sequência de cenas, como fez à exaustão em Notas sobre Gaza. Neste trabalho, incluiu o desenho de um detalhado mapa da região, permitindo uma visão geográfica bastante esclarecedora. Fica nítida a vinculação com a realidade, articulando as histórias, os cenários e os personagens mostrados com o quadro geral do bairro, cidade ou país retratado. Uma estratégia discursiva que lançou as bases do jornalismo em quadrinhos e é referência para todos os profissionais que enveredam pelo mesmo caminho.

No artigo divulgado na revista Pauta Geral – Estudos em Jornalismo, intitulado Jornalismo em quadrinhos e construção de memória: sobre Joe Sacco e credibilidade da narrativa sequencial, procuramos discutir, a partir de reportagens desenhadas produzidas desde Palestina, conceitos como credibilidade e subjetividade e o papel desse gênero como um potente lugar de memória. Por não prescindir dos métodos jornalísticos, o jornalismo em quadrinhos é dotado da mesma seriedade e busca a credibilidade que notícias (hard news) ou grandes reportagens aprofundadas perseguem; bem como, por utilizar como linguagem os quadrinhos — conhecidos como “nona arte” —, possui algumas características semelhantes às do jornalismo literário ou do documentário. A partir da compreensão de que essa forma narrativa visual produz conteúdos aprofundados, checados e condizentes com a realidade observada pelo jornalista-quadrinista, acreditamos que esse gênero de reportagem é um importante meio para a construção e preservação de memória, por meio da documentação de fatos, pessoas e lugares que de outro modo talvez não pudessem ser documentados. A obra de Joe Sacco nos fornece exemplos de reportagens sobre locais de conflito, que são cuidadosamente (e bastante detalhadamente) desenhados pelo autor, a partir de seu ponto de vista como jornalista-observador e narrador. Mas sem abrir mão, em nenhum momento, dos procedimentos de apuração rigorosamente jornalísticos. Um trabalho duro, transparente, honesto, que honra nossa profissão.

TERRÍVEL DESCOBERTA

O mais recente livro de Joe Sacco se reveste de maior importância depois da terrível descoberta no Canadá, no mês passado, dos restos mortais de 215 crianças, algumas com apenas três anos de idade, encontrados numa antiga escola residencial para meninos e meninas indígenas fechada em 1978.  O sistema educacional do país separava à força as crianças indígenas das suas famílias, e esses lugares ficaram conhecidos pela prática de abusos físicos, sexuais e desnutrição. Um “doloroso” achado, como definiu o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau. As crianças eram estudantes da Kamloops Indian Residential School, na província Colúmbia Britânica, de acordo com informações da comunidade indígena da cidade de Kamloops, a Nação Tk’emlúps te Secwépemc. Situações semelhantes foram denunciadas no documentário The Last Ice, de Scott Ressler, exibido em 24 de outubro do ano passado no Brasil pelo canal National Geographic, marcando o Dia Mundial contra Mudanças Climáticas. A ideia inicial dos produtores era mostrar o efeito das profundas alterações do clima na fauna ártica, com o objetivo de defender a criação de uma grande reserva marinha na região. Mas, assim como ocorreu no livro-reportagem Um tributo à terra, a cruel realidade humana se impôs: a violação dos direitos indígenas assumiu o eixo da narrativa e os relatos dos inuit – que pertencem à nação indígena esquimó -, da Groenlândia e do Canadá, apontaram a ação permanente do sistema colonizador, com muitas crianças indígenas sendo levadas coercitivamente a escolas do sul canadense. Veja um trailer (em inglês) de The Last Ice:

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