Diálogos,  História,  Jornalismo

O estigma da suspeição no Império

Notícias de prisões reincidentes na Corte compõem a construção narrativa da criminalidade nos tempos de D. Pedro II

Por Maria Fernanda Ribeiro Cunha 

Um sem-número de histórias aparecem diante dos olhos de pesquisadores que colocam a imprensa à exame da História. Enquanto pesquisava sobre a invenção das classes perigosas na segunda metade do século XIX, me deparei com a experiência de pessoas policiadas que tiveram suas vidas narradas nos periódicos fluminenses. O policiamento na Corte era parte da pauta de colaboradores e redatores dos jornais da imprensa comercial, que produziam elementos da suspeição importantes na disputa de forças encontrada entre policiais e policiados nas ruas da cidade. Em meio a essas histórias, algumas chamam a atenção dos olhares atentos para a experiência de pessoas encarceradas nos tempos do imperador.

Não é possível dizer quantos anos tinha Casimiro José Teixeira, e o que fazia para sobreviver, quando, diante das autoridades policiais, foi preso e levado à Casa de Correção por cerca de vinte vezes. Assim como boa parte de pessoas policiadas na Corte, Casimiro teve sua história contada nos palcos da imprensa por meio do policiamento. Em 16 de janeiro de 1862, os colaboradores do Diário do Rio de Janeiro comentavam na seção de “Estatística da Corte”, que Casimiro teria sido preso por praticar “atos imorais” e essa é a primeira vez que é possível encontrar notícias sobre ele nas páginas da imprensa periódica fluminense.

Volume correspondente ao segundo semestre do ano de 1873 da Gazeta Jurídica:  publicação especializada Reprodução: Hemeroteca Digital/Biblioteca Nacional

Antes de chegarmos às notícias a respeito de Casimiro na imprensa de grande circulação, é preciso dizer, no entanto, que comecei a procurar por notícias sobre Casimiro depois de ler um processo de apelação criminal movido por ele. Enquanto a imprensa comercial prestava contas da atuação policial, os jornais jurídicos especializados tornavam públicos os processos em que estavam envolvidas pessoas policiadas da Corte. A Gazeta Jurídica era um jornal organizado por advogados membros do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), e contava com discussões escritas por esses advogados a respeito das leis e da aplicação delas, e também a transcrição de processos do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Na seção de “Jurisdição Criminal, então, é possível encontrar as histórias de prisões e reincidências, traduzidas para uma linguagem jurídica, na figura dos advogados, delegados de polícia e juízes.

No processo de apelação criminal, Casimiro recorria da sentença de prisão por injuriar a testemunha no momento do encarceramento por quebra de termo de bem viver. Essa era uma medida preventiva, presente no Código de Processo Criminal de 1832, em que pessoas consideradas “perturbadoras da ordem” deveriam assinar um documento, se comprometendo a conduzir a vida de acordo com a moralidade vigente. Na tentativa de diminuir a pena, Casimiro entra com uma apelação contra a sentença do juiz de primeira instância e alega não ter tido outros meios de contestar a testemunha. No entanto, Casimiro não consegue melhorar sua situação em relação a pena, uma vez que o processo acaba durando o suficiente para que ele cumprisse o tempo de encarceramento previsto pela primeira sentença.

Seção “Estatística da Corte” noticiava as prisões de pessoas suspeitas na primeira página do Diário do Rio de Janeiro, como nesta edição de 16 de janeiro de 1862 Reprodução: Hemeroteca Digital/Biblioteca Nacional

Para encontrar outros indícios da trajetória de Casimiro José Teixeira foi preciso voltar para a imprensa comercial, de modo a entender como era contada a história de uma pessoa policiada tantas vezes e que utilizava do judiciário para lidar com os dispositivos de controle e vigilância, no Segundo Reinado. Na mesma seção de “Estatística da Corte”, mencionada anteriormente, em que Casimiro aparece pela primeira vez no Diário do Rio de Janeiro, ele é citado outras quatro vezes. Menos de um ano depois da primeira ocorrência de Casimiro nessa seção do dia 16 de janeiro de 1862, ele reaparece no dia 12 de dezembro de 1862 por ter sido preso por vagabundagem, na Freguesia de São José. No mês seguinte, é possível encontrar Casimiro na mesma seção mais duas vezes, em 14 de janeiro e 24 de janeiro de 1863, preso por “jogo proibido” e “infração”, respectivamente.

Tornando públicos os policiamentos de Casimiro, os colaboradores do Diário do Rio de Janeiro ajudavam a endossar um passado considerado “suspeito” e entendido como potencialmente perigoso. De modo que a divulgação dos nomes dessas pessoas parece replicar a reincidência, alimentando a suspeição. Uma outra maneira de produzir essa suspeição em torno de pessoas como Casimiro era a de publicizar apelidos, facilitando a identificação do suposto criminoso entre o público leitor.

Capa da edição de O Globo de 27 de outubro de 1874: seção “Registro Diário” dissemina o apelido Pirralho do suspeito Casimiro Reprodução: Hemeroteca Digital/Biblioteca Nacional

Assim, é possível encontrar uma publicação feita n’O Globo, mais de dez anos depois das notícias a respeito de Casimiro no Diário do Rio de Janeiro, em 27 de outubro de 1874, em que o autor da seção de “Registro diário” o identifica pelo apelido de Pirralho. Elencando todas as prisões divulgadas anteriormente pelo Diário do Rio de Janeiro, o colaborador responsável pela notícia intitulada “Apontamentos biográficos” presumia a necessidade de registrar as prisões e reincidências de Casimiro, para uma suposta consulta futura das autoridades.

A pretensão de funcionar como um campo de forças na disputa entre autoridades policiais e policiados acaba por nos permitir pesquisar por meio dos periódicos os caminhos do policiamento. Assim, ainda que matizadas pela construção de um imaginário em torno da suspeição, as vozes de quem precisou lidar com os dispositivos de controle do Segundo Reinado podem ser observadas em meio a essa disputa de forças.

A última notícia a respeito de Casimiro José Teixeira, ou Pirralho, aparece em 16 de outubro de 1874, com mais uma prisão como ratoneiro. Enquanto na Gazeta Jurídica é possível saber o desfecho do processo em que Casimiro esteve envolvido, não conseguimos saber, perseguindo essas pegadas na imprensa periódica, como ele termina por lidar com o controle policial.

Nesse sentido, para recuperar a invenção das “classes perigosas” no policiamento da vida urbana é preciso levar em conta que a experiência não se encerra na letra da lei. A agência que se produz, apesar das tentativas de legislar sobre o comportamento dos policiados deve orientar os procedimentos de análise com as diferentes fontes possíveis a essa pesquisa. Por isso, é fundamental o compromisso de investigar os espaços de atuação dessa vida estampada como marginal, na pena da lei e no prelo da imprensa.

SOBRE A AUTORA

Integrante do Laboratório de Conexões Atlânticas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Maria Fernanda Ribeiro Cunha é mestranda em História Social da Cultura pela mesma universidade. Realiza atualmente pesquisa financiada pela CAPES na área de História do Direito, História e Imprensa e História do Crime. Também é bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Este artigo produzido para o Jornalismo & História reúne parte da pesquisa onomástica realizada durante o mestrado e apresentada no 31º Simpósio Nacional de História, evento virtual realizado entre os dias 19 e 23 de julho de 2021 por três instituições: Associação Nacional de História (ANPUH), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Veiga de Almeida (UVA).

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