História,  Jornalismo,  Resenha

A repórter que abraçou o mundo

Precursora do jornalismo investigativo, a estadunidense Nellie Bly suplantou a marca do personagem ficcional Phileas Fogg, da obra de Júlio Verne, ao dar a volta no globo terrestre, em pleno século XIX, no período de 72 dias

Por Mauro César Silveira

A insólita pauta foi cumprida, com absoluto êxito, num 25 de janeiro de 1890, exatos 132 anos atrás. Nem a autora da façanha estava segura de que a empreitada seria um estrondoso sucesso, superando as previsões mais otimistas. A jornalista Nellie Bly desembarcava na estação de trem de Jersey City diante de milhares de entusiasmadas pessoas que aguardavam a sua chegada, antes de partir para seu destino final em Nova Iorque, cerca de sete quilômetros adiante. Aos 25 anos, ela concluía seu obstinado projeto de percorrer a circunferência da Terra em menos tempo que Phileas Fogg, personagem ficcional do livro A Volta ao Mundo em 80 Dias, do escritor francês Júlio Verne, publicado em 1873. Nellie Bly fez o percurso em 72 dias, seis horas, 11 minutos e 14 segundos, ultrapassando não apenas o protagonista daquela obra literária, mas sua própria meta, a de completar o roteiro em 75 dias.

Tamanha proeza lhe rendeu homenagens de autêntica heroína nacional e deu ainda mais visibilidade ao seu trabalho jornalístico de alta qualidade, como já evidenciara nas reportagens investigativas que compõem a obra intitulada Dez dias num hospício, objeto de resenha em setembro passado aqui no Jornalismo & História. Os textos produzidos durante o trajeto que circundou o globo terrestre eram enviados através do correio e do telégrafo para a redação do New York World em Nova Iorque e foram reunidos em livro publicado no mesmo ano. Desde 1º de julho de 2021, esses vigorosos relatos podem ser apreciados no Brasil na obra Volta ao mundo em 72 dias, lançada pela Ímã Editorial, do Rio de Janeiro. A envolvente narrativa de Nellie Bly prende a atenção da leitura em suas 290 páginas e atesta como o jornalismo pode ser um espaço privilegiado de histórias bem contadas.

“Fui – pensei, com tristeza. E poderei regressar algum dia?”

Ao recordar os preparativos para a longa e incerta viagem, no primeiro capítulo do livro, ela definiu a sua decisão de levar em apenas uma diminuta valise todos os seus objetos pessoais como o primeiro grande obstáculo, “o ato mais difícil de toda a minha vida; havia tanto que colocar em tão pouco espaço…” Logo se deu conta que esse momento de apuro era muito pequeno, ínfimo, diante de tudo que lhe esperava. Já dentro do Augusta Victoria, que partiu do cais de Hoboken, em Nova Jersey, avançando lentamente pelas águas do rio Hudson, na ensolarada manhã de 14 de novembro de 1889, sua mente foi tomada de imagens perturbadoras: “Fui – pensei, com tristeza. E poderei regressar algum dia? Calor intenso, frio glacial, tempestades terríveis, naufrágio, febres, todos esses desagradáveis temas se haviam metido na minha cabeça que me senti como posso imaginar que se sentiria qualquer pessoa que estivesse trancada em uma caverna na escuridão mais tenebrosa e que teria sido informada de que todos os tipos de horrores estavam esperando para engoli-lo”.

O mar próximo antevia outros embaraços para Nellie Bly, que ainda não havia cruzado nenhum oceano. Enjoos, náuseas, quem sabe, vômitos. O caminho para eliminar essas sensações era apenas um, o de se obrigar a comer, como ensinou o capitão do navio. E, pouco a pouco, foi o que ela fez. Nada fácil. Mas com o tempo se acostumou ao balanço da embarcação que rumava para Southampton, no Reino Unido. Assim, sua condição de talentosa repórter pode aflorar em sua plenitude. Arguta observadora, Nellie Bly relata no livro situações vividas dentro e fora dos navios, barcos, trens e outros meios de locomoção que experimentou durante a sua extensa jornada. São saborosas suas descrições dos lugares que conheceu nas muitas paradas em terra firme, muitas vezes relacionando com os costumes do seu país de origem. Ao desembarcar no porto de Áden, no Iêmen, no dia 3 de dezembro de 1889, um imenso cartaz com os preços cobrados por cocheiros e barqueiros chamou sua atenção: “Sem dúvida, aquele aviso em destaque era uma consideração digna de elogio, uma vez que impedia que os turistas fossem roubados. Olhei para ele e pensei que naquele território havia ainda mais precauções em proteger os estrangeiros indefesos e ignorantes do que em Nova Iorque, onde o costume habitual era que os cocheiros noturnos exigissem preços exorbitantes e, se não fossem pagos, tirassem os casacos e lutassem pelos pagamentos exigidos”.

A rota da recordista viagem de Nellie Bly Imagem: www.pbs.org

Em muitas passagens, o bom humor característico da autora prevalece. Depois de se desapontar com a entrada em território italiano à noite, a bordo do trem que rumava à cidade de Brindisi, o que impedia sua visão “daquele país cálido e ensolarado”, demorou a dormir, cobiçando a “melhor sorte” dos ocupantes da mesma locomotiva sete dias antes. Sua ironia é sempre fina: “Amontoei todas as minhas roupas na cama e passei metade da noite acordada pensando na boa fortuna dos passageiros que estiveram naquele trem na semana anterior. Exatamente no mesmo local em que passávamos naquele momento, alguns bandidos italianos haviam assaltado o trem e eu pensei, para minha tristeza e não sem uma certa inveja, que se aqueles passageiros também sofreram com a falta de cobertores, pelo menos tiveram emoções que fizeram seu sangue circular”.

As condições do vapor Victoria y Oriental, que fez o trajeto entre Brindisi e a baía de Colombo no Sri Lanka (na época chamado de Ceilão) também mereceram o olhar ferino de Nellie Bly: “Em determinadas circunstâncias, uma viagem ao Mediterrâneo pode ser como um sonho no paraíso. Por exemplo, quando se está apaixonado, pois se diz que os amantes não comem; bem, tirando a comida, a viagem foi perfeita. Provavelmente é a esperança de encontrar a cura que os ajudará a esquecer o estômago vazio que faz do amor o tema principal dos navios da P&O (Peninsular and Oriental Steam Navigation Company, de Londres)”. O mesmo tom sarcástico acompanhou sua curiosidade sobre a verdadeira razão das excelentes condições das estradas que encontrou no Sri Lanka: “Não soube se as superfícies se mantinham lisas pela total e bendita ausência de carros de cerveja ou talvez pela ausência de vereadores conduzindo obras públicas como os de Nova Iorque”.

“Se eu fracassar, nunca mais voltarei à Nova Iorque, prefiro chegar morta e vitoriosa do que atrasada”.

Nem sempre a narrativa é marcada pela leveza. As muitas tensões vividas na corrida contra o relógio estão presentes o tempo inteiro. Ainda mais que logo após chegar a Londres, na primeira parte da viagem, aceitara o convite de Júlio Verne e sua esposa Honorine para visitá-los em Amiens, na França, desviando-se 289 quilômetros da rota original. “Se eu fracassar, nunca mais voltarei à Nova Iorque, prefiro chegar morta e vitoriosa do que atrasada”, desabafou ao chefe de máquinas do Oceanic, o navio que a conduziria de Yokohama, no Japão, a San Francisco, na costa oeste dos Estados Unidos, no último percurso marítimo da viagem, nos primeiros dias de janeiro de 1890. Antes, em Hong Kong, onde chegou no dia de Natal, havia sido surpreendida com a notícia de que outra repórter passara por lá três dias antes e perseguia o mesmo objetivo dela. A partir disso, sua apreensão diante da possibilidade de não cumprir com o prazo que ela mesmo estabelecera aumentou dia após dia.

Mas seu compromisso com o papel social do jornalismo era inarredável e sobressaía nas informações de contexto histórico de regiões por onde passou. Mesmo realizando o desejo de conhecer o “famoso canal de Suez”, não deixou de lembrar que, durante sua construção, entre 1859 e 1869, a obra “sacrificou a vida de uns cem mil trabalhadores”. Como todo o trabalho autoral, fundado na transparência quase absoluta, os deslizes também vêm à mostra. Um dos raros na obra aparece quando Nellie Bly não esconde seu deslumbramento pelo Japão e sua gente, reforçando estereótipos ainda hoje muito vivos: “Os japoneses são exatamente o oposto dos chineses. Os japoneses são o povo mais limpo do mundo, os chineses o mais sujo; os japoneses estão sempre felizes e alegres, os chineses estão sempre mal-humorados e sombrios; os japoneses são os mais graciosos, os chineses os mais infames; os japoneses têm poucos vícios, os chineses têm todos os vícios do mundo; em suma, os japoneses são os mais encantadores e os chineses os mais desagradáveis”.

Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália: mundo redescobre o trabalho de Nellie Bly

A angústia assomou o espírito da perseverante jornalista mesmo em território estadunidense, face a informações de que a neve daquele inverno obstruíra vários trechos ferroviários de San Francisco até Nova Iorque. Um trem especial, de alta velocidade para o século XIX – em torno de 100 quilômetros por hora -, havia sido colocado à disposição de Nellie Bly para levá-la até Chicago, de onde ela seguiria em comboio regular. Sua chegada, antes do previsto, foi aclamada por multidões que acorreram a todas as estações ao longo do trajeto. Em Topeka, no Kansas, mais de 10 mil pessoas se acotovelaram para tentar vê-la. Um final apoteótico, inimaginável para o escritor Júlio Verne. Depois de receber a repórter em sua casa, em Amiens, com extrema amabilidade, o autor de A Volta ao Mundo em 80 Dias brindou com taças de vinho à odisseia, desejou boa sorte e fez uma promessa ao se despedir: “Se você conseguir fazer isso em 79 dias, vou aplaudi-la entusiasmadamente”.

O livro contendo as reportagens produzidas para o New York World durante todo o percurso, publicado em 1890 pelas editoras Bretano’s, de Londres, e Pictorial Weeklies, de Nova Iorque, sob o título Around the World in Seventy-Two Days, vem sendo reeditado pelo mundo afora nas últimas décadas. Na Espanha, a obra foi publicada por Ediciones Buck, de Barcelona, em 2010, e integra o acervo das bibliotecas dos cursos de Jornalismo do país desde aquele ano. Quatro anos depois, a prestigiada Penguin Books, de Londres, lançou Around the World in seventy-two days and other writings, incluindo no volume outros trabalhos de Nellie Bly. Em fevereiro do ano passado, foi a vez da Sordelet Ink, dos Estados Unidos, também oferecer uma edição ampliada, com todos os textos publicados na época da volta ao mundo, intitulada Nellie Bly’s World: Her Complete Reporting 1889-1890. A redescoberta dessa pioneira repórter investigativa tem se disseminado por muitos países, como a França e a Finlândia, e chegou finalmente ao Brasil em julho de 2021, como vimos no início desta resenha. Quatro meses depois, em novembro, despontou uma reimpressão na Itália, através da editora Ugo Mursia. Tudo indica que as reedições não vão parar tão cedo. Que bom. Reconhecimento justo, merecido, ainda que tardio.

VEJA TAMBÉM

A análise de 11 reportagens da jornalista Nellie Bly publicadas no jornal The New York World entre 1887 e 1889, verificando seu método de apuração e propondo uma reflexão teórica sobre a conceituação de jornalismo investigativo, foi o eixo da dissertação de mestrado intitulada O auge de Nellie Bly: uma jornalista estadonidense no final do século XIX, defendida por Natália Costa Cimó Queiroz no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC em 2013. Esse trabalho pode ser visto aqui.

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