Grande reportagem, “A retirada da Laguna” desvela insanidade bélica e mostra cruel atualidade
Por Mauro César Silveira
O pior ainda estava por vir, ao longo de mais de um mês de interminável penúria. Até chegar aquele 12 de junho, como hoje, no longínquo ano de 1867, no epílogo daquela lancinante debandada da guerra. Depois de transpor o caudaloso e lamacento rio Miranda, na então isolada província de Mato Grosso, o jovem Alfredo d’Escragnolle Taunay observou a encharcada coluna de soldados brasileiros rumo ao Paraguai e, por um momento, foi tomado pela mais devastadora aflição. A força expedicionária que se reunira na capital paulista dois anos antes, em abril de 1865, marchava sobre uma região deserta, quase enigmática, nos confins do Império do Brasil, praticamente sem comunicação com a Corte. A última mala do correio, trazida de Cuiabá, chegara vazia, sem nenhuma nova orientação. Aos 24 anos, o vaidoso engenheiro militar, ainda ostentando seus cabelos harmonicamente ondulados, mesmo distante das animadas festas da noite carioca, parecia pressentir a tragédia que aguardava aquela perdida tropa. As escassas informações perturbavam, cada vez mais, principalmente porque “nos aventurávamos numa operação perigosa sem objetivo muito preciso”, como escreveria mais tarde na célebre narrativa que moldou a obra A retirada da Laguna.
Essa advertência de Taunay, diluída na assombrosa coleção de infortúnios que compõe o livro, coloca em xeque não apenas a precipitada decisão de D. Pedro II de atacar o inimigo brasileiro no maior conflito bélico da história do continente americano – a chamada Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870 -, através de uma região inóspita e desconhecida. Mas também expõe a crua realidade dos perversos efeitos de manobras militares desencadeadas por impulsivos governantes, no isolamento social de seus confortáveis palácios. Foi sob o efeito de forte emulação, por exemplo, que o general Leopoldo Galtieri lançou a Argentina no fracassado embate com a Inglaterra, em 1982, pela soberania das ilhas Malvinas. É certo que o Brasil saiu vitorioso na sangrenta guerra da bacia do Prata, mas o testemunho sobre a expedição do Mato Grosso é uma pequena amostra dos muitos horrores que marcaram os combates. Chagas decorrentes de decisões equivocadas emanadas do centro do poder, mas que, evidentemente, não são exclusividade de um dos lados do confronto armado. Aliás, as funestas consequências têm um destino certo e comum: todas as linhas de frente do teatro de operações.
O relato da dramática retirada brasileira torna-se ainda mais significativo pelas relações que a família do autor da obra mantinha com o imperador. O pai de Alfredo, o pintor Félix Emílio Taunay, havia sido preceptor de D. Pedro II e usou toda sua influência na Corte para que o filho participasse daquela longa marcha no centro-oeste na condição de membro da comissão de engenheiros. Na cabeça do nobre integrante da expedição, apenas a perspectiva da aventura em misteriosas terras. Sem muito entusiasmo pela vida militar, Alfredo Taunay considerou a ideia de viajar durante vários meses por “sertões imperfeitamente conhecidos e mal explorados”, com a expectativa de que a guerra acabasse antes que chegasse ao destino, bem mais sedutora que a possibilidade de ser integrado ao contingente que duelava ferozmente no Prata. Foi também por insistência do pai que ele produziria A retirada da Laguna, escrita em francês, ganhando uma edição em 1871, pela Imprensa Nacional, por ordem de Rio Branco, o então ministro da Guerra. Antes da proclamação da República, em 1889, ainda receberia outra deferência por parte do Império: seria agraciado pela Coroa com o título de Visconde. Não devem causar espanto, assim, os arroubos oficialistas do autor, que vê o presidente paraguaio Francisco Solano López como um megalomaníaco disposto a expandir o território guarani e os soldados inimigos como um bando de selvagens. São, contudo, referências esporádicas e que não comprometem a essência do trabalho, revelador e de caráter universal.
COM VIRTUDES DA MELHOR NARRATIVA JORNALÍSTICA
A sensibilidade de Taunay torna o texto envolvente, como nas melhores reportagens que a imprensa brasileira produziu em sua história. Não por acaso, o escritor Alberto Mussa já comparou A retirada da Laguna à clássica obra Os sertões, de Euclides da Cunha. O dândi não queria ir para os campos de batalha e relutou em escrever o que vira, mas acabou construindo um relato vivo, comovente, com inegável valor literário. As recordações da extensa e trágica marcha – começou com três mil soldados, em 1865, e terminou com pouco mais de 700, dois anos depois – exibem virtudes da melhor narrativa jornalística: a humanização dos personagens e o caráter impressionista dos parágrafos, compondo um painel de emoções revividas. Se predominaram as cenas chocantes das agruras que marcaram o regresso da coluna, não escaparam os primeiros contatos com uma natureza exuberante. As lembranças que ele reteve na memória e nos seus apontamentos fixaram a paisagem descortinada na campanha: “Aos pés do espectador, uma vasta campina enriquecida de magníficos detalhes; além, a orla da mata que acompanha as águas belas e sinuosas do Aquidauana; ao longe, a extensa serra de Maracaju, cujos picos desnudos refletem os esplendores do sol e coroam toda esta prodigiosa massa azulada pela distância.”
Aos poucos, o impacto visual da região foi ficando para trás, especialmente a partir da chegada da força expedicionária na fronteira do Brasil com o Paraguai, no mês de abril de 1867. A tropa já tinha sido reduzida a uma brigada única de 1.600 homens, a maioria vitimada nas epidemias que marcaram a peregrinação – a pior delas, em Coxim, no hoje Mato Grosso do Sul, 252 quilômetros ao norte de Campo Grande, onde os militares brasileiros padeceram de “paralisia reflexa”, enfermidade hoje conhecida como beribéri. O grupo marchava a pé, sob o comando do coronel Carlos de Moraes Camisão, que estava obcecado pela ideia de se redimir da derrota dos brasileiros na fortaleza de Corumbá, na fronteira com a Bolívia, em 1864, quando comandou um dos batalhões em fuga. A apreensão de alguns oficiais era grande e justificada: como apenas as peças de artilharia e os mantimentos eram levados nas carroças puxadas por bois, a tropa brasileira iria enfrentar no solo a bem treinada cavalaria paraguaia. Luta flagrantemente desigual e com desfecho previsível: depois de uma pequena escaramuça com um grupo de paraguaios e a ocupação da fazenda Laguna, distante 21 quilômetros do rio Apa, na fronteira entre os dois países, em território guarani, o retorno tornou-se inevitável. A retirada “estratégica, depois de uma demonstração de força”, na visão do comandante, seria uma odisseia amarga, longos e penosos 35 dias, de 8 de maio a 12 de junho de 1867.
Esse tenebroso regresso, na verdade, é o eixo central da narrativa de Taunay. Ele conta, em detalhes, as vicissitudes de uma tropa que foi obrigada a dar meia volta por falta de comida e munição e que empreendeu a fuga por caminhos íngremes e inexplorados, acossada o tempo inteiro pelo fogo ameaçador do inimigo. Uma cena descrita pelo autor sintetiza o clima de adversidade que tomava conta da retirada: “Avançamos assim o dia inteiro, em meio a grande tumulto, entre as aclamações dos nossos, aos gritos agudos e ferozes do inimigo, aos mugidos do gado, às explosões da pólvora, à desordem dos homens e das coisas, num caos de fumaça e poeira.” Das palavras do autor, sobressaem as dificuldades geradas por um comando – o do coronel Camisão – que ele define como hesitante. Taunay deixa claro que se não fosse a presença do pioneiro explorador da região, José Francisco Lopes, proprietário da fazenda Jardim, perto da vila – hoje município – de Nioaque, entre o pessoal civil que acompanhava a tropa, a volta forçada ao Brasil poderia ser ainda mais trágica. O autor deixa transparecer críticas a todos os comandantes que conheceu e insinua que o guia Lopes de Laguna, como era conhecido o fazendeiro, assumiu, na prática, o comando dos soldados na jornada de retorno.
EMERGE A “ESPONTANEIDADE DO EGOÍSMO”, COMO NA ATUAL PANDEMIA DE CORONAVÍRUS
Mas o condutor do regresso da expedição acabou tendo o mesmo destino que o coronel Camisão na sofrida marcha: vitimado pela cólera, tombou antes de chegar à sua propriedade, nos últimos dias de maio de 1867. Somente no dia 25 daquele mês, foram registradas mais de 100 mortes provocadas pela epidemia. A avassaladora doença já havia obrigado o comandante da retirada a tomar uma dura decisão: o abandono dos enfermos à própria sorte, dada a impossibilidade de levá-los adiante por uma tropa esquálida, esfomeada, que atravessava rios e pântanos a muito custo, acuada por um inimigo que incendiava a floresta e por tempestades que transformavam as trilhas em traiçoeiros lodaçais. É uma das passagens mais impressionantes do relato: “O comandante, nesse momento, como fora de si, ordenou que fosse imediatamente, à luz de tochas, abrir uma clareira na mata vizinha, para transportar até lá coléricos e lá deixá-los. Ordem terrível de dar e terrível de executar, mas que, entretanto, forçoso é dizê-lo, não levantou nenhum dissentimento, nenhuma censura! Os soldados logo puseram mãos à obra, como se obedecessem a uma instrução comum, e, em seguida (a que ponto o senso moral desaparecera sob a pressão da necessidade do momento!), alojaram na mata, com a espontaneidade do egoísmo, todos aqueles inocentes condenados, os infelizes coléricos, muitos deles companheiros de longa data, às vezes amigos postos à prova por perigos comuns.” Não é difícil relacionar situações desconcertantes como essa com o raciocínio dolorosamente seletivo que emergiu em muitos momentos – e em muitas paragens – durante a presente pandemia de Coronavírus, o que confere à obra de Taunay uma cruel atualidade.
A desastrada operação militar da Laguna é vista como um episódio menor da guerra, inclusive no lado paraguaio, recebendo breve menção nas anotações do general Francisco Isidoro Resquin – braço direito do marechal López -, publicadas em 1875. Mas, sem dúvida, o grandioso relato da retirada das tropas brasileiras se constitui em precioso recorte da realidade, colaborando para dimensionar o calamitoso conflito platino. Pela obra, sabemos que, em arriscadas travessias de rios torrenciais, mais de 70 mulheres – companheiras de soldados e vivandeiras – acompanhavam os militares. Também tomamos conhecimento da participação de indígenas das etnias terena e guaicuru, sempre esquecidos, ao lado dos brasileiros. E sentimos que, em meio ao flagelo do cotidiano, a vida teimava em prevalecer, com alguns inesperados momentos de descontração. Nessas horas, os sobreviventes pareciam exorcizar o medo frente à possibilidade iminente da morte. Foi assim quando os projéteis do inimigo se alojaram no barro: “Nossos soldados, inicialmente bastante impressionados, logo se puseram a rir, e as próprias mulheres encontraram nisto motivo para gracejo, comparando as balas, que espalhavam ao redor salpicos de lama, aos frutos com água de cheiro usados nas brincadeiras do velho carnaval brasileiro.”
A retirada da Laguna já teve muitas reimpressões. A melhor delas, sem dúvida, é a de 1997, lançada pela Companhia das Letras, em formato de livro de bolso. Em tradução esmerada do professor e escritor Sérgio Medeiros, que incluiu muitas notas de rodapé – além daquelas produzidas pelo autor -, essa edição é acompanhada de excertos das Memórias, de Taunay – obra póstuma publicada somente meio século após sua morte, como era seu desejo –, e da tradução de um texto do jornal paraguaio El Semanario, de 13 de julho de 1867, festejando o recuo dos militares brasileiros. Com exceção de um pequeno deslize – uma data imprecisa em nota publicada na página 296, o ano é 1866 e não 1867 -, o pequeno volume representa mais uma contribuição valiosa para o estudo de uma história ainda mal contada – a ação armada do Império do Brasil e seus aliados contra o Paraguai. Infelizmente, a reedição da Companhia das Letras está esgotada e não faz mais parte do seu catálogo, como informou nesta semana o Departamento Comercial da editora ao Jornalismo & História. É uma pena. Mas como a obra se encontra em domínio público pode ser acessada aqui. Boa leitura.