História,  Resenha

A sombra cinza dos ventos barceloneses

Resenha em homenagem ao escritor catalão Carlos Ruiz Zafón, que morreu hoje aos 55 anos

Por Bárbara Dal Fabbro

É na inocência de um menino de 10 anos que Carlos Ruiz Zafón nos apresenta uma Barcelona cinza, pós-Guerra Civil, pós-Franco, mergulhada na Segunda Guerra Mundial e que tenta, na tristeza e nas lembranças boas do passado, cicatrizar as feridas abertas nas ruas, nos rostos e corações barceloneses.

A Sombra do Vento é um romance de uma delicadeza tamanha e de grande tato da parte de seu autor. É nas obras banidas e esquecidas que o jovem Daniel Sempere irá conhecer Julián Carax, um escritor atormentado que, tendo em seus livros um refúgio, fez transparecer sua alma e suas experiências para que aqueles a quem amou pudessem saber que apesar de sua fuga a Paris, Barcelona sempre esteve em seu coração e em seus pensamentos.

Aos poucos, o pequeno Daniel irá perguntar-se sobre aquela figura a quem tanto admira e de quem nada conhece, a não ser o que apreendeu através de seu livro. Não é apenas a curiosidade que irá guiar o menino Sempere e sim uma afinidade e similaridade que ele não consegue entender de princípio. Seu pai, um bom livreiro da rua Santa Ana, envolto na saudade que sente da esposa, que sucumbira anos antes vítima de uma doença que se tornara fatal e que ceifara de seu marido a alegria de viver, apenas garantida ao Sr. Sempere pelo seu filho.

Movido pela curiosidade, Daniel conhece Barceló e sua bela e enigmática sobrinha Clara, que irão lhe revelar que aquele exemplar que prometeu proteger é o último e valioso escrito de Carax, que todos os outros vinham sendo destruídos por alguém a quem o fogo usurpava toda a vontade de permanecer vivo, tanto dele próprio quanto dos livros.

Com o passar dos anos o jovem Daniel irá conhecer o amor, o sexo e as artimanhas que um país pós-guerra esconde em suas entranhas. Surgem figuras como o inspetor Fumero, e o mendigo Fermín, que irão revelar a ele a brutalidade da guerra que não se vê, da queima de arquivo e do autoritarismo franquista. E é no mendigo que as esperanças de saber mais sobre Julián se depositam, e é com a ajuda dele que o garoto Sempere irá desvendar os segredos daquela alma desconhecida e esquecida. A partir daí, sua vida nunca mais será a mesma, já que ela passará a correr perigo tanto quanto qualquer um que se envolva no enigma Carax.

Lançado em 2001 e hoje consolidado como um fenômeno da literatura espanhola, A Sombra do Vento é um best-seller traduzido em mais de 40 idiomas e publicado em 50 países, contabilizando mais de 15 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. É o livro em língua espanhola mais lido depois do clássico D. Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Porém, não se trata apenas de um sucesso editorial, mas sim de um sucesso literário, já que a sensibilidade com que traça um perfil da Barcelona de 1945 é o fator-chave de sua aceitação e apreciação pelo público leitor, que se cansou de narrativas comerciais e ficcionais sem o mínimo de humanismo e correspondência com a realidade vivida.

Carlos Ruiz Zafón, escritor sensível Foto: Mutari/Domínio Público/Wikimedia Commons

Carlos Ruiz Zafón faleceu neste 19 de junho de 2020, aos 55 anos, em sua residência de Los Angeles, Estados Unidos, vítima de câncer, conforme anunciou em nota a editorial Planeta, de Barcelona. A Sombra do Vento é o primeiro volume da série O Cemitério dos Livros Esquecidos, ao qual se seguiram O Jogo do Anjo, O Prisioneiro do Céu e O Labirinto dos Espíritos. Pelo Twitter, seus editores deram a notícia começando com a citação de um trecho de seu livro mais conhecido: “Cada livro, cada tomo que você vê, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que leram, viveram e sonharam com ele.

 

 

 

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