Jornalismo em quadrinhos atua como importante meio de construção da memória
Por Natália Huf
O jornalismo, enquanto meio de conhecimento capaz de transformar a realidade, é também capaz de contribuir com a preservação e resgate da memória. Isso se deve ao processo de apuração, no qual o jornalista realiza entrevistas, faz pesquisas em documentos e busca informações que serão parte do relato jornalístico. A forma como esse conteúdo produzido pelo jornalista, a partir das informações captadas, varia, dos mais tradicionais aos mais inovadores: revistas e jornais impressos, programas de rádio ou de televisão, sites, blogs, podcasts e inúmeros outros formatos, como a história em quadrinhos.
De imediato, é fácil associar o quadrinho ao público infanto-juvenil e ao conteúdo de humor, como o das tiras de jornais, ou educativo, como panfletos de campanhas ou cartilhas didáticas. Embora sejam muito populares entre crianças e adolescentes, os quadrinhos não são restritos à essa faixa etária e, a partir dos anos 1980, passaram a fazer parte também das estantes de leitores adultos, especialmente por meio da popularização das graphic novels (novelas gráficas).
O quadrinho também é, quase que automaticamente, ligado às histórias de ficção. Porém, assim como em relação à faixa etária à qual se destinam, também não há limitação para o tipo de história a ser contada pelo(a) quadrinista. É crescente o número de trabalhos de não-ficção publicados em quadrinhos: um exemplo clássico — longe de ser o único — é Maus, de Art Spiegelman, lançado em série entre 1980 e 1991. Vencedora do Prêmio Eisner, a maior premiação de quadrinhos, em 1992, a graphic novel foi concebida após entrevistas com o pai do autor, um judeu polonês que sobreviveu ao Holocausto durante a 2a Guerra Mundial (1939-1945). Representando os personagens como diferentes animais a depender de sua nacionalidades (alemães como gatos, judeus como ratos, poloneses como porcos, etc.), Spiegelman relata as memórias de seu pai e o período da guerra, e foi o primeiro quadrinho a receber o prestigiado Prêmio Pulitzer, na categoria Literatura.
As histórias em quadrinhos demoraram a ser reconhecidas como um meio válido de literatura, e essa linguagem até hoje é fortemente associada ao público infantil e às histórias de super heróis que popularizaram o meio no século XX. Quando chegaram ao jornalismo, não foi diferente: embora os quadrinhos sempre tenham estado presentes nos jornais, especialmente por meio das tiras e das charges, foi apenas em meados da década de 1990 que surgiu o que hoje conhecemos como Jornalismo em Quadrinhos (JHQ), a partir da publicação de Palestina, de Joe Sacco (1996), uma grande reportagem em quadrinhos que é considerada o marco inicial desse gênero híbrido.
EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DOS FATOS NARRADOS
A documentação visual é o que dá a dimensão da reportagem ao acontecimento singular e eventualmente revela focos que escapam ao texto, conforme aponta Nilson Lage na obra Linguagem Jornalística. O uso da imagem não é, de forma alguma, uma novidade para o jornalismo impresso, que, ao longo do desenvolvimento das tecnologias de impressão, passou a se utilizar cada vez mais de fotografias, gráficos e infográficos que complementam e/ou ilustram o texto. A linguagem dos quadrinhos, ao mesclar informação jornalística com as imagens justapostas características da arte sequencial, “atuam como um importante meio de preservação e construção da memória”, como ressalta a pesquisadora Leilane Cristina Sversuti.
Assim como qualquer inovação, o JHQ recebeu questionamentos, em especial em relação à objetividade da narrativa jornalística. Porém, da mesma forma que o jornalismo tradicional, uma reportagem em quadrinhos precisa passar pelas etapas de definição da pauta, apuração e levantamento de dados, diálogo e entrevista com diversas fontes. Da mesma forma que um documentário, a narrativa jornalística em quadrinhos não é isenta do ponto de vista do jornalista/quadrinista, e a subjetividade está presente em todas as decisões tomadas durante o processo, desde a definição da pauta até a redação/desenho do produto final. Todo o conhecimento social envolve um ponto de vista sobre a história; como a história da humanidade está em constante construção, podemos afirmar que não existe um jornalismo que seja puramente “neutro” ou “objetivo”.
Por meio de uma “experiência subjetiva e emocional dos fatos narrados”, na acepção de Tom Wolfe, o JHQ pode ser considerado uma excelente forma de fazer com que o leitor compreenda a narrativa. “Os quadrinhos e o uso da imagem percorreram aliados da história da evolução jornalística atuando como um importante meio de atrair novos públicos e facilitar a compreensão dos relatos”, destaca Leilane Cristina Sversuti.
Por mais que o JHQ seja um gênero que ainda pode (e deve!) ser imensamente explorado, já vem se consolidando e ganhando adeptos, tanto jornalistas/quadrinistas quanto leitores. Inúmeros obstáculos impedem que o jornalismo brasileiro produza materiais em quadrinhos em grande quantidade — a correria do dia a dia nas redações, as reduções de equipe… —, porém, matérias que utilizam esse suporte volta e meia aparecem em veículos de todo o país. Muitas experiências são feitas, como as publicadas na Revista Fórum e na agência de checagem de fatos Aos Fatos, além de livros-reportagem como Notas de um tempo silenciado de Robson Vilalba, desenvolvido a partir da série Pátria Armada, Brasil, publicada no jornal Gazeta do Povo. Vemos também projetos desenvolvidos por estudantes universitários, como o Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo na UFSC de Amanda Ribeiro e Luiz Fernando Menezes, que se tornou o livro Socorro! Polícia!, publicado em 2018. Assim, o JHQ se solidifica como mais uma forma de jornalismo para registrar a história do tempo presente, e também de mostrar, por meio de imagens, histórias que não foram visualmente documentadas.
Referências
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: Para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre. Editora Tchê: 1987.
GENRO FILHO, Adelmo. Teoria do Jornalismo. Revista da Fenaj. Ano I, nº 1, maio de 1996.
LAGE, Nilson. Linguagem jornalística. 6ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1998.
SILVA, Vinícius Pedreira Barbosa. As Histórias em Quadrinhos como Gênero Jornalístico Híbrido: O Jornalismo em Quadrinhos. Universidade de Brasília, 2012.
SVERSUTI, Leilane Cristina. Jornalismo em quadrinhos: a história que conta a história. Anais Eletrônicos das 5as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos – São Paulo/SP – 22 a 24 Ago, 2018.
WOLFE, Tom. El nuevo periodismo. Barcelona: Editorial Anagrama, 1976.