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Amazônia, a sinfonia inacabada do celebrado autor de “Os Sertões”

Por Mauro César Silveira

A ideia fervilhava na mente de Euclides da Cunha há uns dois, três anos. Em 1904, ao escrever para seu colega jornalista e escritor, José Veríssimo, que dirigira a emblemática Revista Brasileira na última década do século XIX, deixou isso muito claro: “Aquelas paragens, hoje, depois dos últimos movimentos diplomáticos, estão como o Amazonas antes de Tavares Bastos; se eu não tenho a visão admirável deste, tenho o seu mesmo anelo de revelar os prodígios da nossa terra”. Referia-se a sua ida ao Acre, não como repórter, mas na condição de engenheiro que chefiava a Comissão de Reconhecimento das Nascentes do Rio Purus. Eram momentos de alta tensão entre o Brasil e o Peru pela delimitação da fronteira entre os dois países. Nas suas palavras, sobressaía, no entanto, o desejo de aproveitar a viagem para produzir um pormenorizado relato da região, um “segundo livro vingador“. Depois de Os Sertões, a intenção de Euclides da Cunha era escrever uma obra sobre a Amazônia, denunciando o descaso pela vasta área de águas e florestas e o desprezo pelos seres humanos que a habitavam.

O projeto sobre aquela expedição, intitulado Um paraíso perdido, ficaria inacabado, bem distante do grandioso objetivo do autor. Acabou reduzido ao primeiro capítulo da sua obra póstuma, que levou o nome de À Margem da História, lançada em setembro de 1909, um mês após a sua morte, pela editora portuguesa Chardron,  da cidade do Porto, hoje conhecida como Livraria Lello. Mesmo preliminar e incompleto, o conjunto de sete ensaios que compõem essa primeira parte do livro, denominada Amazônia, Terra Sem História, é considerado até hoje, mais de 110 anos depois, uma das melhores tentativas de interpretação da região. As anotações do jornalista adquirem vital importância por denunciar as condições precárias dos seringueiros, em sua maioria imigrantes nordestinos atraídos pelo ciclo da borracha, mas também dos indígenas da etnia jamamadi, que resistiram bravamente à extinção no duro contexto da exploração do látex. O caráter diplomático da missão também foi exitoso e o papel desempenhado por Euclides da Cunha tido como decisivo para a definição dos limites fronteiriços entre o Brasil e o Peru.

Um denso e extenso artigo sobre a importância de À margem da história foi  publicado no ano passado pela Amazônia Latitude Review, resultado de uma parceria multidisciplinar entre o Programa de Português do Departamento de Línguas e Linguística Modernas da Florida State University e o Laboratório de Ciências Sociais e Interdisciplinaridade na Amazônia do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). De autoria do professor e pesquisador Leopoldo Bernucci, da University of California-Davis, euclidianista reconhecido internacionalmente no mundo acadêmico, o texto revela, entre outras coisas, que Euclides da Cunha se antecipou a muitos autores, de diferentes países, que estiveram na região, como o norte-americano Walter Hardenburg e o irlandês Roger David Casement , ao denunciar atrocidades cometidas  contra indígenas e seringueiros na Amazônia. Fica nítido que essa obra, ainda que inconclusa, merece ser lida.

O paraíso perdido de Euclides da Cunha Arte: Revista Dom Casmurro/Divulgação

Veja o início do artigo intitulado A terceira margem do texto: Euclides da Cunha e a Amazônia, de Leopoldo Bernucci

Euclides é um enigma. E sua obra uma esfinge ainda a ser decifrada. Todos os esforços dos críticos em mais de um século não bastaram ainda para penetrar as camadas profundas de significado de seus textos. Os sertões, obra ímpar na história da literatura latino-americana, já rendeu milhares de páginas de comentários ajuizando os méritos e os desacertos do livro. Contudo, os demais textos de Euclides ficaram relegados a lugar secundário do qual até hoje elas não tem podido sair completamente. Não estou me referindo nem a Contrastes e confrontos, nem a Peru versus Bolívia, livros que primam pelo rigor histórico e técnico, escritos com semelhante paixão e força poética àquela encontrada no livro de estreia do autor. Mas, penso, principalmente, em À margem da história como sendo, a meu ver, obra maior de Euclides depois de Os sertões. Para a nossa sorte, em regime de exceção está claro, começam a surgir recentemente estudos luminosos que tem-se adentrado com grandes acertos críticos no universo de À margem da história. Refiro-me às abordagens do professor e colega Francisco Foot Hardman na primeira parte do seu mais recente livro A vingança da Hileia (2009).

Concebida de modo estruturalmente multifacetada, essa última e póstuma obra de Euclides se divide em quatro partes. A primeira, dedicada à Amazônia; a segunda, a questões continentais de transporte ferroviário e de fronteiras; a terceira, como reza o próprio título, é um esboço político “Da Independência à República”; e, finalmente, a quarta é um ensaio absolutamente original, “Estrelas indecifráveis”, no qual Euclides consorcia e espraia os seus conhecimentos científicos de astronomia com os de arte e de história bíblica. Dessas quatro partes, a primeira é que aqui nos interessa, porque nos possibilitará tecer alguns comentários em torno de sua gênese textual. Os sete ensaios que se enfeixam na Parte I de À margem da história foram, provavelmente, redações preliminares de capítulos de um livro planejado e que, por força do destino, Euclides nunca pôde concluir. Trata-se de Um paraíso perdido, obra sobre a Amazônia e que foi bastante aludida por ele em cartas a seus amigos. Este projeto, o seu segundo mais importante em densidade crítica e escopo histórico, teve o início de sua gestão em 1906, como pode-se constatar pela carta do escritor enviado ao amigo Francisco Escobar em 13 de junho do mesmo ano:

Em paz, portanto, esta rude pena de caboclo ladino. Ou melhor, que vá alinhando as primeiras páginas de Um paraíso perdido, o meu segundo livro vingador. Se o fizer, como o imagino, […] (perdoe-me a incorrigível vaidade) hei de ser para a posteridade um ser enigmático, verdadeiramente incompreensível entre estes homens.

A íntegra do texto pode ser acessada aqui.

VEJA MAIS SOBRE O LIVRO À MARGEM DA HISTÓRIA

Uma coletânea de estudos sobre a obra póstuma de Euclides da Cunha e produções esparsas do autor sobre o mesmo tema – a Amazônia – foi publicada pelo Senado Federal, no ano de 2000, sob o título Um paraíso perdido: reunião de ensaios amazônicos – Euclides da Cunha. A íntegra da obra pode ser acessada aqui.

Em 2018, a Editora Unesp publicou uma edição cuidadosa de À margem da história, organizada por  Leopoldo Bernucci, Francisco Foot Hardman e Felipe Pereira Rissato. A obra pode ser adquirida aqui.

E o primeiro capítulo de À margem da história, intitulado Amazônia, Terra Sem História, tem uma versão em domínio público que pode ser baixada aqui.

 

 

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