Diálogos,  Jornalismo

Fábrica de heróis e vilões

O discurso jornalístico como construtor, ratificador e destruidor de mitos

Por Bárbara Dal Fabbro

Para compreender o jornalismo como uma instância remitificadora da sociedade, é preciso, primeiro, entender o conceito de mito e como ele é comumente utilizado. Para isso, é necessário um resgate histórico. Uma digressão que tem na Grécia, mais precisamente em Aristóteles, seu foco.

O mito é uma presença constante em todas as culturas e em todos os tempos. É um dispositivo utilizado pelos antigos, para contar os fatos acontecidos em sua vivência cotidiana, utilizando-se da linguagem simbólica.

Segundo Aristóteles, o mito (ou fábula) é a alma da tragédia grega. Trata-se da imitação de como certos personagens pensam e agem, ou seja, o mito é sinônimo, em termos de arte poética, de ação. Tendo esta concepção como base, a antropologia irá caracterizar o mito como um conceito que remete para uma narrativa fabulosa, que parece escapar ao pensamento racional, mas cuja capacidade compreensiva do mundo convém distinguir da explicativa.

O mito é lido pelos receptores como um sistema factual – que é recebido como algo real, como uma história de vida – e não imaginativo.

Nesta acepção, o mito é capaz de demonstrar a presença do irracional no seio da razão, do fabuloso em contraponto ao concreto, ao exato. Assim, podemos concluir que o mito, apesar do papel da ciência como detentora de verdades absolutas, ainda encontra lugar na realidade vivida e nas relações pessoais em pleno século XXI. A narrativa mitológica, porém, não se limita apenas à literatura.

O mito, então, postula-se como uma narrativa, uma fala. Para Roland Barthes (1980), o mito configura-se como uma mensagem, um sistema de comunicação e significação que visa, a partir de uma cadeia semiológica (de signos) que – já existente na cultura do receptor – o antecede, transparecer, mesmo que de forma aparentemente inocente e despretensiosa, as intenções daqueles que o transmitem e também daqueles, para os quais ele fala diretamente e individualmente, que se apropriam dele, de acordo com sua bagagem cultural e com suas necessidades de compreensão. Barthes define assim em sua obra Mitologias (1980): “O mito possui um caráter imperativo, interpelatório: tendo surgido de um conceito histórico, vindo diretamente da contingência, é a mim que ele se dirige: está voltado para mim, impõe-me a sua força intencional; obriga-me a acolher a sua ambiguidade expansiva”.

Assim, por ser um discurso que, mesmo atemporal, depende do momento histórico em que é proferido para que sejam feitas uma ou outra interpretações e apropriações, é sempre motivado; tem a finalidade não de esconder, mas de se fazer falar sobre qualquer assunto, de uma forma indireta, talvez. Devido a essa característica, é lido pelos receptores como um sistema factual – que é recebido como algo real, como uma história de vida – e não imaginativo. Contudo, não o faz de modo a revelar sua função (o que acarretaria na destruição do mito já em sua concepção), esta, deve ser apreendida pelo público a que ele se direciona.

É tomando o mito como um discurso que só se configura na transmissão, e que tem como objetivo explicar o real por meio da utilização de simbologias, já naturalizadas pelos seus receptores, e que o apreenderão como um sistema pautado em fatos (mesmo que não o seja), que podemos traçar uma relação entre o mesmo e o jornalismo.

O USO DO MITO COMO UM RECURSO JORNALÍSTICO

Os jornalistas, em sua maioria, defendem, como um dos pilares da sua prática profissional, que os recursos narrativos que utilizam para a construção de seus discursos têm como finalidade a precisão e a eficácia da informação transmitida, ou seja, procurando relatar os fatos tal qual se apresentam na realidade, tendo na objetividade, e na aparente neutralidade, seu norte.

Porém, tomando o discurso jornalístico como sendo um texto construído culturalmente, levando em consideração o momento histórico, o público, as especificidades de cada país, região, cultura e veículo em que será publicado ou transmitido; podemos aferir que o jornalista, sendo componente da mesma realidade cultural para a qual escreve, traz consigo cargas simbólicas (uma bagagem cultural e biográfica) que irão definir os olhares e abordagens que utilizará para apreender o mundo à sua volta e para reportá-lo à sociedade que o aferiu papel de seu porta-voz.

Assim, Elizabeth Bird e Robert Dardene (1999) irão afirmar que o jornalismo deve ser encarado como mais uma forma de se narrar os acontecimentos, a mais atual e socialmente aceita, mas não a única. Como eles esclarecem: “Tal como as notícias, a história e a antropologia narram acontecimentos reais, e os seus profissionais estão a descobrir que para compreender as suas narrativas têm de analisar como são construídas, incluindo os mecanismos de contar a ‘estória’ que constituem parte integrante dessa construção”.

É na reinterpretação, na repetição, e na sensação de que já lemos ou ouvimos falar de certas narrativas (princípio da ressonância) que repousa a qualidade mítica das notícias.

Irão encarar a notícia como uma prática cultural muito antiga, a narrativa, o contar histórias. E que, enquanto processo de comunicação, pode atuar como mito, já que ambos só se configuram se forem comunicados a outros, e, também, pelo fato de ser através deles que membros de uma mesma cultura irão aprender valores morais, definições de bem e mal, certo e errado, que nortearão suas ações em sociedade. Como definiu Drummond (1984, apud BIRD; DARDENNE, 1999 p. 266): “O mito é primeiramente um dispositivo metafórico para dizer às pessoas de elas próprias, de outras pessoas, e do complexo mundo de objetos naturais e mecânicos no qual elas vivem”.

Gravura de oito personagens representando diferentes jornais de Paris, encartada no Le Nain Jaune – ou Journal des Arts, des Sciences et de la Littérature -, em 15 de dezembro de 1814 Imagem: The British Museum

O mito, ou a narrativa mitológica, nos conforta, nos tranquiliza e nos oferece explicações aceitáveis para fenômenos que nos amedrontam ou sobre os quais não sabemos o que pensar ou como reagir. Não é, portanto, fruto de uma apreensão unicamente objetiva da realidade, mas é construído com o intuito de nos aproximar, de nos familiarizar com a narrativa, dando-nos subsídios para considerá-la possível em nossa acepção de mundo.

Assim, tanto o mito como a notícia, atuam como modelos de e para uma cultura, como aponta Geertz (1981). Já que é na reinterpretação, na repetição, e na sensação de que já lemos ou ouvimos falar de certas narrativas (princípio da ressonância) que repousa a qualidade mítica das notícias.

Podemos concluir, então, que os leitores não consomem as notícias apenas como um reflexo da realidade, mas sim, como um conjunto de significações que, dentro do simbolismo de uma cultura, irão estabelecer parâmetros de comportamento e pensamento a serem seguidos ou repudiados, segundo sua correspondência com o que é considerado certo e o que é considerado errado.

A IMPRENSA COMO ATOR REMITIFICADOR

O conceito de remitificação, ou função remitificadora, é trabalhado por Adriano Duarte Rodrigues (1999) e pretende estabelecer como função da mídia a organização das experiências aleatórias do cotidiano e lhes conferir racionalidade: “A esta prosa do presente confia o homem moderno a sua função remitificadora de uma perspectiva unitária securizante perante a desintegração da identidade coletiva e de uma ordem identitária que lhe devolva uma imagem coerente de destino”.

Outro que irá relacionar o papel do jornalismo com a construção de mitos é o mitologista Joseph Campbell (1991). Indagado pelo jornalista Bill Moyers em conversas sobre o valor dos mitos e mitologias para o homem contemporâneo, ele afirmará o papel de educador do jornalista que, corroborando mitos como mensagens válidas para a vida cotidiana, e apresentando novos, irá traçar caminhos para que as pessoas possam, partilhando de uma mesma cultura, viver em sociedade, segundo alguns modelos pré-estabelecidos de comportamento que são adaptados às necessidades e peculiaridades de seu tempo.

Os mitos não são discursos eternos, terminados, podendo ser substituídos ou até mesmo destruídos. Assim, são diariamente construídos e ratificados pela mídia. Um dos exemplos mais cotidianos desta apropriação da mitologia pelo jornalista se dá quando um repórter, querendo “humanizar” sua matéria ou reportagem, recorre à imagem de um personagem para fazê-lo. Constrói, mesmo que inconscientemente, um mito, geralmente na figura de um herói ou um vilão. Ao tomar um caso específico como algo que saia da normalidade e mereça ser reportado e, ainda, ao narrar a vida de uma pessoa (escolhida para ser o exemplo da matéria), o jornalista está além de criando, ratificando um personagem, um mito que está presente no imaginário social.

Ao mesmo tempo em que a mídia revela heróis, ela também os destrói. Um dos casos mais evidentes do papel da imprensa como remitificadora é o caso do ex-jogador de futebol argentino Diego Maradona.

O jornalista-contador de histórias também cria acontecimentos com os quais o público não está familiarizado, com os quais não possui experiências anteriores que o digam como reagir. Nesse caso, a mídia se encontra bem próxima da matriz mitológica em que o relato é mais uma ação coletiva que individual. Todavia, essa ação só se configura como mito devido à autoridade atribuída ao jornalista, através da credibilidade conquistada, como sendo aquele que irá capturar e transmitir as verdades que estão dispersas na realidade.

Para exemplificar as posições defendidas acima, tomaremos a mídia esportiva como um agente mitificador, remitificador e desmitificador da atualidade. A escolha não é aleatória, já que, nos esportes, devido à sua concepção como uma atividade que busca os melhores entre os homens e as mulheres, comparando vencedores, muitas vezes, a semideuses; é passível de se encontrar um número sem fim de personagens e mitos construídos pela e para a mídia.

Em 2008, a imprensa esportiva trouxe à tona a história de Alan Fonteles, um paraense de 15 anos que, mesmo tendo as duas pernas amputadas devido a uma doença que o acometeu na infância, encontrou no atletismo um meio de vencer obstáculos e superar sua deficiência. Transformando-o num herói, um ser humano que, apesar do trágico destino que o coube, conseguiu vencer por seu próprio esforço, a mídia cria o mito. E não só isso, assim a mídia também cria conforto para seus receptores que acabam conformando-se com suas limitações e problemas.

Mas, ao mesmo tempo em que a mídia revela heróis, ela também os destrói. Um dos casos mais evidentes do papel da imprensa como remitificadora é o caso do ex-jogador de futebol argentino Diego Maradona. A não ser em seu país de origem, Maradona não é mais considerado como um herói, um modelo a ser seguido por todos. Devido à sua dependência química (cocaína), o jogador passou de herói a vilão em poucas edições de jornais e telejornais. Não cabia mais considerar alguém com uma fraqueza tão latente, e pior ilegal, como um exemplo. Assim, do mesmo modo em que a imagem do Maradona herói foi moldada pelos meios de comunicação, ela foi também destruída.

Em 2010, o Brasil parou para acompanhar o brutal caso Eliza Samudio, envolvendo o então goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes. O atleta estava em ascensão e era cotado para integrar o elenco da seleção brasileira quando foi apontado como mandante do assassinato e esquartejamento da modelo. Durante os anos que se seguiram, entre apresentação de provas, narração detalhada das atrocidades cometidas contra a vítima e julgamento, a mídia dividiu-se entre aqueles que acompanhavam a trama e acreditavam no envolvimento do jogador e aqueles que o isentavam de qualquer suspeita por verem nele um exemplo de atleta e uma promessa de títulos, o herói.

O jogador Neymar é um dos exemplos vivos no imaginário popular pois suas ações, mesmo aquelas consideradas como condutas não profissionais, são amenizadas ou justificadas pela mídia que tem nele um assunto de interesse constante.

O desfecho para o goleiro se deu em março de 2013, no Fórum de Contagem (MG). Bruno Fernandes foi condenado a 22 anos e três meses pelo assassinato e ocultação de cadáver de Eliza Samudio e, também, pelo sequestro e cárcere privado do filho Bruninho. Após sete anos em regime fechado, consegue passar para o semiaberto em 2020, e, de volta ao futebol, assinou com o Rio Branco (AC), que disputa a Série D do Campeonato Brasileiro. Levanta-se a discussão novamente do que é “permitido” ou “aceitado” quando praticado por “heróis” do mundo esportivo.

Bruno no Rio Branco, do Acre: em debate, a condescendência com os “heróis” do mundo esportivo Imagem: Twitter/Últimadivisão

A função ratificadora de mitos também é facilmente identificada quando a mídia acaba relevando certas atitudes de pessoas consideradas famosas a fim de manter sua boa imagem. O jogador Neymar Júnior é um dos exemplos vivos no imaginário popular pois suas ações, mesmo aquelas consideradas como condutas não profissionais, são amenizadas ou justificadas pela mídia que tem nele um assunto de interesse constante.

Com os exemplos citados acima, fica evidente o papel do discurso jornalístico como um ator importante na construção, ratificação e destruição de mitos em uma sociedade que, apesar de se autoproclamar pós-moderna, aceita, na maioria das vezes de forma passiva, que a digam quem devem seguir e adular, e quem não deve mais ser considerado digno de exercer o papel, tão cobiçado, de herói.

Conclui-se, assim, que o jornalismo é, hoje, uma das instâncias mais atuantes na produção, ratificação e destruição de mitos. A credibilidade conquistada pelos jornalistas os tornou porta-vozes da sociedade, aptos a apreender, selecionar e transmitir os acontecimentos que consideram essenciais para que o público possa considerar-se informado e, além disso, o modo como devem ser.

A utilização do discurso mitológico como um recurso para dar “maior” humanidade e familiaridade às narrativas cotidianas produzidas pelos jornalistas faz com que os receptores apreendam certas intenções e motivações como naturais. Os mitos, portanto, estão muito presentes ainda no imaginário social e são criados pela mídia, cotidianamente, a fim de manter, criar ou destruir modelos de comportamento que devem ser seguidos, aspirados ou repudiados para que a vida em sociedade, como conhecemos, seja possível.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1980.

BIRD, S. Elizabeth e DARDENE, Robert W. Mito, registro e ‘estórias’: explorando as qualidades das narrativas das notícias. In: TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e histórias. Lisboa: Vega, 1999.

DRUMMOND Lee. Movies and Myth: theoretical skirmishes. American Journal of Semiotics, 3 (2), (1984, p. 1-32), apud BIRD, Elizabeth S.; DARDENNE, Robert W. (1999, p. 266).

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

RODRIGUES, Adriano Duarte. O acontecimento. In: TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e histórias. Lisboa: Vega, 1999.

Referências Webgráficas

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1991. Disponível aqui.

Definições de mito podem ser encontradas neste link.

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