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Aos 20 anos, Machado de Assis escreveu biografia do imperador Dom Pedro II

Texto foi encontrado pela historiadora Cristiane Teixeira em pesquisa sobre a revista O Espelho

Por Natália Huf

D. Pedro II em pintura de J. Courtois Imagem: Museu Imperial/Wikimedia Commons

Em 6 de novembro de 1859, a revista semanal O Espelho publicou na primeira página uma biografia do então imperador Dom Pedro II. O texto não veio assinado, mas ocupava uma página costumeiramente ocupada por ninguém menos que Machado de Assis. A partir da investigação que resultou em sua dissertação de mestrado, a historiadora Cristiane Teixeira encontrou indícios de que o escritor é o autor da biografia. A pesquisa rendeu também o artigo publicado na revista ArtCultura, disponível para download gratuito no site do periódico.

O Espelho foi uma “Revista Semanal de Literatura, Modas, Indústrias e Artes” que circulou no Rio de Janeiro por curtíssimos quatro meses — entre setembro de 1859 e janeiro de 1860. Essa vida breve dos periódicos do século XIX era bastante comum, causada especialmente pela ausência de capital e pela inadimplência dos assinantes. Todas as 19 edições foram digitalizadas e podem ser acessadas no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Um dos maiores representantes da literatura brasileira, Joaquim Maria Machado de Assis teve um papel protagonista no quadro de colaboradores da revista. Nessa época, Machado não era “o” Machado que conhecemos hoje: ainda jovem, com apenas 20 anos, era um “faz-tudo” da redação, e seus textos ocupavam em média cinco das 12 páginas da publicação. São inúmeras crônicas, críticas teatrais, poesias e outros gêneros literários escritos por ele, que assinava de diversas formas: tanto com seu nome ou suas iniciais (M-as) quanto sob pseudônimos. E, na edição de número 10, a biografia de Dom Pedro II.

“O Espelho nos mostra que talvez não saibamos tanto sobre a formação literária de Machado de Assis.”

Segundo Cristiane, essa produção biográfica de Machado ficou desconhecida e não lhe foi atribuída antes porque não houve pesquisas que se debruçaram diretamente sobre a revista: “Quem foi para O Espelho queria ler textos da autoria de Machado. Na minha investigação, eu quis entender quem foi Machado dentro da revista, e também o impresso no geral”. Ao observar a materialidade, os colaboradores e o grupo da revista, a pesquisadora percebeu que Machado era mais do que um colaborador ocasional. “Ele era o redator-chefe, foi assim que uma nota na imprensa se referiu a ele. O Espelho nos mostra que talvez não saibamos tanto sobre a formação literária de Machado de Assis.”

O interesse pela obra de Machado foi o que instigou a pesquisadora Cristiane Teixeira a estudar a revista O Espelho Foto: Acervo pessoal

A passagem pela imprensa teve grande impacto na produção literária do escritor. Depois d’O Espelho, Machado escreveu para diversas outras publicações, mas foi na revista que começou a se consolidar no meio literário. Na poesia “Um nome”, publicada na edição n. 13 da revista, escreve: “E esse nome, esse nome que eu quisera / Erguer como um troféu, tornou-se em cruz; / Não cabe aqui, senhora, em vosso livro, / Pobre como é de glória e de luz”. Junto ao grupo da Marmota e à Sociedade Petalógica, dos quais fazia parte, Machado de Assis e outros escritores buscavam incentivar a juventude, que chamavam de “mocidade nacional”, a participar da literatura brasileira, dominada por aqueles “com brasão”, pessoas que vinham de famílias ricas e tinham mais oportunidades do que aqueles que vinham de origens periféricas, uma batalha que persiste até hoje no mercado literário nacional. O próprio Machado era um desses jovens que buscava construir seu nome e se via frustrado com as dificuldades que encontrava, sendo ele mesmo um jovem negro e nascido no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro. 

“A gente lê Machado de Assis adulto, e o que ele faz é genial. É complicado pensar nele aos 20 anos na mesma proporção em que pensamos no escritor adulto, mas, tanto na biografia de Dom Pedro II quanto nos outros textos, como as ‘Aquarelas’, que são críticas sociais, Machado mostra suas características, a ‘pena da galhofa’, toda a ironia. A convivência dele com o grupo da Marmota e com a Sociedade Petalógica o influenciou muito”, avalia Cristiane. A Sociedade Petalógica, criada por Francisco de Paula Brito, discutia a mentira como forma de “penetrar com acuidade a alma humana”. O grupo reunia pessoas de diversas classes e origens, entre eles os românticos das décadas de 1840 a 1860, como Joaquim Manuel de Macedo e Gonçalves Dias. Nos encontros, os integrantes inventavam mentiras e também meios para desmoralizar aqueles que repetiam e espalhavam as inverdades criadas por eles: “Faziam críticas sociais agudas e escreviam de um jeito que faz o que o leitor precisa ‘ficar esperto’ para compreender tudo o que estão querendo dizer. E, aos 20 anos, Machado fazia parte disso”, diz a pesquisadora.

“O jornalismo do século XIX é um baú de tesouros. A gente encontra muita coisa perdida ali, coisas a que não se deu muita atenção. O jornalismo era o campo do embate político e cultural, as atas das agremiações e da Câmara dos Deputados eram publicada nos jornais. É uma fonte de pesquisa que não tem limites.”

A ironia machadiana a que Cristiane se refere aparece com frequência nos textos publicados em O Espelho, e a biografia de Dom Pedro II não é diferente: “Machado, quando diz que não vai falar de um determinado assunto… é porque vai falar. Na biografia, afirma que não vai tratar de política, mas menciona no texto revoltas como a Sabinada (BA), Liberal (MG/SP) e Praieira (PE). Foram conflitos violentos e contrários à escravidão, ao alto custo de vida do Império”. Para compreender tanto a biografia quanto outras matérias da revista, Cristiane buscou cruzar as informações dos textos com o contexto da época: em 1859, ano em que O Espelho começou a circular, houve muitos gastos com o Paço Imperial. O Paço da Cidade, Paço da Boa Vista, Fazenda Santa Cruz e outras propriedades da família imperial passaram por grandes reformas entre os anos de 1845 e 1861. “Ao cruzar esses dados e buscar outras fontes, vemos que a imprensa da época era muito crítica à esses gastos e às muitas viagens que o imperador fazia. Dom Pedro II passou mais tempo fora do que no Brasil”, comenta.

Esse caráter crítico da imprensa, segundo Cristiane, fornece uma hipótese para a não-assinatura da biografia. Embora uma nota publicada na sexta edição da revista informe que Machado seria o autor, o texto é publicado sem assinatura alguma. “Havia uma lei que dizia que os textos publicados na imprensa sem assinatura ficavam sob responsabilidade, primeiramente, do proprietário da publicação, e depois, do tipógrafo”, explica. Por tratar de assuntos que poderiam causar incômodo ao império, a pesquisadora acredita que Machado tenha optado por não assinar o texto, e diz que era muito comum que matérias polêmicas fossem publicadas sem indicação de autoria. Vale lembrar que as relações entre imprensa e império não eram apenas de oposição e crítica: as publicações da época eram, muitas vezes, “incentivadas” monetariamente pelo governo como era o caso da revista O Espelho.

Jovem Machado de Assis, em 1864, fotografado por Joaquim José Insley Pacheco Foto: Arquivo da Academia Brasileira de Letras

“As publicações da época eram desorganizadas [na diagramação], mas o jornalismo do século XIX é um baú de tesouros. A gente encontra muita coisa perdida ali, coisas a que não se deu muita atenção. O jornalismo era o campo do embate político e cultural, as atas das agremiações e da Câmara dos Deputados eram publicada nos jornais. É uma fonte de pesquisa que não tem limites.” Porém, a pesquisadora acredita que, assim como a literatura, precisa ser tratado com cautela: “A literatura é um testemunho histórico, e Machado de Assis era um observador social. Mas deve-se ter cuidado ao usar a literatura como fonte, é um trabalho difícil”.

Durante o período de pesquisa, Cristiane viajou duas vezes para o Rio de Janeiro, para fazer buscas diretamente no acervo da Biblioteca Nacional. “Por sorte, todas as edições d’O Espelho estavam digitalizadas, isso democratiza muito o acesso ao material, permite que ele chegue também à Santa Catarina.” A revista foi, ao mesmo tempo, o objeto de investigação e também fonte para a pesquisa, e a historiadora afirma que a investigação sobre e com o jornalismo oitocentista permitiu compreender como funcionava a imprensa da época. “É quase uma micro-história que se conta a partir dessa publicação.”

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