Diálogos,  Jornalismo

Quando o esforço coletivo é fundamental para o avanço da investigação jornalística

Por Mauro César Silveira

Na minuciosa resenha do filme Spotlight – Segredos Revelados, publicada aqui no Jornalismo & História, Bárbara Dal Fabbro oferece, em riqueza de detalhes, os caminhos e descaminhos de um trabalho de reportagem extremamente complexo. A determinação do novo diretor de redação do jornal The Boston Globe, Marty Baron (interpretado por Liev Schreiber), ao assumir em 2001, de retomar uma acusação de abuso sexual dentro da Igreja Católica impôs uma daquelas tarefas de apuração jornalística que uma pessoa sozinha não consegue dar conta. Afinal, a informação perdida numa coluna do jornal de que o advogado Mitchell Garabedian (Stanley Tucci) denunciara a conivência do então cardeal arcebispo de Boston, o todo poderoso Bernard Francis Law (Len Cariou), oferecia uma preciosa pista de que a situação poderia ter um alcance bem maior. Não seria um episódio isolado, mas “sistêmico”, acobertado pela alta cúpula religiosa. Ainda bem que Marty Baron encontrou um quarteto afinado de profissionais da área investigativa, que formava a equipe Spotlight, com autonomia dentro da redação.

Segredos guardados a sete chaves no âmbito do poder – seja político, econômico ou, nesse caso, eclesiástico – exigem um abnegado trabalho coletivo. Isso ficou bem evidente na empreitada visando alcançar os sombrios cenários das ditaduras militares sul-americanas em passado recente. A cooperação entre jornalistas foi fundamental para desvendar a chamada Operação Condor, que envolveu, nas décadas de 1970 e 80, oito países apoiados pelos Estados Unidos para planejar em conjunto o sequestro, a tortura e o assassinato de líderes políticos e sindicais. A ação colaborativa de profissionais de diferentes veículos da região, com o apoio de entidades como o Movimento de Justiça e Direitos Humanos – fundado e até hoje presidido pelo corajoso Jair Krischke -, desvelou a trama macabra. As revelações jornalísticas acabariam sendo corroboradas em dezembro de 1992, com a descoberta dos chamados arquivos do terror, em Assunção, no Paraguai, depois de 15 anos da busca obstinada de outra fonte comum a muitos repórteres do sul do continente, o jurista Martín Almada.

Repórter Sacha Pfeiffer pressionada pelo entrevistado Phil Saviano: paciência e empatia com as fontes  Imagem: Divulgação

Na igualmente bem sucedida investigação do Boston Globe, a importância do trabalho em equipe se assomou ao longo de todo o processo. Ao detalhar as ações da pequena equipe liderada por Walter Robinson (vivido magnificamente por Michael Keaton), o diretor Tom McCarthy nos oferece uma narrativa pedagógica sobre o lento avanço da apuração, com o valioso papel cumprido por cada um dos repórteres. A paciência e a perseverança exibidas por Michael Rezendes (Mark Ruffalo) para conquistar a confiança do advogado Mitchell Garabedian (Stanley Tucci), que não permitiu nem anotações em papel no primeiro encontro, são exemplares. A repórter Sacha Pfeiffer (Rachel Anne McAdams) demonstra a indispensável empatia com a fonte para que a entrevista possa fluir: quando a vítima de abuso sexual se desculpa de que come muito quando está nervoso, ela revela na hora que também é exatamente assim. A mesma jornalista mantém a serenidade quando um dos principais entrevistados – Phil Saviano (Neal Huff) – queixa-se, com descontrolada irritação, da demora na publicação da reportagem, lembrando que denúncias das vítimas tinham sido desconsideradas pelo Boston Globe cinco anos atrás.

O entusiasmo da equipe com cada conquista obtida para elucidar as graves denúncias reafirmam o papel social da profissão e desconstroem a ideia de que o jornalismo investigativo é enfadonho e maçante, incluindo o resultado final do trabalho.

Outro momento empático com a fonte foi protagonizado pelo repórter Michael Rezendes no delicado primeiro encontro com um homem abusado por um padre na infância. Quando o entrevistado revela que morava num condomínio em Hyde Park, bairro na região sul da cidade de Boston, o jornalista pergunta se era perto do Stop & Shop – hipermercado com muitas lojas, além de farmácia e padaria. “Você conhece meu bairro?”, se surpreende o interlocutor. “Sim. Fui taxista. Abre cedo e o café é ruim, né?”, replica Michael Rezendes. Nessa cena, o profissional desce do pedestal e humaniza-se diante da fonte. Uma pausa providencial no relato tenso e emocionado de traumáticas recordações do passado. É o estabelecimento natural de uma relação de igualdade, como apregoa a professora Cremilda Medina em seu clássico livro Entrevista: o diálogo possível, lançado pela Ática em 1986, obra ainda indispensável nos cursos de jornalismo do Brasil.

Também é pedagógica a ação do quarteto da Spotlight no empoeirado arquivo do jornal, onde repousava a volumosa documentação da Igreja Católica. Nas incontáveis páginas consultadas, as intrigantes transferências de padres acusados de pedofilia representaram um passo decisivo na longa caminhada da apuração. Quer dizer, as pistas podem estar mais perto do que se imagina, como no acervo do próprio Boston Globe, onde a repórter Sacha Pfeiffer encontrou notícias antigas reveladoras. O entusiasmo da equipe com cada conquista obtida para elucidar as graves denúncias reafirmam o papel social da profissão e desconstroem a ideia de que o jornalismo investigativo é enfadonho e maçante, incluindo o resultado final do trabalho. Aliás, as principais imagens que estigmatizam a área foram sintetizadas no provocativo título de uma excelente reportagem assinada por Branca Vianna na edição de outubro de 2010 da revista piauí sobre a agência norte-americana Pro Publica: “Caro, trabalhoso, chato”. Sim, matérias investigativas demandam tempo e isso, na maioria das vezes, exige muito dinheiro. Mas quando descortinam segredos que afetam a vida da maioria das pessoas tornam-se atraentes, envolvem leitoras e leitores, e conferem ao jornalismo a relevância que ele precisa necessariamente ter. A longa e desgastante apuração realizada pelo Boston Globe rendeu 600 matérias publicadas apenas no ano de 2002 e levou ao afastamento de 249 religiosos. O influente cardeal Bernard Francis Law renunciou ao cargo e foi transferido para a Basílica Santa Maggiore, em Roma, onde faleceu em 2017. E as consequências desse vasto material não param até hoje, gerando sobressaltos no Vaticano a todo o momento: em junho deste ano, por exemplo, o papa Francisco foi obrigado a afastar o bispo polonês Edward Janiak, acusado de acobertar casos de pedofilia em seu país. O Prêmio Pulitzer de 2003, na categoria Serviço Público, a mais prestigiada, não poderia ter ido parar em melhores mãos.

VEJA O TRAILER DE SPOTLIGHT

COMPARTILHE

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *