História,  Reportagem,  Resenha

Livro do jornalista André Picolotto reaviva a fascinante aventura musical da gravadora Discos Marcus Pereira

Por Mauro César Silveira

- Dona Zica, tudo bem? O Cartola tá aí?
- Tá sim, Pelão.
Cartola dormia atravessado, num canto. Acordou.
Disse, sentado:
- E aí, como é que tá São Paulo, Pelão?
- Tá tudo bem, Cartola. E você, tá bem?
- Tô indo.
- Vamos gravar o disco?
- Você tá brincando.
- Vamos.
- Quando?
- A semana que vem.
Cartola deu um pulo, ficou esperto.
- A gente vai gravar que músicas, como?
- Só você. Você do jeito que você é. Com Canhoto, Dino e Meira. Marçal, Luna, Eliseu.
- E as músicas?
- Eu escolho. Tá ok?
- Tá ok.
- Beijo.
- Beijo. Vamos tomar uma cerveja?
- Não, deixa pra depois.

Corria o ano de 1974 e um dos sonhos do produtor musical João Carlos Botezelli, o Pelão, subiu o Morro da Mangueira. O curto diálogo entre ele, com menos de um ano nessa atividade profissional, e Angenor de Oliveira, o Cartola, deu a partida para um disco histórico, o primeiro LP desse gênio da música popular brasileira. Aos 65 anos, o compositor vivia mais um certo ostracismo, servindo cafezinho em repartição pública. Eram mais de quatro décadas de altos e baixos. Descoberto em 1929, teve trabalhos gravados por nomes como os de Mário Reis e Francisco Alves, e desapareceu por um bom tempo, até ser reencontrado, nos anos 50, pelo jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, lavando carros em Ipanema, na zona sul do Rio. Suas composições logo ganharam vozes como as de Clara Nunes, Ciro Monteiro, Elizeth Cardoso, Elza Soares, Gal Costa e Paulinho da Viola. Reconhecimento renovado e, depois, mais outro sumiço. Até a visita do produtor musical, com a proposta inesperada. E, aí, sim, tudo mudou. Definitivamente.

A reminiscência dessa breve conversa, determinante para a construção da memória cultural brasileira, assomou do frutuoso encontro entre o jornalista curitibano André Picolotto e Pelão, mais de 40 anos após aquela subida ao Morro da Mangueira, em 28 de setembro de 2016. É uma das reveladoras passagens da boa narrativa do livro Discos Marcus Pereira: uma história musical do Brasil, lançado no ano passado pela Editora Flor Amorosa, de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. A dimensão do registro vocal em LP de um dos fundadores da escola de samba Estação Primeira de Mangueira  levou o rigoroso e, por vezes, temido crítico musical José Ramos Tinhorão a escrever, no Jornal do Brasil, que “por incrível que pareça, esse disco que só a perspectiva histórica permitirá compreender a verdadeira importância, no futuro, é o primeiro long play de um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira”. Nada mais certeiro.

A obra é uma legítima representante do gênero reportagem histórica, quando o jornalismo remexe o passado usando suas técnicas de entrevista e pesquisa, mas valendo-se, também, de produção historiográfica de qualidade. Ao recontar a existência de pouco mais de oito anos do selo independente paulistano Discos Marcus Pereira, André Picolotto narra a perseverante, para não dizer obsessiva, aventura de três pessoas – o jornalista pernambucano Aluízio Falcão, o produtor musical Pelão, de São José do Rio Preto, e o publicitário paulistano Marcus Pereira – em busca de sonhos quase inalcançáveis para a época: percorrer o Brasil inteiro para conhecer os músicos ignorados pelas grandes gravadoras, alguns deles artistas completamente anônimos, levá-los a estúdios alugados e escrever uma história, a mais abrangente possível, da nossa música popular.

Como o autor sintetiza na apresentação do livro-reportagem, o resultado de tanta teimosia foi magnífico, mesmo que às custas de elevados prejuízos para os bolsos dos empreendedores: “A Discos Marcus Pereira (1973-1981) editou cerca de 140 discos, dos mais variados estilos. Lançou os primeiros LPs de Cartola, Donga, Paulo Vanzolini, Quinteto Armorial, Canhoto da Paraíba. E documentou, de forma pioneira no mercado fonográfico do país, manifestações folclóricas e populares de todas as regiões do Brasil. Do ponto de vista financeiro, a empreitada pode ser vista como um fracasso. Seu valor artístico e histórico, ao contrário, é um monumento àquele que Aluízio Falcão chamou o ‘nosso mais criativo compositor de todos os tempos’: o povo brasileiro”. Na constelação artística que passou pela gravadora, figuram, entre muitos, muitíssimos outros, Altamiro Carrilho, Arthur Moreira Lima, Banda de Pífanos de Caruaru, Carmen Costa, Chico Buarque, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Elba Ramalho, Elis Regina, Grupo Acaba, Jane Duboc, Nara Leão, Orquestra Armorial, Quinteto Violado e Renato Teixeira. Uma seleção brasileira do norte ao sul, de leste a oeste.

Com o talento inato para o artesanato da escrita, o autor construiu um texto leve, com ritmo, balançando as informações em vaivém cronológico, difícil de fazer.

A persistência do trio precisou ser mais do que férrea para a realização dos sonhos. Marcus Pereira trocou 17 anos de publicidade e se endividou para dar início à empresa, alugando estúdios para a gravação dos trabalhos escolhidos. O produtor Pelão teve que insistir muito para viabilizar a ideia de levar a voz de antigos compositores aos discos de vinil, como Ernesto Joaquim Maria dos Santos, mais conhecido como Donga, e Cartola. Na entrevista ao autor do livro, ele recorda que nem as portas fechadas pelas grandes gravadoras foram capazes de fazê-lo esmorecer: “Eu passei em todas. RCA, Polygram. Todas. Chegaram a falar pra mim que ali não era asilo de velhos. E eu falei: ‘Tá bom’”.

André Picolotto: narrativa tão musical como o tema abordado no livro Foto: Arquivo Pessoal

Pelão gravou com os dois artistas, mas, infelizmente, Donga não ficou vivo para ouvir sua voz no vinil. O autor daquele que é considerado o primeiro samba brasileiro, “Pelo telefone”, de 1916, em parceria com Mauro de Almeida, faleceu poucos meses antes do lançamento, aos 83 anos de idade. E o jornalista Aluízio Falcão, sem dinheiro, mas com ótimo trânsito entre os músicos de São Paulo, entrou como sócio da gravadora com sua grande capacidade de articulação no meio cultural, seja em Pernambuco, Rio de Janeiro ou São Paulo. Assíduo frequentador do célebre bar dedicado à música na capital paulista, o Jogral, por onde passaram artistas como Adoniran Barbosa, Araci de Almeida, Elza Soares e Paulo Vanzolini, ele aproveitou bem a convivência, descrita de forma lapidar ao repórter André Picolotto: “Era uma coisa muito afetuosa, muito cheia de alegria e de empenho pela música popular brasileira”.

A pesquisa que precede o livro Discos Marcus Pereira: uma história musical do Brasil começou ainda na graduação em jornalismo de André Picolotto, na Universidade Federal de Santa Catarina, e culminou com a primeira versão do livro-reportagem na forma de Trabalho de Conclusão do Curso, apresentado em dezembro de 2016. Para a elaboração da obra, o autor consultou livros, jornais, sites, revistas e fez apenas três entrevistas, uma delas por telefone. Foi mais do que suficiente para o excelente resultado final. Com o talento inato para o artesanato da escrita, ele construiu um texto leve, com ritmo, balançando as informações em vaivém cronológico, difícil de fazer. Intencional ou não, é uma narrativa bem musical, afinada, que mimetiza com o tema abordado. E muitas frases parecem acordes do mestre Paulinho da Viola, produtor do disco O Violão Brasileiro Tocado pelo Avesso, de Canhoto da Paraíba, para a Marcus Pereira no final da década de 1970. Nestes tempos ainda sombrios, de reclusão em escala mundial, o ato de leitura do livro de André Picolotto é refrigério, bálsamo reanimador, principalmente para quem quer revisitar as melhores raízes da música popular brasileira.

PARA OUVIR

No portal Armazém Memória, pode se percorrer todo o mapa musical da Marcus Pereira, escutando cada disco lançado por essa gravadora independente. Acesse aqui.

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