História,  Jornalismo,  Resenha

Um museu de podres novidades

Sombrio cenário brasileiro requer um olhar sobre a história da imprensa no país

Por Mauro César Silveira

A institucionalização da mentira, a manipulação grosseira e permanente de informações de toda a natureza e o desprezo quase absoluto aos efeitos devastadores de uma pandemia mundial sem precedentes, principais ações ostensivas do atual governo brasileiro, nos levam a rever a última grande obra sobre o passado do nosso jornalismo e suas relações com o poder. Lançado originalmente em 2008 pela Editora Contexto, de São Paulo, com reedições na década passada, o livro História da Imprensa no Brasil, organizado pelas historiadoras Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca, termina com o capítulo intitulado O meio é a mensagem: a globalização da mídia. Assinado pelo jornalista e sociólogo Claudio Camargo, o texto registra como os grandes meios de comunicação do país ainda mantinham anacrônicas práticas “profissionais”, reagindo ao furor tecnológico já em vigor naquela época com trabalhos de apuração precária (para dizer o mínimo), a divulgação de acusações não comprovadas e a propagação de indícios, insinuações, maledicências e até falsas notícias. Tudo pela audiência, mas também pelos interesses políticos de sempre.

Cabalísticos 13 anos depois, irônica e tragicamente, o exercício do poder brasileiro exacerba essa fórmula de distorção da realidade. Agora, em situação bem mais propícia à deformação dos fatos, face ao protagonismo adquirido desde então pelas nervosas redes sociais. Um olhar sobre toda a trajetória do nosso jornalismo torna-se, portanto, uma necessidade premente para tentar compreender como – e em que grau – parte do presente insiste em imitar o passado. Reunindo lado a lado jornalistas e professores das Ciências Humanas – da Sociologia à Teoria Literária –, História da Imprensa no Brasil oferece perspectivas diferenciadas e visões distintas dos sucessivos períodos históricos desde que a Corte portuguesa se refugiou nos trópicos, perseguida pelas tropas de Napoleão, e foi obrigada a instalar no país uma tipografia régia, rompendo com mais de três séculos de proibição de impressos na então colônia.

O inegável mérito do trabalho esbarra, no entanto, na pretensão de apresentar uma visão sistemática do nosso passado, diante “da enormidade de textos que o tratam fragmentada e pontualmente”, como as organizadoras ressaltam na introdução. Nesse aspecto, a obra padece das mesmas deficiências que aponta em outras publicações, mas o que não reduz, de forma alguma, sua importância para o avanço da desafiadora reconstrução dos caminhos percorridos pelo jornalismo brasileiro. Se a unidade da estrutura narrativa acaba sendo comprometida, como fica evidenciado no contraste entre o estilo acadêmico do professor Antonio Arnoni Prado, da Unicamp, e a linguagem impregnada de jargão profissional da jornalista Ana Maria de Abreu Laurenza – “Carlos Lacerda, ex-foca de Cecília Meireles” (p.189); “…convocava José Sarney para copidescar o veneno do chefe contra o Presidente da República” (p.194); “Castelinho edita uma matéria do foca Natalício  Norberto”  (p.197)  –,  o  livro  lança  novas  e estimulantes angulações  sobre  o  passado  jornalístico do país.

Já no primeiro capítulo, Os primeiros passos da palavra impressa, o jornalista e professor do Departamento de História da UERJ, Marco Morel, questiona a insuficiência das análises com “ênfase no atraso, na censura e no oficialismo (grifos do autor)” como fatores explicativos dos primórdios da nossa imprensa, levando em conta “a complexidade de suas características e das demais formas de comunicação numa sociedade em mutação, do absolutismo em crise” (p.24).  O instigante texto do autor, que abre a primeira parte geral, intitulada Primórdios da Imprensa no Brasil, também se contrapõe aos consagrados estudos que não superam o quadro dicotômico oposição/situação entre o Correio Braziliense, crítico, e a Gazeta do Rio de Janeiro, governista. “Tanto a Gazeta quanto o Correio defendiam idêntica forma de governo (monárquica), a mesma dinastia (Bragança), apoiavam o projeto de união luso-brasileira e comungavam o repúdio às ideias de revolução e ruptura, padronizado pela crítica comum à Revolução Francesa e sua memória histórica durante a Restauração” (p.31). É sintomático que o fidalgo português Rodrigo de Sousa Coutinho, primeiro mecenas de Hipólito José da Costa, que fundou o Correio Braziliense, em junho de 1808, em Londres, também tenha sido o principal responsável pela publicação oficial Gazeta do Rio de Janeiro, lançada pela Coroa portuguesa em 10 de setembro do mesmo ano, muito embora Morel não tenha estabelecido essa relação no primeiro capítulo, soltando essas informações, de forma dispersa, entre as páginas 29 e 30.

Oswald de Andrade desponta como uma das vozes dissonantes das primeiras décadas do século XX numa imprensa – a chamada grande – marcada pelo oficialismo.

Entre as virtudes do segundo capítulo, Imprensa em tempos de Império, escrito pela doutora em História Social Ana Luiza Martins, sobressaem os parágrafos que consideram as realidades regionais do período. O Movimento da Praieira (1842-1849), no Recife, que expressou a renhida luta de facções partidárias da Monarquia, serviu de mote para uma apreciação da produção jornalística na província de Pernambuco. Também devem ser saudados os blocos intitulados Geografia dos impressos, traçando o circuito inicial das publicações fora da Corte, em outras regiões, como Pará, Amazonas, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, e Rede urbana e folhas volantes na esteira do café, com o registro da movimentação impressa da colônia alemã no sul do país. Algumas citações, inseridas com muita propriedade, ilustram as condições de desenvolvimento da nossa imprensa no século XIX, como a frase de Joaquim Nabuco ao amigo barão de Penedo, revelando a intenção de lançar um periódico para defender seus interesses: “Sem jornal próprio, não se é nada aqui e vive-se do favor alheio”. O único reparo ao texto é que dois fenômenos significativos do período, os pasquins e as charges – espasmos  polêmicos e críticos na pasmaceira que caracterizava a maioria dos jornais no longo Império de D. Pedro II –, poderiam ser observados com maior acuidade.

Os quatro capítulos que compõem a segunda das três partes do livro mostram um bom quadro da evolução técnica do jornalismo brasileiro no rumo da sua fase industrial, reunidos sob o título geral Tempos eufóricos da imprensa republicana, sem deixar de lado um segmento específico, o das publicações anarquistas do início do século XX, através de análise crítica bem produzida pelo professor de Teoria Literária Antonio Arnoni Prado.  No capítulo Imprensa a serviço do progresso, a doutora em Sociologia e professora de Jornalismo Maria de Lourdes Eleutério relembra o início irreverentemente promissor de Oswald de Andrade no Jornal do Commercio, em 1909, aos 19 anos, quando fora designado para acompanhar uma viagem de inaugurações do então presidente Afonso Pena nos estados de Santa Catarina e Paraná, numa das boas passagens da obra. Revelando uma capacidade de síntese admirável, o jovem repórter que, mais tarde, seria um dos proeminentes nomes da Semana de Arte Moderna de 1922, com reflexos que moldaram alguns gêneros jornalísticos como a crônica, escreveu o texto Pennando em apenas três linhas: “Depois do jantar, depois dos discursos, voltamos a Porto União com um sono dos diabos, quando o trem estaca de repente e isso de noite: imaginem o susto!  O que era?  Nada.  Partira o engate e, só depois da mais fastidiosa meia hora por que tenho passado, continuamos viagem” (p.100).  Não há nenhuma referência às realizações do presidente ou às inaugurações oficiais, despontando Oswald de Andrade como uma das vozes dissonantes das primeiras décadas do século XX numa imprensa – a chamada grande – marcada pelo oficialismo.

Tania de Luca (à esquerda) e Ana Luiza Martins, as organizadoras da obra: trabalho inovador Imagens: Centro de Documentação e Memória (CEDEM-UNESP)/Palha & Cia-Casa de Criação 

No mesmo capítulo, a autora chama a atenção para a “sanha repressora” da República, em contraposição à liberdade de expressão que marcara o longo reinado de D. Pedro II, talvez bafejada pelo comportamento áulico das maiores publicações do período imperial, como é o caso do conservador e vetusto Jornal do Commercio. Mas havia, sem dúvida, uma permanência no novo século, assinalada com precisão por Maria Eleutério: as relações íntimas entre poder e jornalismo. O caso mais notório foi protagonizado por um dos nossos primeiros presidentes, Manuel de Campos Salles, que governou o país entre 1898 e 1902: “Campos Salles, por exemplo, seria lembrado, entre outros aspectos de seu governo, por dispor de verba governamental secreta, destinada a comprar a opinião de jornais e jornalistas. Em suas memórias, advertiu não ter escrúpulos nem de possuir a verba e nem de confessá-la, assumindo as responsabilidades por seu ato” (p.86).

Virtudes à parte, é exatamente nesse segundo conjunto de artigos que transparece o caráter fragmentado da obra, com informações redundantes ou desconectadas, principalmente entre os capítulos Imprensa a serviço do progresso e A grande imprensa na primeira metade do século XX, como a posição monarquista do Jornal do Brasil, quando foi lançado em 1891 (p.87 e 159), a morte do revisor do jornal antirrepublicano A Tribuna (p.85 e 158) e a aprovação da Lei de Imprensa de autoria do senador paulista  Adolfo  Gordo,  em  1922  (p.86  e  164).  Na página 88, no texto de Maria Eleutério, o ano de criação do Jornal do Commercio aparece como sendo 1838, quando, na verdade, a publicação carioca remonta a 1827, como consta no artigo escrito por Tania Regina de Luca, A Grande Imprensa na primeira metade do século XX, na página 155.

Ana Maria de Abreu Laurenza mostra um relato pormenorizado dos detalhes de negociatas urdidas nas sombras do poder durante o agitado período histórico que compreende o capítulo Batalhas em letra de forma: Chatô, Wainer e Lacerda.

A terceira parte, De 1950 aos nossos dias, reúne a jornalista e doutora em Comunicação, Ana Maria de Abreu Laurenza, o executivo da Editora Abril, Thomaz Souto Corrêa, o editor-chefe da agência de notícias virtual Carta Maior e professor Flávio Aguiar, e os jornalistas Cláudio Camargo e Luiza Villaméa, editora da revista IstoÉ. O caráter testemunhal da maioria dos textos não desmerece o bloco. Pelo contrário. O artigo de Flávio Aguiar, que foi editor de Cultura do jornal Movimento, apresenta informações de bastidores extremamente preciosas para a recomposição da memória da chamada imprensa alternativa, durante a ditadura civil-militar. Ana Maria de Abreu Laurenza mostra um relato pormenorizado dos detalhes de negociatas urdidas nas sombras do poder durante o agitado período histórico que compreende o capítulo Batalhas em letra de forma: Chatô, Wainer e Lacerda. Luiza Villaméa, em Revolução Tecnológica e reviravolta política, dá conta, com apuro, da fase de turbulência que se seguiu à primeira eleição presidencial depois da ditadura e desembocou no impeachment de Fernando Collor, numa época em que a imprensa brasileira ainda se informatizava. O depoimento irônico do célebre jornalista Cláudio Abramo, em 1985, reagindo ao Projeto Folha, desencadeado por Otavio Frias Filho, aparece na página 255 e dimensiona a situação vivida por muitos profissionais naquela década: “Eu já não posso ser jornalista. Ainda escrevo na máquina de escrever, sei português e tenho raciocínio lógico”.

Imagens (da esquerda para a direita) publicadas na revista Fatos e Fotos Gente de abril de 1964: ministros Artur da Costa e Silva, do Exército, Augusto Rademaker, da Marinha,  e Francisco Correia e Melo, da Aeronáutica, assinam o Ato Institucional número 1 (AI-1) em 9 de abril daquele ano

Nesse conjunto, as lacunas dignas de registro se referem ao texto assinado pelo jornalista Thomaz Souto Corrêa, A era das revistas de consumo. É, inegavelmente, um testemunho de relevo, informando, entre outras coisas, que a revista Veja ficou seis anos no vermelho e quase foi abortada pela empresa e que a versão brasileira da Playboy apareceu inicialmente como Homem, por decisão da censura. Mas o capítulo acaba se limitando ao balanço orgulhoso de quem ocupava, há muitos anos, postos-chave numa das maiores empresas de comunicação na América Latina, disseminando a visão dos negócios bem-sucedidos do grupo.  “A editora (Abril) continua líder de quase todos os setores em que publica suas principais revistas”, informa na página 229, exibindo um ranking das 10 revistas de maior circulação no Brasil, liderado pela Veja, com 1.096 mil exemplares, que inclui mais cinco títulos desse conglomerado de mídia naquela época. Há uma brevíssima referência às publicações concorrentes, como Época, IstoÉ e Carta Capital, e nenhuma menção à Afinal, uma revista semanal dedicada à reportagem na década de 80 que era comandada pelo jornalista Fernando Mitre, ainda hoje diretor de redação da Rede Bandeirantes. A lacuna mais grave – embora seja compreensível pela posição que Corrêa ocupava na empresa – é que a parte destinada à recuperação da história das revistas nacionais deixe de fora as informações sobre as relações estabelecidas pela Veja com o poder político e econômico. Como já revelou o ex-repórter da revista, Cláudio Julio Tognolli, a publicação semanal da Editora Abril viveu, durante muito tempo, sob a tutela da sua principal fonte, o ex-senador Antônio Carlos Magalhães, falecido em julho de 2007. Por isso, acabam soando falsas as palavras do jornalista João Batista Natali, então na Folha de S.  Paulo, no posfácio, assegurando que, na obra, “há antes de mais nada uma articulação a cada capítulo do jornalismo com a economia e a política” (p.285).

Não há dúvida, entretanto, que o livro tem como grande atributo a riqueza e pluralidade de ângulos analíticos, como Natali salienta nessa mesma página, e representa, como foi expresso no início desta resenha, uma contribuição significativa para a reconstrução do passado do nosso jornalismo impresso. Soma-se, com notória qualidade, à clássica obra homônima de Nelson Werneck Sodré. Mais: as pistas lançadas no derradeiro capítulo por Claudio Camargo, citado na abertura deste texto, merecem ser consideradas nos próximos trabalhos de pesquisa da área, na árdua tarefa de apresentar explicações históricas para tempos aparentemente tão estranhos. Que venha logo uma nova História da Imprensa no Brasil, revisada e ampliada.

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