Jornalismo,  Resenha

Crise das práticas, crise das explicações: para onde correr?

Entre teorização da prática e prática das teorias, livro busca pistas para possíveis futuros do jornalismo a partir de transformações na governança dos veículos

Por Leopoldo Neto e Natália Huf

Quem acompanha o jornalismo brasileiro nos últimos anos já não se surpreende mais com notícias sobre demissões em massa, fechamentos de veículos, quedas nos números de circulação e assinaturas. De acordo com o levantamento Atlas da Notícia, entre 2018 e 2021, ao menos 17 organizações de médio ou grande porte encerraram suas atividades; exemplo recente é o jornal El País, que se despediu dos leitores brasileiros em dezembro do ano passado. Diversos fatores fazem com que esse movimento seja crescente e, entre os profissionais do campo, é comum ouvir falar da chamada “crise do jornalismo”.

As teorias contemporâneas da área buscam elaborar ferramentas teórico-metodológicas e categorias de análise para compreender as transformações estruturais com as quais esse objeto de estudo complexo e multifacetado tem lidado. Em tal panorama, autores advindos de distintos lócus epistemológicos, teóricos e geográficos se mobilizam para construir uma teoria do jornalismo não-normativa, historicizada e empirista, que vise apreender as condições pelas quais o jornalismo enquanto forma social de conhecimento (MEDITSCH, 2002; PARK; 2008; GENRO FILHO, 2012) circula contemporaneamente nas diferentes sociedades (MICK, 2017). 

Os autores holandeses Deuze e Wietschge (2016) formularam a problemática que indica um deslocamento metodológico – a exemplo do realizado por Martín-Barbero (2003) para pensar a comunicação dos meios para as mediações – da questão “o que é o jornalismo?” para “o que o jornalismo está se tornando?”, no intuito de fundamentar novas maneiras de pesquisar e conceituar modificações como a reorganização dos ambientes de trabalho, a fragmentação das redações e a ubiquidade das tecnologias de comunicação e informação.

Com preocupações epistemológicas semelhantes, os canadenses  Charron e Bonville (2016, p. 46) construíram “uma obra multi, trans inter, até mesmo in-disciplinar  (…) cujo objetivo é lançar as bases de uma teoria sobre as mutações no jornalismo”. Baseados na compreensão de que o jornalismo é um discurso social situado no plano concreto, eles propõem a construção de paradigmas típico-ideais dos diferentes momentos da constituição histórica do(s) jornalismo(s) na intenção de conceber modelos que possibilitem compreender as mudanças do discurso jornalístico e a relação complexa com fatores mais amplos presentes nas diversas sociedades.

Durante cinco anos, uma equipe formada por mais de vinte membros de três instituições de ensino – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Associação Educacional Luterana Bom Jesus (Ielusc) e Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) – conduziu uma pesquisa com foco no jornalismo local joinvilense e nas relações estabelecidas com seus públicos (audiências, profissionais, anunciantes, gestores, fontes).

Certas mutações estruturais ocorrem simultaneamente nos campos jornalísticos de distintos países, como a circulação internacional de informações mediada por redes de computadores, a crise no modelo de financiamento, os processos de precarização do trabalho e as práticas jornalísticas realizadas por não-profissionais em espaços fora das redações convencionais (HEINONEN, LUOSTARINEN, 2009; DEUZE, WITSCHGE, 2016; MICK, 2017). Contudo, como aponta Mick  (2017), as singularidades nacionais de cada campo jornalístico também devem ser consideradas em investigações que busquem entender tanto as especificidades quanto as generalidades de diferentes países no que tange aos habitus profissionais e às constituições histórico-concretas desses campos.

Inserido nesse debate teórico contemporâneo, o livro Jornalismo local a serviço dos públicos: como as práticas de governança social podem oferecer respostas às crises do jornalismo (Editora Insular, 2021) possui um nome tão grande quanto o problema com o qual busca lidar: a formulação de respostas locais à crise do jornalismo. A obra, organizada pelos docentes Jacques Mick, Rogério Christofoletti e Samuel Pantoja Lima, busca entender as singularidades jornalísticas locais do estado de Santa Catarina, mais precisamente da cidade de Joinville, a partir da elaboração de categorias de análise fundamentadas em uma pesquisa-ação multimetodológica. O livro tem distribuição gratuita e pode ser baixado aqui.

Contextualmente, a obra surge de uma investigação mais ampla, nomeada GPSJor – Governança, Produção e Sustentabilidade Para um Jornalismo de Novo Tipo e financiada pelo Edital Universal 2016 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Durante cinco anos, uma equipe formada por mais de vinte membros de três instituições de ensino – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Associação Educacional Luterana Bom Jesus (Ielusc) e Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) – conduziu uma pesquisa com foco no jornalismo local joinvilense e nas relações estabelecidas com seus públicos (audiências, profissionais, anunciantes, gestores, fontes). Todas as etapas foram descritas nos oito artigos que compõem o livro. Os textos, de autoria de 13 dos acadêmicos envolvidos, detalham desde a metodologia aplicada até as conclusões e reflexões do grupo sobre como práticas de governança social podem contribuir para o desenvolvimento de um novo tipo de jornalismo.

DIMENSÕES DA GOVERNANÇA SOCIAL NO JORNALISMO 

No que tange o problema que deu origem à pesquisa e ao livro, constata-se que “o que costuma ser chamado de ‘crise’ do jornalismo é um problema multidimensional”, como apontam Christofoletti et al. (2021, p. 101) no artigo que tece as considerações finais sobre a publicação: embora a sustentabilidade financeira dos veículos seja a face mais visível das dificuldades enfrentadas pelo jornalismo, há ainda a crescente desconfiança dos públicos o que culmina em uma espécie de “quebra” do pacto de confiança estabelecido entre as diferentes audiências envolvidas, como fontes, anunciantes, leitores e outros atores que integram a rede de produção, consumo e disseminação jornalística.

A categoria chave que orienta as reflexões pretendidas, na tentativa de responder à crise das práticas e à crise das explicações em relação às transformações estruturais do campo jornalístico, é o conceito de governança social. Segundo Mick e Tavares (2021, p.16), a ideia de governança pode ser definida como um conjunto de relações e “arranjos legais, culturais e institucionais que determinam o que as organizações podem fazer, quem as controla, como esse controle é exercido e como são distribuídos os riscos e retornos das atividades que envolvem”. 

Na vertente disciplinar, a categoria tem sido utilizada por áreas como a administração, ciência política e relações internacionais. Especificamente no jornalismo, os autores a adotaram para “compreender mas não necessariamente normatizar os padrões de relacionamento entre organizações jornalísticas e seus públicos, comportando neles as relações de poder” (MICK, TAVARES, 2021, p. 17). A utilidade da concepção é a sua dimensão operacional, ou seja, compreende as práticas e as relações de um determinado espaço social e ao mesmo tempo possibilita a reflexão acerca da empiria.

Ao longo do processo, Joinville foi um “laboratório a céu aberto” onde os pesquisadores puderam colocar em prática diversas técnicas de investigação (como entrevistas exploratórias e em profundidade, enquetes, revisão bibliográfica), além de participar ativamente junto aos agentes por meio de Comunidades de Prática (CP).

Logo, a governança social dialoga com a interpretação do jornalismo enquanto forma social de conhecimento. Nesse sentido, o conceito divide-se em quatro dimensões: editorial, gestão, circulação e engajamento, e financeira e de sustentabilidade. Todos esses aspectos são inter-relacionados e demonstram que a crise enfrentada pelo jornalismo ultrapassa as questões de modelo de negócio e financiamento; cada uma das dimensões apresentadas possui características e públicos diferentes, “permitindo a compreensão de um objeto dinâmico e permeável a muitos fatores de mudança” (MICK; TAVARES, op. cit., p. 21). As dimensões classificam-se:

  • No âmbito da governança editorial, cabem as interações sociais que se relacionam à atividade e saber profissional dos jornalistas, desde o reconhecimento e seleção de pautas e notícias até a apuração, o comportamento ético no exercício da profissão e os procedimentos de narração, como mídias, suportes e linguagens. Essa dimensão engloba os próprios jornalistas e outros profissionais de mídia, colaboradores de conteúdo e as fontes;                                                                                                                                                                     
  • Na governança de gestão se refere à transparência e permissão social na estrutura organizacional, bem como o quanto a gestão interfere e impacta a produção de conteúdo; envolve os proprietários e grupos interessados (stakeholders);                                                                                                                                                                                                                       
  • Em relação à governança de circulação e engajamento, o que se observa é a participação do público – audiências: leitores, ouvintes, telespectadores, etc. – na produção e no compartilhamento do conteúdo produzido pelo veículo;                                                                                                                                                                  
  • Por fim, na governança financeira e de sustentabilidade diz respeito às formas de financiamento do jornalismo e o envolvimento dos públicos para a mobilização dos recursos necessários. Aqui, circulam os anunciantes, assinantes e doadores que contribuem financeiramente com a organização jornalística.

Cada um dos enfoques analíticos é analisado a partir de entrevistas realizadas com representantes dos grupos sociais envolvidos profissionais com diferentes graus de escolarização e condições socioeconômicas, representantes do movimentos sociais, sindicatos e entidades de classe com o objetivo de compreender em aspectos profundos o que pensam os públicos e o que eles esperam do jornalismo. O estudo demonstra que o problema enfrentado é mais amplo e não se encerra nos aspectos financeiros: o cenário atual é de um jornalismo em transformação, que lida com a constante erosão da confiança por parte dos públicos, disputa espaços com outros agentes que criam e disseminam conteúdos, possui audiências fragmentadas e precisa constantemente modificar e atualizar suas ações. No entanto, os acadêmicos acreditam que as organizações jornalísticas locais têm potencial para manter suas taxas de audiência elevadas: segundo Christofoletti et al. (op. cit.), algumas das possibilidades para um jornalismo “de novo tipo”, que tenha a governança social como um de seus pilares, são o ajuste de práticas que se adequem às exigências do público, intensifiquem as relações estabelecidas com as audiências e a adoção de estratégias que assegurem o financiamento a longo prazo e, especialmente, que ofereçam transparência.

Ao longo do processo, Joinville foi um “laboratório a céu aberto” onde os pesquisadores puderam colocar em prática diversas técnicas de investigação (como entrevistas exploratórias e em profundidade, enquetes, revisão bibliográfica), além de participar ativamente junto aos agentes por meio de Comunidades de Prática (CP), procedimento estratégico aplicado que possibilita um compromisso coletivo com a área de interesse (MICK et al., op. cit.).

Do ponto de vista da agregação ao estado do conhecimento, a obra apresenta contribuições pertinentes no terreno teórico-metodológico dos estudos brasileiros em jornalismo. Os artigos, redigidos em linguagem objetiva, clara e direta, preocupam-se em descrever e, ao mesmo tempo, refletir sobre os próprios métodos e técnicas adotados e as suas possibilidades heurísticas – fator que, além de evitar a essencialização e o engessamento das possibilidades metodológicas da pesquisa científica (BOURDIEU, 2009), também permite sua replicabilidade em outros espaços geográficos e simbólicos; o que possibilita a verificação das relações desenvolvidas pelo jornalismo local com seus públicos em outras regiões do estado ou do país, e até mesmo internacionalmente.

SAÍDAS POSSÍVEIS 

Crise. Tacitamente, pode-se afirmar que esta palavra tem circulado amplamente entre profissionais e estudiosos da área. A crise no jornalismo está relacionada a uma série de transformações comunicacionais e culturais de escopo mais amplo e, como bem apontam os autores, debater somente o problema do modelo de financiamento é insuficiente para abordar a complexidade do assunto. O jornalismo enquanto forma social de conhecimento só existe enquanto encontrar respaldo nos valores e práticas culturais de seus públicos; portanto, pensar em novas formas de engajamento e circulação de produtos jornalísticos, que atendam às diversas necessidades sociais locais, pode ser uma das chaves para lidar com a questão.

Obra de Mick, Christofoletti e Lima propõe novo tipo de jornalismo: práticas devem se adequar às exigências do público Imagem: br.freepik.com

Quando pontua que o jornalismo é provido de potencialidades que ultrapassam sua gênese burguesa, Genro Filho (2012) fornece subsídios para refletir sobre novas formas de se praticar e pensar o jornalismo na sua dimensão no plano concreto, de maneira a entender que, enquanto realidade histórica, essa forma social de conhecimento pode ser modificada e estruturada a partir novas possibilidades – estas que podem ser exploradas em conjunto com a categoria de governança. O modelo organizacional empresarial, que orienta o jornalismo moderno desde o século XIX (CHARRON, BONVILLE, 2016; MICK, CHRISTOFOLETTI, LIMA, op. cit., 2021), tem mostrado suas limitações. Outras práticas de governança social, que recusam a subordinação do jornalismo ao lucro e lutam pela autonomia do campo, podem ser operacionalizadas.

Como alternativa, a sugestão apresentada fundamenta-se em um novo tipo de jornalismo, como o título já dá o spoiler: um jornalismo local a serviço dos públicos. Práticas de governança que sejam disseminadas e seguidas soam como uma “promessa de restituição na confiança no ofício por parte das comunidades” (Christofoletti et al., p. 111); afinal, uma das principais queixas apresentadas pelos públicos é a distância que o jornalismo vem tomando, bem como a percepção de um reposicionamento da informação na hierarquia de prioridades dos veículos. Quando o jornalismo prioriza a lucratividade em detrimento da informação como foco, ocorre a bola de neve que culmina nos tensionamentos enfrentados atualmente, como abalos no(s) modelo(s) de financiamento, encerramento de veículos, demissões em massa, precarização da profissão, erosão nas relações entre jornais e audiências.

Ao investigar o que pensam os públicos, o livro demonstra saídas a serem exploradas. O conceito de governança – aplicado às dimensões editoriais, gestão, circulação e engajamento – pode trazer novo fôlego ao jornalismo. Repensar as hierarquias, os pactos com comunicacionais, a estrutura do jornal enquanto empresa e  incluir os públicos nos processos decisórios de forma transparente pode ser um rastro para novas caminhadas.

Referências

BOURDIEU, P. Introdução a uma sociologia reflexiva. In: O poder simbólico. 12.ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2009.

CHARRON, J.; BONVILLE, J. Natureza e transformação do jornalismo. Florianópolis: Ed. Insular, 2016.

DEUZE, M.; WITSCHGE, T. O que o jornalismo está se tornando? Parágrafo, v. 4, n. 2, jul/ dez, 2016. p. 7-21. 

GENRO FILHO, A. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Série Jornalismo a Rigor. v.6. Florianópolis: Insular, 2012.

HEINONEN, A.; LUOSTARINEN, H.. Re-Considering “Journalism” for Journalism Research. In: LÖFFELHOLZ, M; WEAVER, D. Global Journalism Research: Theories, Methods, Findings, Future. Wiley-Blackwell, 2009, p. 227-239. Acesso em: 01 out. 2021.

INSTITUTO PARA O DESENVOLVIMENTO DO JORNALISMO (PROJOR). Atlas da Notícia: Mapeando o jornalismo local no Brasil. 2021. 4ª edição. Disponível em: www.atlas.jor.br. Acesso em: 02 fev. 2022. 

MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

MEDITSCH, E. O jornalismo é uma forma de conhecimento? Media e Jornalismo, v. 1, n. 1, 2002. 

MICK, J. Trabalho jornalístico e mundialização: problemas teórico-metodológicos. Sur le journalisme. Vol 6, n. 2, dez 2017.

MICK, J.; CHRISTOFOLETTI, C.; LIMA, S. P. Jornalismo local a serviço dos públicos: Como práticas de governança social podem oferecer respostas às crises do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2021.

PARK, R. E. A Notícia como Forma de Conhecimento: um capítulo da Sociologia do Conhecimento. In: BERGER, C.; MAROCCO, B. A Era Glacial do Jornalismo vol 2. Porto Alegre: Sulina, 2008.

SOBRE O AUTOR

LEOPOLDO NETO é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGJOR/UFSC). Integra a Revista Badaró e é membro da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Gosta de Marx e Bourdieu.

SOBRE A AUTORA

NATÁLIA HUF é jornalista, estudante de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGJOR/UFSC) e mestra em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (Poscom/UFBA). Integra a equipe do Jornalismo & História e o grupo de pesquisa objETHOS – Observatório da Ética Jornalística.

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