A vida sob escombros
Após sofrer os mais intensos bombardeios desde 2014, a Faixa de Gaza se depara novamente com o desafio de recompor um cenário em permanente destruição
Por Mauro César Silveira
Tem sido sempre assim. Dolorosamente assim, década após década. Ataques aéreos, bombas para todo lado, edifícios e casas destruídas, balas perdidas, mortes e mortes de crianças indefesas. A Faixa de Gaza, estreita área de 365 quilômetros quadrados, com cerca de 40 quilômetros de extensão e pouco mais de 10 quilômetros de largura nos trechos maiores, comprime quase dois milhões de pessoas a leste do Egito e a oeste de Israel, em permanente sobressalto. Neste mês de maio, durante 11 dias de intensos bombardeios israelenses, esse território palestino padeceu como sempre: 243 mortos, a quarta parte crianças e adolescentes (66), 16.800 casas atingidas – 2.800 delas irrecuperáveis -, mais de 90 mil pessoas desabrigadas, cortes de luz, águas contaminadas, e até uma clínica na área central da cidade de Gaza atingida, inviabilizando o único laboratório de testes de Covid-19 em toda a região. “Se há um inferno na terra, está na vida das crianças em Gaza”, desabafou o secretário-geral da ONU, António Guterres, no dia 21 de maio, pouco antes de entrar em vigor um cessar-fogo entre militares de Israel e forças palestinas.
O calvário de meninos e meninas nesse cenário aterrador foi narrado, em detalhes, pelo enviado especial do El País à Gaza, Juan Carlos Sanz, em reportagem de capa intitulada “Los niños en Gaza tienen miedo de todo”, da edição impressa de domingo passado, e disponibilizada na versão digital brasileira do jornal espanhol no mesmo dia, sob o título de O inferno de ser criança em Gaza. Nesse sensível relato, o jornalista informa que muitas crianças voltaram a sofrer de incontinência urinária noturna e outras deixaram de falar. Bem antes de Sanz, o pioneiro do jornalismo em quadrinhos, Joe Sacco, retratou o drama da infância de quem vive no território palestino em muitas das 432 páginas da sua grande obra Notas sobre Gaza, lançada no Brasil pela Companhia das Letras em 2010. Em trabalho que se estendeu por sete anos, ele constatou como o massacre de 275 palestinos por soldados israelenses, na localidade de Khan Younis, ocorrido no distante ano de 1956, ainda provocava traumas nos moradores mais antigos da região. Entrevistando testemunhas do episódio – até então relegado a notas de rodapé nos livros de História e praticamente ignorado pelo Jornalismo -, Sacco também percebeu como o sofrimento do passado acabava se impondo no presente, afetando o cotidiano das pessoas e, sobretudo, a perspectiva de vida das crianças. Outro jornalista preocupado com a contextualização histórica, o premiado repórter investigativo uruguaio Roger Rodríguez abordou um dos muitos eventos trágicos de Gaza, a morte de quatro meninos que jogavam futebol na praia, atingidos por um míssil israelense lançado em 16 de julho de 2014. O texto intitulado Los niños de Gaza, publicado em sua página no Facebook alguns dias depois, assinala a diferença abismal entra o poder militar e econômico entre as nações em confronto, mas principalmente denuncia a insana ameaça dos bombardeios às crianças palestinas. Mais do que isso. Ele desmonta a argumentação do governo de Israel para justificar a agressividade da sua supremacia bélica com uma frase demolidora: “Tentar derrotar o Hamas ou seus militantes com bombas em áreas urbanas é como jogar napalm no bairro Marconi (Montevidéu) para acabar com a pasta base”.
“Perdemos as felizes recordações que sempre sossegaram nossos dias: o cheiro do café que era preparado diariamente e do incenso para receber os frequentadores. Perdemos as capas dos livros, centenas de milhares de obras valiosas e insubstituíveis, que não eram fáceis de trazer para a Gaza sitiada”. Samir Mansour, dono da livraria destruída em Gaza
Como sempre, nas ações entre 10 e 21 de maio, muitos alvos civis foram atingidos. Sob o pretexto de destruir uma estrutura subterrânea das forças militares palestinas, Israel derrubou, no sábado dia 15, um edifício de 12 andares, no centro da cidade Gaza, que abrigava as redações da agência estadunidense Associated Press e da rede televisiva Al Jazeera, do Catar. Mas nada foi mais simbólico do caráter avassalador dessa última investida israelense do que o bombardeio que transformou, três dias depois, a maior livraria de Gaza num monte de entulho. No amanhecer do dia 18, o proprietário do estabelecimento, Samir Mansour, recebeu uma ligação telefônica atribuída a membro do exército de Israel indagando se ele estava em suas dependências, a menos de dois quilômetros de sua casa. Diante da resposta negativa, o prédio foi imediatamente explodido. “A livraria era como minha alma”, tem dito, com frequência, desde aquela terça-feira. Após dois dias, Samir Mansour fazia um balanço na conta do empreendimento no Instagram: “O que perdemos ao perder a livraria? Perdemos as felizes recordações e as comovedoras situações que sempre sossegaram nossos dias: o cheiro do café que era preparado diariamente e do incenso para receber os visitantes. Perdemos as capas dos livros, centenas de milhares de obras valiosas e insubstituíveis, que não eram fáceis de trazer para a Gaza sitiada, perdemos o ruído dos passos dos transeuntes, estudantes, adultos, jovens, crianças, perdemos muitos amigos…!”
O livreiro de 53 anos também lamenta a perda dos sussurros dos frequentadores infantis e o alvoroço que provocavam diante de obras coloridas dos mais diversos tamanhos. Nesse mesmo perfil no Instagram, a ativista de Direitos Humanos, Yara Eid, integrante da Anistia Internacional, que vive na Escócia, deixou um emocionado depoimento pessoal, que se reporta aos tempos de criança no local agora reduzido a destroços: “Esta é a livraria Samir Mansour, mas deixe-me dizer o que ela significa para mim. Quando eu era criança, meu sonho como o sonho de qualquer criança era viajar pelo mundo, mas desde que nasci em Gaza esse sonho sempre pareceu impossível. Comecei a ler romances, contos, livros, e me imaginei viajando por esses livros. A livraria mudou a minha vida, eu costumava ir lá todos os meses com minha mãe e comprar alguns livros e esperar tão ansiosamente o próximo mês para que minha mãe pudesse me comprar mais. […] A livraria me deu esperanças, sonhos, novos amigos, memórias incríveis, e uma nova vida. Uma das primeiras coisas que eu pretendia visitar quando voltasse para Gaza era este lugar lindo, mas ontem bombas israelenses o removeram da existência como se afirmassem que nossos livros, nossas esperanças e sonhos são ameaçadores. E todos os meus amigos também estão sofrendo e chorando porque cada um deles tinha outra história, outra vida imaginária com esse lugar”.
Uma das raras livrarias na Faixa de Gaza, a loja destruída era bem mais que um cobiçado local de comercialização de obras literárias. Desde o ano 2000, quando Samir Mansour assumiu o antigo negócio de seu pai, com quem começou trabalhar aos 13 anos, tornou-se a sede de uma editora de perseverantes autores e autoras do território palestino. Era, por isso, um concorrido ponto de encontro de intelectuais e estudantes. Conhecida como “templo dos livros”, também reunia o maior acervo em língua inglesa na região. Com uma clientela bem diversificada: desde pessoas apenas com interesse religioso, em busca de edições do Alcorão, a outras interessadas em traduções para o árabe de autores como Dostoiévski. “Quarenta anos da minha vida se desfizeram em uma fração de segundo”, sintetizou Samir Mansour, caminhando sobre pedaços de concreto, livros chamuscados e cadeiras de plástico retorcidas, logo após o ataque israelense, em entrevista para a agência de notícias francesa AFP. Mas, como bom palestino, ele não desiste e já trabalha, com afinco, na reconstrução da sua livraria. Uma campanha de arrecadação de fundos online no GoFundMe para erguer um novo prédio e, assim, reviver seu sonho de infância avança, em velocidade surpreendente, dia após dia. Samir Mansour tenta renascer das cinzas, como muita gente na Faixa de Gaza, onde a vida teima em resistir sob escombros.
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A dimensão da obra História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque, sobre a extinção de valiosas produções impressas ao longo dos tempos, através de resenha e entrevista com o autor, em trabalho jornalístico de Bárbara Dal Fabbro