Entrevista,  História,  Resenha

438 páginas através dos séculos para recontar a morte dos escritos mais valiosos da humanidade

Por Bárbara Dal Fabbro

Neste momento, enquanto você lê estas linhas, pelo menos um livro está desaparecendo para sempre. A morte de uma obra literária é uma regressão, um retrocesso, já que com ele se vão ideais, pensamentos, sentimentos, conhecimento e até sonhos.

O que faz uma pessoa destruir um livro? Queimá-lo, rasgá-lo ou mesmo rasurar suas páginas? Estas perguntas, com certeza, permearam os pensamentos do escritor venezuelano Fernando Báez. O interesse pelos volumes destruídos ou perdidos remonta à sua infância, desde os cinco anos de idade os livros eram seus únicos amigos. Ele costumava frequentar a biblioteca pública de sua comunidade, em San Félix, Ciudad Guayana, na região oriental do país, que infelizmente foi destruída numa inundação do Rio Caroní. O garoto perdeu seu porto seguro, seus amigos.

Para escrever a História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque, lançada no Brasil pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2004, o escritor realizou uma extensa pesquisa bibliográfica. Foram doze anos estudando os casos mais célebres de destruição de bibliotecas por causas naturais ou humanas. Desde a maior biblioteca do mundo, a impressionante Alexandria, passando pela censura dos inquisidores católicos, a grande queima de 1933, na Alemanha, pelos nazistas, até a recente tragédia que atingiu o Iraque, o primeiro memoricídio do século XXI.

A queima de exemplares é o modo mais comum da destruição de milhares de bibliotecas em todo o mundo ao longo dos tempos.

Báez nos convida a viajar com ele através dos séculos e eras ao encontro das catástrofes naturais e humanas que dizimaram não só milhões de pessoas, mas também milhões ou talvez bilhões de livros. São mais de sete mil anos de histórias e números que assombram por sua magnitude e concretude.

A queima de exemplares é o modo mais comum da destruição de milhares de bibliotecas em todo o mundo ao longo dos tempos. Para os guerreiros antigos, queimar a biblioteca do inimigo era a consagração de sua vitória. Para as mitologias antigas, períodos de destruição e criação eram as únicas alternativas do universo, é destruir o passado para assim renovar o presente. Parece que a antiguidade está mais presente hoje do que antes.

O extermínio voluntário causou o desaparecimento de 60% dos volumes. Fora aqueles que foram destruídos por não serem publicados. O número de livros perdidos e destruídos é incalculável já que existem registros apenas das grandes destruições relacionadas a bibliotecas que possuíam catálogo de tomos. Quanto à perda relacionada a coleções particulares ou que não possuíam catalogação não é possível mensurar, mas o número tende a ser desalentador.

A leitura, ou anagnoosis, era restrita aos sacerdotes e representantes de Deus. Foi apenas nas cidades gregas que ler e escrever passou a ser comum. O século V a.C. é um marco para a difusão do conhecimento já que é através da Revolução Cultural que a escrita se impõe sobre a fala, sobre a informação pautada na oralidade.

É aflitivo pensarmos que, apesar de todos os exemplares gregos a que temos acesso, 75% de toda a literatura, filosofia e ciência grega se perdeu.

A destruição começa na Suméria onde os livros surgem há, aproximadamente, 5.300 anos. Não só as escritas evoluíram com os séculos, mas também os suportes em que os livros eram impressos. No começo eram as tabletas de argila, depois os egípcios inventaram o papiro, em seguida, o pergaminho era o material mais utilizado e, finalmente, a invenção chinesa do papel, em que são impressos até hoje.

História universal da destruição dos livros traz dados que nos fazem querer entender o porquê dos homens serem tão destrutivos e o quanto da cultura e conhecimento de todos os povos foi extinta para sempre. É aflitivo pensarmos que, apesar de todos os exemplares gregos a que temos acesso, 75% de toda a literatura, filosofia e ciência grega se perdeu.

O conhecimento sempre causou encantamento e temor nos homens, principalmente nos governantes. Foi nos livros, seu meio de difusão, que toda a admiração e ira foram concentrados, originando ações pró, como a bibliofilia de Aristóteles e dos bizantinos, e contra, na biblioclastia do imperador chinês Shi Huandi (O Destruidor) e do primeiro líder hebreu, Moisés.

É possível que se pense que toda essa destruição remonta a um passado longínquo, porém em um relato mais recente, entre as páginas 323 e 341 da sua obra, Báez descreve o que viu quando esteve no Iraque pouco antes da guerra (2003-2011): “Em 10 de março de 2003 visitei a sede devastada da Biblioteca Nacional de Bagdá, chamada em árabe de Dar al-Kutub Wal-Watha’q. O extraordinário é que se cumpriam setenta anos da grande queima de 1933 na Alemanha, uma data fatal para a cultura. Já ia prevenido por meus colegas, é claro, mas o que averiguei e vi – vale a pena notar – produziu-me insônia nas noites seguintes. (…) Concluída a desastrosa pilhagem, não havia literalmente nada a fazer. Quanto às perdas, foram queimados um milhão de livros, a que se deve acrescentar a grande quantidade de textos perdidos. (…) No Iraque se cometeu o primeiro memoricídio do século XXI. Pode-se imaginar um destino pior para a região onde começou a nossa civilização?

O interesse em relatar essa relação dúbia que os homens possuem com os livros – tal como fizeram Richard de Bury e Terêncio Varrão – e o desejo de vingar a biblioteca de sua cidade natal fizeram com que Fernando Báez publicasse esse exemplar que foi traduzido para 17 idiomas e é hoje considerado uma referência no tema. Leitura obrigatória para os amantes de livros.

Pingue-pongue com o escritor que se especializou na história das bibliotecas

Báez, fazendo justiça pelos livros Foto: Revista Letralia/Divulgação

Em 2007, no ano em que conquistou o Prêmio Cecília Meireles, concedido pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, como autor do melhor livro teórico publicado no Brasil, com História universal da destruição dos livros, Fernando Báez se dispôs a conversar sobre o seu trabalho mais conhecido.

Ele começou sua carreira estudando filosofia grega, com foco especial em Aristóteles. Em 1996, licenciou-se em Educação, mas manteve constantes interesses em outras áreas como a poesia, filosofia árabe, censura antiga e contemporânea, escritos e a conexão do patrimônio cultural com a memória étnica.

Em 1999, Báez foi admitido como doutorando em Bibliotecologia. Desde seus primeiros interesses helênicos, base de sua formação, se dedicou com entusiasmo aos estudos culturais, escrevendo sua História universal da destruição dos livros (fruto da tese de doutorado defendida em fevereiro de 2002).

Essa obra continua sendo um best-seller mundial, com 17 traduções, e seu autor é considerado uma autoridade internacional na área da história das bibliotecas. Báez é ativista declarado contra a censura e assessora vários países sobre a extinção de patrimônios históricos. Sua investigação da destruição de bibliotecas e arquivos foi motivada, principalmente, pelas memórias penosas de sua infância quando uma inundação devastou a biblioteca de San Félix, na Venezuela.

Bárbara Dal Fabbro – O senhor dedicou 12 anos de sua vida à pesquisa sobre a destruição de livros. O que isso significou? Acredita que prestou um papel importante para a história da humanidade?

Fernando Báez – Nunca imaginei que a destruição de livros era um fenômeno tão extenso em todas as culturas. Sem dúvida, o homem é um destruidor sistemático de livros.

BDF – Contando com um material tão extenso como o de sua pesquisa bibliográfica, como foi sintetizar tantos séculos e informações em um livro de 438 páginas?

Fernando Báez – Foi uma tarefa difícil, quase impossível. Não sei como pude terminar esse livro.

BDF -A experiência de ver a biblioteca de sua cidade ser destruída quando criança foi o estopim para sua curiosidade sobre o assunto? O senhor acredita que vingou-a com a publicação de seu livro?

Fernando Báez – Me falta fazer justiça. Apenas comecei.

BDF – Em seu livro, o senhor relata que esteve em Bagdá quando a guerra que devastaria o Iraque estava começando. Como foi estar lá? Que emoções sentiu?

Fernando Báez – Foi doloroso. Senti tristeza, e ainda a sinto. Não entendo como os Estados Unidos podem provocar tanto dano.

BDF – Os números sobre livros destruídos e perdidos são impressionantes. Difícil de contabilizar. Como curiosidade, gostaria de saber se o senhor tem um número final de todos os livros destruídos até hoje. São bilhões? Trilhões de livros?

Fernando Báez – Não há um número oficial, a investigação prossegue.

BDF – O senhor se considera um bibliófilo? Qual o tamanho de sua biblioteca? Existe um livro, uma edição, que o senhor gostaria de possuir? Um livro raro talvez…

Fernando Báez – É grande, cada vez cresce mais e tenho muitos livros raros. Meu lema em minha biblioteca é: “Leia sem pressa e sem obrigação”.

BDF – Em sua pesquisa, o senhor nomeou diversos biblioclastas, algum deles o surpreendeu ou decepcionou? Quem?

Fernando Báez – Surpreendeu-me saber que Itzcoal queimou livros entre os astecas e me decepcionou saber que Borges também os queimou.

BDF – Qual acontecimento a seu ver foi o mais catastrófico para a História Humana? O nazismo? A Guerra do Iraque?

Fernando Báez – Ambos.

BDF – O que devemos fazer para preservar os livros e a biblioteca? O senhor proporia uma Lei Universal em Prol da Preservação dos Livros que fosse rígida com aqueles que a desrespeitassem? Qual a punição adequada para quem destrói um livro?

Fernando Báez – Parece-me uma grande ideia que exista uma Convenção para a Preservação das Bibliotecas e Livros. Precisaríamos de muitas coisas antes de chegar aos castigos, mas insistir em que a destruição dos livros é um delito de etnocídio e memoricídio.

BDF – A repercussão de seu livro o agradou? O senhor acredita que ele foi bem aceito pela crítica e pelos leitores, amantes ou não de livros?

Fernando Báez – Estou surpreendido por tanta aceitação. O livro teve muita sorte no Brasil e isso me emociona.

BDF – O livro Philobiblion de Richard Bury foi uma inspiração para a redação de seu livro?

Fernando Báez – É um belo texto, que se lê com emoção. Richard de Bury é um clássico.

Confira toda a lista de livros do Index

COMPARTILHE

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *