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Um pintor entre dois mundos: Parte II

O voo europeu do artista uruguaio Carlos Wahington Aliseris nas páginas da emblemática revista belga Clarté

Por Maria de Fátima Fontes Piazza

A segunda revista apresentada é Clarté: art et art décoratif, architecture, publicada na capital da Bélgica, tendo como diretor Monsieur Herman Dons, cujo escritório da redação se localizava na Rue du Gentilhomme, número 11, em Bruxelas, foi patrocinada pela firma “La glace polie A. M. G. E. CAssociation des Manufactures de Glaces de l’Europe Continentale”, que valorizava a arquitetura moderna ou modernista, do concreto e vidro.

Dessa revista interessam dois números. Primeiro, o número 1, de janeiro de 1939, no 12º ano de circulação da publicação, vendida a 5 francos. Este número tem como medidas 31,5 x 24,5 cm., com cinquenta páginas ilustradas, cuja numeração é composta de vinte e quatro páginas com algarismos arábicos e mais vinte e seis páginas com algarismos romanos. A capa desse número tem uma reprodução fotográfica da escultura de George Vandevoorde (1878-1964), La Bonne Semence (A Boa Semente), tendo como pano de fundo a cor púrpura, esta escultura foi vista por Jean Laenen (1881-1965) como uma “escultura decorativa”. O escultor Vandevoorde era especialista em baixos e altos relevos: “A escultura decorativa não poderia passar de um estreito acordo com a arquitetura. Ela não é formada na escola do monumento”.

Herman Dons, além de editor de Clarté, é autor de obras como Un entretien avec le peintre Charles Michel (1929), La presse libérale de 1830 a 1930 (1930), La technique du jornal: bréviare typographique à l’usage des journalistes et gens de lettres (1925) em coautoria com Antoine Seyl (Paris/Bruxelles: Office de Publicité/Editions de Papyrus), Le Relévement de nos ruínes: la reconstruction des cités détruites (1915) em coautoria com Paul Saintenoy e Jules Brunfaut, entre outras.

Esta revista leva o nome da consagrada Clarté francesa criada por Henri Barbusse com Vaillant-Couturier, em 1919, que foi um “centro de educação revolucionária internacional”, a “primeira expressão intelectual do comunismo francês, traduzia o enorme desejo de revolução nascido do outubro russo. Ao mesmo tempo, afirmava sua independência em relação à organização comunista, da qual, aliás, vai se afastar em 1925”, segundo Michel Winock.

A francesa Clarté reverberou em vários países da América Latina, inclusive no Brasil e Argentina, com o aparecimento quase simultâneo de projetos editoriais com o mesmo nome na década de 1920, como a argentina Claridad. Nessas revistas herdeiras da Clarté, a intelectualidade se engajou e colaborou ativamente, como Pedro Motta Lima, membro do Partido Comunista Brasileiro que contribuiu com Claridad.

A belga Clarté era dedicada às artes visuais: arte decorativa, pintura, escultura, arquitetura e denota uma certa preocupação museológica, como no artigo Coup d’oeil. Musée en plein air, do diretor da revista Herman Dons. A revista tinha uma conotação mais acadêmica, de estudo e de discussões sobre as artes visuais. Ao que tudo indica, o público-alvo era profissionais das artes visuais, como arquitetos, alunos e ex-alunos das Écoles des Beaux Arts e das Écoles d’Architecture.

O artigo de Flament ocupou entre as páginas sete a dez da Clarté, ilustrado com sete reproduções de obras de Aliseris, como: Laguna Negra (Uruguai), Baía de Guanabara (Brasil), Retrato de Ruperto Butler, Rua Andrade (Brasil – Ilha de Paquetá), San Sebastián, Exercício de Circo e Pinos (Uruguai).

No sumário deste número, constam informações sobre a Clarté, além de artigos e propagandas, como La Vie des Lettres par Maurice Gauchez, na parte de Art et Art décoratif, constam os artigos: Oranje Boven!, de Ad. Puissant; Aliseris ou la leçon d’amour Sud-Américaine, de Julien Flament; L’Art dans l’a vie, de J. S. R.; Petit Magasin de ‘haute couture’, Maison des Vacances Minimum, Appartement 1938, G. Vandevoorde et la Sculpture décorative, de Jean Laenen; Le Sterckxhof, de Eugénie Hamer; e L’Activité Architecturale.

Artigo do escritor e jornalista belga francófono Julien Flament se estendeu por quatro páginas da revista Clarté

O artigo Aliseris ou la leçon d’amour Sud-Américaine foi escrito pelo escritor e jornalista belga francófono, Julien Flament (1884-1958), que exerceu na imprensa as funções de chefe da seção cinematográfica de l’Aurore, Redator-Chefe de Bruxelles-Programmes, Redator Cinematográfico em Cinéo, Crítico Teatral em La Défense Wallonne, colaborador em l’Independance Belge, Colaborador em La Meuse, Redator de crítica teatral e crônica militar em La Nation Belge (depois de 1940), crítico de teatro em Spectacles, e colaborador em outros periódicos.

O artigo de Flament ocupou entre as páginas sete a dez da Clarté, ilustrado com sete reproduções de obras de Aliseris, como: Laguna Negra (Uruguai), Baía de Guanabara (Brasil), Retrato de Ruperto Butler, Rua Andrade (Brasil – Ilha de Paquetá), San Sebastián, Exercício de Circo e Pinos (Uruguai). E, na última página do artigo, constam o nome do autor do artigo Julien Flament e da Photos Studio Galmar, de Edy Galland, Rue de L’Étuve, n. 68, Bourse, Bruxelas, onde foram feitas as fotografias das obras e reproduções fotográficas que ilustram o artigo. A maioria dessas obras estão em coleções desconhecidas e não se encontram referências técnicas sobre elas, apenas existem fotografias que pertencem à coleção Ignacio Labaure, em Montevidéu, e algumas têm anotações no verso e permitem identificações, como “Rua Andrade”, de 1934, medindo 0, 92 x 0, 73 cm, entre outras questões.

O termo exótico e exotismo era usual para os europeus ao se referir à natureza, povos e culturas dos continentes asiático, africano e americano, numa época de imperialismos e colonialismos, inclusive o império colonial belga.

O autor começou fazendo uma provocação porque queria colocar um título bonito no artigo e chamou à atenção que a obra de Aliseris não estava inserida no romantismo à la Chateaubriand ou à Boylesve mas, numa reverência ou num caso de amor à natureza sul-americana. As ilustrações que compõem este artigo de Clarté são fruto de périplos de Aliseris por paisagens da região, como praias, lagoas, morros, rios, quedas d’águas, cataratas, árvores, grutas e vales, captando a biodiversidade da natureza sul-americana e que integraram diversas exposições (conforme parte I deste artigo), especialmente, a Exposición Iguazú, realizada em novembro de 1936, na Galeria Muller, na Calle Florida, n. 935 em Buenos Aires, cujo catálogo teve apresentação do escritor espanhol Ramón Gómez de la Serna (1888-1963) e traduzido para o francês para compor o catálogo da Expositión Aliseris – Paysages Exotiques de L’Amérique du Sud: Uruguay, Argentine, Brésil et Paraguay,  realizada em outubro de 1938, no Palais des Beaux-Arts, em Bruxelas. O escritor espanhol escreveu que a…

(...) prova dessa faculdade exuberante e tropical, Aliseris, que também pintou o Brasil e os esconderijos paradisíacos de seu país uruguaio, ousou com as Cataratas do Iguaçu e conseguiu conter em um tríptico a verdade das cachoeiras, o arco-íris imaterial de seu seio, a beleza do torso fresco de uma mulher em que a água se estende em plena nudez sob a claridade dos espelhos do céu. Com a inspiração de um herborista e naturalista, ele pintou flores, pássaros e borboletas (…) Aliseris conseguiu resgatar o segredo do murmúrio das águas que mais excita as cores, assim como conseguiu captar em outras pinturas do mesmo tamanho o segredo daquelas praias e dessas palmeiras em que a luz do primeiro dia ainda brinca com inexprimíveis alegrias de cor.

Com esta descrição poética, vislumbra-se um pintor com sensibilidade que soube captar a fúria da natureza com nuvens, tormentas, ventanias que foi exibida na estada belga de Aliseris e interpretada por Flament. O articulista belga mostrou a seriedade da obra de Aliseris que de exotismo e de exótico nada tinha. O termo exótico e exotismo era usual para os europeus ao se referir à natureza, povos e culturas dos continentes asiático, africano e americano, numa época de imperialismos e colonialismos, inclusive o império colonial belga.

O artigo escrito por Aliseris para Clarté deve ter chamado à atenção dos leitores, cujo autor era um pintor-diplomata uruguaio que estava morando em Bruxelas e apresentando ao público um pintor brasileiro para os europeus.

Flament não olvidou a vida do pintor uruguaio e fez uma provocação com o pintor que responde:  – Se eu amo meu país e minha pintura? A condução da narrativa adota um tom sentimental com a apresentação do pintor uruguaio como órfão de pai e mãe aos dois anos de idade e a caixa de aquarelas que ganhou de presente de uma tia que se chamava Carlota. A caixa de aquarelas pode ser vista como um objeto da memória afetiva que apresentou a Aliseris o mundo das artes e moldou a sua sensibilidade artística.

O segundo artigo apresentado consta da edição de Clarté, número 6, de junho de 1939, no 12º ano de vida do impresso, e foi escrito por Aliseris e está sob o título Portinari grand peintre du Brésil. Nesse número, a capa tem como fundo a cor bordô ou bordeaux, com o seguinte sumário: Les informations de Clarté, En voyage, La vie des lettres, de Maurice Gauchez ; Art et Art Décoratif: Coup d’œil, Proletariat artistique, de Herman Dons; Chefs-D’Oeuvre de L’Artide sanat de L’Ancienne Ecosse, de Gunn Gwennet; Hommage a trois artistes belges, Paul Dubois, Emile Lecomte, Victor Hageman, de Lucien Jottrand; Janchelevici, esculpteur roumain, de Julien Flament; Portinari, grand peintre du Brésil, de Carlos Washington Aliseris; Harmonie…, de Essere, L’Activite Architecturale.

Portinari grand peintre du Brésil é o título do artigo de Aliseris em que ele apresentou aos europeus o grande pintor brasileiro

O artigo escrito por Aliseris para Clarté deve ter chamado à atenção dos leitores, cujo autor era um pintor-diplomata uruguaio que estava morando em Bruxelas e apresentando ao público um pintor brasileiro para os europeus. Naquela época, a América Latina ainda era vista como um subcontinente periférico e seus países e povos eram vistos pelos europeus como atrasados culturalmente e objeto de curiosidade. Este artigo sobre Portinari, começa mostrando o espírito do Brasil e a relação visceral de Aliseris com o país, tanto que foi cognominado pela imprensa brasileira como Pintor del Uruguay y de las flores del Brasil.

Portinari grand peintre du Brésil é um artigo com três páginas ilustradas com reproduções fotográficas de quatro obras do pintor de Brodowski, as fotografias são do ateliê do lituano Kazys Vosylius (1892- ?), fotógrafo de obras de Portinari e que prestava serviços ao IPHAN. As obras que ilustram o artigo são Floresta II, Os Despejados, Menina com Flor e Mão – fragmento de uma mão para afresco, consta uma dedicatória no canto inferior esquerdo “Para Aliseris, grande amigo e pintor de lei com um abraço do Portinari”.

A apresentação de Portinari partiu da história de uma amizade que começou no ateliê do Cosme Velho na cidade do Rio de Janeiro, embaixo do Corcovado, perto da estação de trem que leva ao Cristo Redentor, onde vai abordar o homem de estudos, com suas composições, retratos, paisagens e criações murais que estava iniciando para o edifício do Ministério da Educação sob o mecenato Capanema. Aliseris usa a mão como metáfora da amizade: “Portinari abre sua porta e estende sua mão de artista, a mão do homem que abre para o futuro uma verdadeira amizade. E então, um mundo de confidências, de trocas de pontos de vista, um mar de ideias remoídas por nós mesmos, formaram esta admiração que eu vou tentar hoje [1939] detalhar”.

A leitura que Aliseris fez da obra do pintor de Brodowski tem um sentido humanista e denota um profundo conhecimento das regras da arte, como por exemplo, ressalta os retratos feitos com técnica, com perfeição no desenho e profundidade psicológica, nos quais a assinatura de Portinari lhes dá tanto prestígio. Os dois pintores, Aliseris e Portinari, foram exímios retratistas. No mercado de bens simbólicos, a retratística exerce fascínio na clientela e serve de suporte para a carreira do artista, tanto para Portinari, quanto para Aliseris.

Aliseris chamou a atenção para as paisagens folclóricas, no caso desse artigo, pode ter havido um problema de tradução ou um olhar do estrangeiro sobre o Brasil. Aqui, a questão está relacionada a Despejados (1934), esta obra está representada por uma família de migrantes recém chegada pela via férrea na área cafeicultora de Brodowski e Batatais, na região da Alta Mogiana Paulista, com três adultos magérrimos e três crianças com impaludismo, com uma trouxa de roupas e um baú de folha de flandres e ao fundo uma paisagem com cafezais. Despejados encabeça uma série de obras sobre o mundo rural e os trabalhadores, com os óleos sobre tela: Café, Colona, Lavrador, Mestiço, até a série Retirantes, da década de 1940.

Aliseris viu as obras de Portinari cheias de sabedoria, de finesse, de humanidade. Aqui, o pintor uruguaio fez uma digressão na qual a matéria plástica se une indissoluvelmente à matéria humana. E, concluiu, com uma parábola bíblica do Gênesis que mostra a luta diária do homem para ganhar seu sustento: “Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto”.

Nesse artigo, Aliseris apresentou uma perspectiva humanista da obra portinariana. No desenvolvimento da narrativa demonstrou ser um admirador do Brasil e da cultura brasileira, com elegância fez uma ode ao país e à Portinari. Para Aliseris, o Brasil estava gravado na sua alma, o que marcou indelevelmente a sua trajetória artística, com a luz dos trópicos e com o calor humano.

Os artigos que compõem os dois números da Clarté de Bruxelas, em 1939, sobre Aliseris e Portinari, denotam que a arte latino-americana estava se deslocando da periferia para o centro, contribuindo para uma nova percepção da História da Arte fora do eurocentrismo reinante e dos cânones da Escola de Paris, criando uma nova sensibilidade a partir da arte do continente americano.

Aliseris como um mediador cultural fez trânsitos culturais e como um passeur foi objeto de estudo e escreveu artigo em Clarté. Cruzou rios, mares e oceano e levou para a Bélgica obras de arte onde realizou exposições e no regresso à Montevidéu levou impressos, como catálogos de exposições e revistas que retratam a sua arte, o que mostra a circulação transatlântica do impresso.

SOBRE A AUTORA

Reconhecida pesquisadora na área de História dos Intelectuais, com ênfase nos estudos sobre cultura impressa, mediadores culturais e transferências culturais, a professora Maria de Fátima Fontes Piazza atua no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Este texto complementa o artigo anterior, também produzido especialmente para o Jornalismo & História, publicado em 9 de julho de 2021, sobre a circulação transatlântica do pintor uruguaio Carlos Washington Aliseris. Maria de Fátima Fontes Piazza é licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, Mestra em História pela Universidade de Brasília e Doutora em História Cultural pela UFSC.  Entre as suas publicações, destaca-se a organização do livro Mediações e Mediadores Culturais: Escritores, Artistas e Divulgadores (Casa Aberta Editora, 2021).

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