História,  Reportagem,  Resenha

Livro-reportagem reconta a vida de Latorre, notório degolador da Revolução Federalista

Por Mauro César Silveira 

Ao discorrer sobre as relações entre história e jornalismo, em maio do ano 2000, em Lisboa, o então diretor de redação do Diário de Notícias, Oscar Mascarenhas, já destacava o desmesurado desafio que se impõe para uma dessas duas áreas quando a fonte é a outra: “Tanto a história como o jornalismo destilam rumores”. Ciente desse embaraçoso obstáculo, o talentoso e obstinado repórter Nilson Mariano realizou um exaustivo trabalho de apuração, durante três anos, vasculhando jornais e documentos, em arquivos e bibliotecas do Brasil e do Uruguai, para recontar a vida do tenente-coronel Adão Latorre, notório degolador da Revolução Federalista – conflito que sacudiu o sul do país no final do século XIX. O resultado é o admirável livro-reportagem Um tal de Adão Latorre: A degola na Revolução de 1893, lançado neste mês de março pela Edigal, de Porto Alegre. Envolvente do prefácio à última linha, a obra apresenta os atributos da melhor narrativa do jornalismo autoral, como o impressionismo do relato e a humanização dos personagens.

Sem dúvida, a condição de mestre em história pesou a favor do jornalista na árdua tarefa de perscrutar o diversificado conjunto de fontes do passado. Nilson Mariano seguiu à risca a lição do grande historiador francês Marc Bloch, que comparou as testemunhas aos documentos e  afiançou que eles também falam quando são bem inquiridos. Assim, emerge das páginas de Um tal de Adão Latorre uma figura humana complexa. Negro descendente de escravos, nascido no povoado de Cerro Chato, em Rivera, no Uruguai, onde era chamado de Adán ou Adam de la Torre, notabilizou-se, desde cedo, em dois ofícios que o acompanhariam até o fim da vida, com quase 90 anos: peão de estância e integrante de forças militares da região sul do continente.  Aos 16 anos, alistou-se nas tropas do Partido Nacional, os blancos. Dois anos depois já era sargento e, antes de completar 25, ganhou a insígnia de capitão. Serviria nas tropas dos caudilhos uruguaios, principalmente para os irmãos Gumercindo e Aparício Saraiva.

Mariano na Biblioteca Nacional do Uruguai: pesquisa histórica de fôlego Arquivo Pessoal

Como as lutas costumavam avançar para os dois lados da fronteira, Latorre participou também das ações guerreiras dos maragatos, a serviço do Partido Federalista, que combatiam o governo gaúcho de Júlio de Castilhos, nos primórdios da República. No território brasileiro, ele trocava a cor branca do Partido Nacional pela vermelha dos maragatos, adversários dos republicanos, os chamados pica-paus, que usavam lenços brancos. Foram nos anos revolucionários de 1893 e 1895 que ele ganhou fama de degolador frio, cumprindo, sem pestanejar, as ordens dos caudilhos, e executando as vítimas, em movimentos metódicos, com sua inseparável faca de cabo de prata. 

TERNURA COM OS ANIMAIS

Nessa época, sua imagem causava forte impacto, conforme uma das boas descrições do autor: “Apesar da aparência de peão, era major dos federalistas rio-grandenses, coronel do Partido Blanco uruguaio e capataz das imensas estâncias dos Tavares. O cabo de prata da faca virilheira assomando sobre a fivela da guaiaca, tinha uma barba onde se avantajava o cavanhaque de fios grisalhos a sinalizar os seus 58 anos. Pisou na terra endurecida com as botas de solado desgastado, o couro bastante esfolado devido ao atrito contra o metal do estribo das montarias. O andar era meio desajeitado, característico de quem mais cavalga do que caminha. Era daqueles homens que bastava a presença num recinto para os outros perceberem que algo de funesto poderia ocorrer. Não carecia ameaçar, gesticular ou ostentar armas para infundir respeito ou medo. Se Latorre aparecesse, melhor silenciar e esperar.

Na reconstrução do personagem histórico, invariavelmente reduzido às suas ações militares, falou mais alto o lado repórter de Nilson Mariano. Ele aproveitou valiosas informações obtidas numa entrevista que fez em março de 1993 com o então último filho vivo de Latorre, João, que tinha 103 anos, para mostrar um outro lado do líder negro. “Era bom para nós, melhor é impossível“, sintetizou o remanescente da família. Mais: era estimado pelos vizinhos, sempre pregando a boa convivência, e exibia imensa ternura pelos animais.  Não aceitava que seus filhos caçassem ou engaiolassem passarinhos. Se encontrasse um estilingue, destruía na hora, além de repreender os meninos. “O pai nos dizia que os animais têm o direito de viver“, recordou João Latorre na mesma entrevista.

A TAL SUBJETIVIDADE

A obra de Mariano representa uma rica fusão multidisciplinar. As áreas do jornalismo e da história caminham juntas, beneficiando-se reciprocamente. Assim, podemos reviver cenas e costumes de um período em profunda transformação tanto no extremo sul do Brasil como no Uruguai, com as ferrovias avançando, mas convivendo com diligências similares às do velho oeste norte-americano, nos rincões mais afastados do pampa. Tempos de muita violência na luta pelo poder político. De profunda desigualdade social, como vemos nas duas Pelotas, a sofisticada e a periférica. De jornalismo já com marca sensacionalista, direcionado ou amordaçado, onde a figura profissional do correspondente de guerra, como no caso do El Día, do Uruguai, era a exceção que confirmava a regra.

Algumas pistas oferecidas por aquele contexto histórico permitem inferir, como supõe o autor, que possivelmente os pais do negro Latorre migraram para o interior uruguaio em busca da sonhada libertação, pois o país vizinho decretou o fim da escravidão meio século antes do Brasil. Mas Nilson Mariano fez questão de deixar muitas dúvidas no ar. Até mesmo advertiu no prefácio: “Para o esclarecimento dos casos mais nebulosos, procurou-se o maior número disponível de fontes e versões. As sem origem comprovada ou que pareceram duvidosas foram descartadas, preferindo-se o vazio ao risco de uma inverdade. Em certas ocasiões, como ensina Marc Bloch, foi preciso confessar que não se tinha a resposta.Ao seguir essa outra lição do fundador da Escola dos Annales, Mariano optou pela melhor história. Mas também pelo melhor jornalismo. Repórteres autorais celebrados dentro e fora do país sempre confessaram suas lacunas. É outro lado bom da tal subjetividade. Foi assim com João do Rio, Joel Silveira, Marcos Faerman, Joseph Mitchell, Lilian Ross, Tom Wolfe e Truman Capote. É assim com Joe Sacco, Eliane Brum, Gay Talese. Ou com Marjane Satrapi, que fez uma grandiosa reportagem histórica em quadrinhos mesmo não sendo jornalista. Viva o trabalho autoral! 

SOBRE NILSON MARIANO

É jornalista e mestre em História. Entre os livros que escreveu, está a obra sobre a “Operação Condor”, revelando o pacto secreto entre as ditaduras militares do Cone Sul.  publicada em espanhol e português. Repórter desde 1976, atuou na Folha da Tarde e Zero Hora, tendo obtido alguns dos principais prêmios jornalísticos do país, como o Esso, o do Movimento de Justiça e Direitos Humanos e o Vladimir Herzog de Direitos Humanos, além de duas distinções da Sociedad Interamericana de Prensa (SIP). Entre outras honrarias, é “Cidadão Emérito de Porto Alegre” e “Jornalista Amigo da Criança” (Andi/Unicef). Tem muitas séries de reportagens históricas publicadas, como A Face Desconhecida da Legalidade, de 2011, em parceria com Dione Kuhn, e sobre o imaginário nos locais de batalhas da Guerra do Paraguai, em 2002.

MAIS SOBRE O LIVRO UM TAL DE ADÃO LATORRE

André Pereira, um dos mais premiados jornalistas gaúchos, entrevistou Nilson Mariano sobre a produção do livro. Veja aqui.

Outro premiado repórter, Carlos Wagner, publicou um artigo sobre o livro Um tal de Adão Latorre: A degola na Revolução de 1893 em seu blog Histórias Mal Contadas

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