História,  Jornalismo,  Resenha

A missão de contar histórias

Reportando o mundo na aridez do Texas “selvagem”

Por Bárbara Dal Fabbro

Será possível se falar dos primórdios do jornalismo em um filme de faroeste? E mais, com um ator consagrado, mas que não atua nesse gênero? O filme “Relatos do Mundo” (“News of The World”, 2021), que acaba de estrear no Brasil pela plataforma de streaming Netflix, nos mostra que sim. O longa foi baseado no livro homônimo de Paulette Jiles e traz uma narrativa que se passa em 1870, tendo como personagem principal o capitão Jefferson Kyle Kidd, profundamente interpretado pelo carismático Tom Hanks, e dirigido por Paul Greengrass, conhecido pelos filmes da franquia Bourne e pela câmera “tremida” – artifício que utiliza para passar mais realismo em suas cenas.

Já na primeira tomada do filme podemos ver as costas de Kidd, marcadas a balas, enquanto este se veste para iniciar mais uma de suas noites de leitura de notícias. Sabemos que ele está em Wichita Falls, no Texas. O que mais chama atenção na trajetória de Kidd é sua “ocupação” atual: ele viaja através do estado americano do Texas disponibilizando aos “ouvintes” notícias, ou relatos como sugere o título brasileiro, do e sobre o mundo, em um momento em que jornais estão se tornando meios de comunicação mais acessíveis e presentes no cotidiano das pessoas.

Kidd procede as leituras deixando claro saber que leva as notícias da região e do mundo para aquelas pessoas por 10 cents por saber que trabalham muito e que, muitas vezes, não há tempo para se ler os jornais e se inteirar sobre o que está acontecendo “lá fora”. “Fugir dos problemas, ouvir as grandes mudanças que estão acontecendo”.

Logo no início da trama é possível ver a foto de uma bela mulher em um porta-retrato vermelho, que ele carrega consigo. Ficamos sabendo, também, que ele lutou em duas guerras e, devido a isso, utiliza a alcunha de capitão. Chama a atenção a reverência com que se prepara para as leituras. Com seu relógio de bolso, monóculo e impecavelmente vestido como se para uma apresentação formal. Percebe-se que ele respeita aquele momento.

Até então, o relato se basearia nesse andante que leva notícias de povoado a povoado através de sua leitura, porém, ao sair daquela cidade, o capitão se depara com uma carroça caída em que marcas de sangue são visíveis. Ele se aproxima e encontra dois homens negros enforcados em uma árvore e é possível ver em um deles uma folha de papel dizendo que o Texas é um estado de brancos. Neste momento, escuta um barulho entre as árvores e o segue, depara-se com uma garota fugindo e tenta fazer contato com ela. A garota o morde e corre para a carroça caída.

Kidd insiste em se aproximar da garota arredia, loira e branca, mas trajando vestes dos nativos americanos. Percebe que ela não o compreende e conversa na língua da tribo Kiowa. Este é o momento que definirá a história dali em diante. O capitão encontra documentos que dizem que a garota vivia entre os Kiowa há seis anos desde que seus pais foram atacados e mortos, e que a estavam levando para seus familiares em Castroville.

Johanna é o nome com que ele passa a chamá-la, pois é o que consta nos documentos. Percebe-se que a garota não responde a esse nome. Soldados os encontram e questionam o que estão fazendo ali. Kidd explica que estava deixando a cidade e a viu. Entrega os documentos a eles e diz que precisam levá-la até a família. O capitão explica que é de San Antonio e está indo para Red River. Os azuis, como são conhecidos, o instruem a levar a menina até o posto de comando.

Nesse momento, o vínculo entre os dois é criado, mesmo sem intenção. Kidd convence Johanna a ir com ele, usando de mímicas e poucas palavras. Mas antes, uma cena muito importante para entendermos a índole do personagem: ele enterra os corpos dos enforcados. A partir daí, seguiremos com o capitão e Johanna pelas paisagens desérticas do Texas. Com muitos silêncios, calor e as tentativas de se estabelecer um diálogo entre pessoas que não falam a mesma língua, até palavras em alemão são ditas para tentar estabelecer uma conexão.

Quando Johanna encontra os jornais que o capitão lê, ele diz a ela que são palavras impressas. E que colocadas juntas, uma após a outra, contam uma história.

Chegando ao destino, Kidd leva a garota ao comando, e lá fica sabendo que o encarregado não está e que só voltará em três meses. Dão a ele duas opções: aguarda ou ele mesmo leva a garota aos parentes. Na cidade, procura seu amigo, Simon Boudin, e pede que fique com a garota até que o encarregado volte. O capitão faz uma leitura na cidade e percebe-se a grande tensão entre os cidadãos do Texas e o governo federal, lá caracterizado pela presença dos “azuis”. Algumas informações são importantes nesse momento: Texas escravagista e “apartado” do resto dos EUA.

Simon busca Kidd, Johanna sumiu. Chove muito e eles vão procurá-la. O capitão acha Johanna em um penhasco, olhando para o outro lado do rio, em que se vislumbra uma tribo se deslocando. Ela grita em Kiowa para que não a deixem lá, que não a abandonem. Diz ser Cigarra, filha da Água Turbulenta e Três Manchas. Eles a levam de volta para casa, ensopada e desolada. Simon diz que a garota é amaldiçoada.

O capitão se compromete a levá-la até Castroville. Serão 640 quilômetros de estrada perigosa. Ao questionado do porquê está fazendo isso, responde “A menina está perdida. Precisa ir para casa”. Simon e Kidd fazem os arranjos para a longa viagem. O amigo empresta uma carroça e uma arma com munição, dizendo que precisarão mais dela do que ele. Seguem-se seis dias de viagem até Dallas. Nesse ínterim, Kidd segue conversando com a garota, enquanto ela remexe todas as coisas da carroça, experimentando tudo e comendo quase todo o pote de açúcar. Quando Johanna encontra os jornais que o capitão lê, ele diz a ela que são palavras impressas. E que colocadas juntas, uma após a outra, contam uma história.

Chegando em Dallas, Kidd procura a Sra. Gannett e aluga dois quartos. Enquanto comem, Johanna o fazendo com as mãos, a anfitriã se senta à mesa e conversa com eles. O capitão explica que a menina não entende inglês e que só fala Kiowa. Para sua surpresa, elas começam a conversar na língua nativa. A mulher diz a Kidd que Johanna não tem casa pois foi queimada pelos soldados. Ela é órfã duas vezes. Percebe-se uma expressão de dor no rosto dele ao compreender as agruras pelas quais a garota passou, ainda tão nova.

Capitão Jefferson Kyle Kidd (Tom Hanks): rito solene nas leituras dos jornais Imagem: Divulgação

Kidd e Gannett conversam no quarto dele. Ele diz que não sabe cuidar de uma criança, e que acredita que não tem a paciência necessária para tal. Gannett remenda “ela está viva”. E questiona o que o capitão pretende fazer depois de entregá-la aos familiares, se voltará a San Antonio. Ele diz que há um navio saindo de Galveston e que pensou em embarcar nele e ver os lugares sobre os quais lê para as pessoas.

A leitura naquela cidade procede com muito público. Percebemos um homem encarando Johanna. Ao saírem, são abordados por outros três, um se identifica como Sr. Almay e faz a proposta de comprar Johanna pois sabe que ela é a prisioneira de Wichitta Falls que foi criada pelos Kiowa. Chega a oferecer cem dólares, o que para a época é uma fortuna. Quando o capitão rejeita a oferta, o acusa de se aproveitar da garota. Eles brigam e os azuis interferem. Temendo por suas vidas, saem da cidade ainda de madrugada.

Assim que são liberados, os três homens os seguem. Acompanhamos a perseguição e o desespero de Kidd em salvar a si e a garota daquelas pessoas hostis. Sabe que não conseguiria enfrentá-las, não só pelo número, mas também por ser mais velho. Escalam uma montanha pedregosa e se escondem enquanto são alvejados. Os homens querem fazer um “arranjo” com ele. Dividir os lucros pela garota. Kidd e Johanna usam de artifícios para ludibriá-los e matá-los. As balas acabam e só resta a espingarda de caça. O capitão explica que são para matar pássaros e pede para a garota pegar os cavalos e se salvar.

Ela retorna com a lata de moedas e preenche com elas o tambor das balas da espingarda, tornando a munição mais letal. Após momentos de tensão entre esconderijos, tiros e o falatório de Almay, finalmente conseguem matá-lo. À noite, no acampamento, Johanna canta em Kiowa sobre os feitos de Kidd enquanto pinta os cavalos.

“Então você é pago para contar histórias? Não sabia que alguém podia viver disso.”

O vínculo entre eles é nítido. Apreciam a companhia um do outro na viagem, e começam a ensinar palavras em seus idiomas. Segue-se uma linda cena sobre o entendimento da diferença entre os norte-americanos e as tribos nativas. Quando a garota explica as palavras céu e terra e gesticula que formam um círculo, envolvendo e conectando tudo, Kidd entende que em sua cultura veem as coisas mais como linhas retas, planícies, destinos. A garota fala em alemão e Kidd percebe que relembra o que passou. “Nós dois temos demônios para enfrentar adiante”.

Chegando ao Condado de Erath, são emboscados. O Sr. Farley arrogantemente se apresenta como o dono de tudo. Vê-se o abate brutal de búfalos e seus homens se gabam da morte e escalpo de indígenas. Kidd e Johanna são coagidos a ficar e ler as notícias naquela localidade. Conhecem John Calley, um garoto que trabalha para Farley e que perdeu um amigo ao ser morto por “falar e perguntar demais”.

Os preparativos são feitos para a leitura, Johanna coleta as moedas e Farley entrega a Kidd um jornal que ele mesmo produziu e que fala de suas “façanhas”. Percebendo que não se trata de notícias e vendo a situação autoritária em que viviam ali, o capitão se recusa a ler o Erath Journal e começa a contar uma história sobre carvoeiros de Keel Run que sobreviveram a um incêndio em uma mina e se voltaram contra seu chefe. A mensagem é entendida. E uma confusão se inicia.

Kidd (Tom Hanks) e Johanna (Helena Zengel): vínculos construídos e sedimentados em atribulada viagem de 640 quilômetros Imagem: Divulgação

Kidd e Johanna juntam suas coisas para deixarem o local quando são surpreendidos por Farley e um capanga. O capitão apanha e quando apontam uma arma para sua cabeça, Johanna atira e mata Farley. O capanga vai até a garota e mira sua arma, quando Calley intervém e o mata, salvando-os. “Eu gosto das suas histórias”. Os três vão embora do local.

Calley e Kidd conversam durante a viagem e fica-se sabendo que ele era tipógrafo em San Antonio, tinha uma gráfica antes da guerra que imprimia jornais. Perdeu tudo e teve que inventar uma nova vida. Como não podia mais imprimir os jornais, os lê para as pessoas. “Então você é pago para contar histórias? Não sabia que alguém podia viver disso.” Kidd diz que não se fica rico com isso, mas que consegue viver.

Em uma encruzilhada, Calley segue com outras famílias para o local em que a ferrovia está sendo construída. Antes de partir, entrega sua arma ao Capitão, para que possam se proteger, e recebe em retribuição o jornal com a história dos carvoeiros, que acolhe com um grande sorriso. Acampam, Kidd está inquieto e desconfiado, Johanna diz que os nativos sabem que eles estão aí.

Segue-se uma sequência muito potente da trama. Os viajantes encontram construções abandonadas e a garota entra em uma delas. O silêncio é uma presença fortíssima. Ela reconhece o local, vê as manchas de sangue e de “invasão”. Há a identificação quando encontra uma boneca de palha perto de uma cama. Ela pergunta se todos estão mortos, o capitão confirma.

Em conversa na estrada, Kidd pede para ela esquecer toda essa dor e morte e seguir em frente. A sabedoria da garota o acerta quando ela responde que para se seguir em frente é preciso primeiro lembrar. A carroça ganha velocidade em uma descida e eles perdem o controle. Pulam do veículo em movimento e vemos cavalos e carroça caindo de uma ribanceira. É preciso sacrificar os cavalos e seguir a pé.

A estrada é deserta, o sol escaldante, e seguem andando pelo que parecem dias. É possível ver sangue nos pés da garota. Ela cai, não consegue mais andar. Kidd a carrega nos braços. Não há mais água. Escutam barulhos de cavalos e uma tempestade de areia os engole. O capitão chama pela garota desesperadamente. Quando a tempestade passa, a vê, e também uma tribo que se desloca. Nesse momento, percebe-se que ele acha que ela o abandonará.

Mais que a adaptação de um romance para filme, a narrativa de Relatos do Mundo aborda momentos importantes da história norte-americana e da história da imprensa no país e no mundo.

Johanna conversa com um dos nativos e consegue um cavalo para seguirem viagem. A relação que desenvolveram os impele a lidar com difíceis escolhas sobre o futuro. Finalmente, chegam a Castroville. Johanna questiona se estão ali para ler histórias e conseguir moedas. O capitão explica que não, que lá é seu lugar agora, sua casa. Encontram a irmã de sua mãe, e ficam sabendo como eles morreram. Seu marido, alemão, diz que para ela ficar precisará trabalhar. Kidd explica que Johanna precisa de tempo, que é algo entre uma nativa e uma americana. Recusa o dinheiro e pede que cuidem dela, comprem livros para que leia, pois ela gosta de histórias. “Ela precisa rir e sonhar. Ela precisa criar novas memórias”.

Quando o capitão se levanta para partir, Johanna não o encara. É nítida sua decepção com a separação. Kidd segue seu caminho rumo a San Antonio. Lá, encontra sua antiga casa, fechada, abandonada. Na cômoda, manuseia objetos de sua esposa. Silêncio. Decide procurar por um amigo, Willie. Descobre-se que sua esposa faleceu há cinco anos e que está enterrada na igreja, no jardim. Foi cólera. Não havia o que fazer. O capitão expressa sua dor, seu luto, fala da guerra e de como foram os quatro anos no combate. Conta que ficou sabendo de sua morte por uma carta, enquanto servia. Só queria estar com ela, senti-la, ter uma família. Desabafa que acredita que é amaldiçoado e que a morte da esposa foi o julgamento de Deus pelas coisas que ele viu e fez.

Willie vê o sofrimento do amigo. Diz que o conhece há cinquenta anos e que não pediram por nada daquilo. Sobreviveram, mas infelizmente outros não. Kidd se dirige para a igreja. Desenrolam-se os takes mais carregados de sentimento do filme. O silêncio é absoluto, massacrante. O velho homem contempla o túmulo de sua esposa, com lágrimas nos olhos, retira sua aliança e a deposita junto à sepultura.

Plateia sempre se encantava com a leitura das notícias Imagem: Divulgação

Fechando o ciclo, o capitão sai da cidade em uma cavalgada vigorosa e retorna a Castroville. Ali, já é possível vislumbrar o entendimento de que Johanna é sua família e que está indo recuperá-la. Ao chegar na propriedade dos tios da garota, a encontra amarrada no varal. Segundo a tia, ela foge. Desamarra-a e pede desculpas à menina. Diz que sente muito e, em Kiowa, fala que o lugar dela é com ele. Johanna pergunta se eles irão juntos: “Capitão, Johanna vai?”. Ele responde que apenas se ela quiser. Ambos choram e se abraçam. A ternura do momento é tocante. Vão embora juntos.

Destaque para a interpretação da atriz mirim Helena Zengel. O peso e a amplitude de entendimento que ela dá à personagem de Johanna nos mostra que, mesmo com poucas falas e muitos silêncios, conseguimos compreender e nos identificar com aquela garota em um momento extremamente difícil de sua vida.

A cena corta para mais uma leitura de notícias. “Senhoras e senhores, essas são as histórias de homens e mulheres parecidos com vocês. À espera de dias melhores.” Kidd está entretendo e informando a plateia sobre um caso de um homem que “ressuscitou” em meio a um casamento. A garota está sorridente, ajudando com a sonoplastia. Com o desfecho do “homem que voltou dos mortos”, todos aplaudem e Kidd apresenta-a como Johanna Kidd.

Mais que a adaptação de um romance para filme, a narrativa de Relatos do Mundo aborda momentos importantes da história norte-americana e da história da imprensa no país e no mundo. A relação entre Kidd e Johanna é retratada da forma mais pura e simples e, por isso, dá um peso ainda maior à trama. Duas pessoas sem família, que sofreram muito e que se encontram pelo “capricho” do destino para contar histórias e reportar as notícias do mundo.

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