História,  Jornalismo

Janelas abertas para a memória cultural argentina

Acervo digital de livre acesso do projeto Ahira expõe a multifacetada história jornalística e literária do país platino

Por Mauro César Silveira

O interesse era meramente acadêmico. Surgiu da necessidade de reunir material de pesquisa de diferentes pessoas que constroem a história do jornalismo argentino. Mas a criação de um portal destinado a acolher as publicações já digitalizadas por cada integrante do grupo ganhou uma dimensão cada vez maior, um tanto inesperada, movida pelo interesse crescente despertado dentro e fora da universidade. A ideia adquiriu relevo e, ao longo da década passada, tornou-se uma “grande banca de revistas argentinas do século XX”, como costuma definir a coordenadora desse trabalho de divulgação histórica, Sylvia Saítta, professora titular de literatura da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (UBA). Com as restrições de mobilidade destes tempos pandêmicos, o precioso acervo online, constituído hoje de coleções completas de 216 títulos, tem sido acessado não apenas por docentes, estudantes, historiadores e jornalistas, mas pelo público em geral. Tamanho interesse não é de estranhar: o conjunto disponível – tanto para ser visualizado como baixado gratuitamente – representa uma fascinante viagem pelo universo cultural do país platino na centúria anterior.

O projeto do Archivo Histórico de Revistas Argentinas, mais conhecido pela sigla Ahira, caminha, agora, a passos largos, com apoio financeiro da UBA e da Agencia Nacional de Promoción Científica y Tecnológica (ANPCYT). O site é atualizado permanentemente e o número de edições exibidas aumentou mais de 30 por cento nos últimos seis meses. “O objetivo é cobrir a história das revistas argentinas no século XX”, afirma Sylvia Saítta. No início, o material apresentado, de acentuado perfil cultural, era o mesmo utilizado nas pesquisas dos professores envolvidos, que pertencem às áreas de letras, literatura e ciências da comunicação da Universidade de Buenos Aires. “As revistas constituem um capítulo prévio, o primeiro âmbito literário antes dos livros”, ressalta a pesquisadora. São publicações que, em quase sua totalidade, nasceram de projetos coletivos, buscando nitidamente intervir nos debates públicos, sejam estéticos ou políticos e ideológicos, destinados a polemizar e estimular visões críticas na sociedade.

“As revistas são a melhor forma de ler o presente em qualquer época do século. É para ver o que está sendo discutido, quem são aqueles que participam”. Sylvia Saítta, a coordenadora do projeto

As possibilidades que se abrem diante das questões que mobilizavam os intelectuais do século passado são muito grandes. Como a mesma Sylvia Saítta, que também é a diretora do portal Ahira, já destacou ao jornalista Ariel Pukacz, do jornal online argentino Infobae, em 2 de maio de 2019: “As revistas são a melhor forma de ler o presente em qualquer época do século. É para ver o que está sendo discutido, quem são aqueles que participam. As revistas debatem entre si, as polêmicas surgem. Se formos aos anos oitenta, sai a revista Punto de vista de Beatriz Sarlo – a escritora e crítica literária esteve no Brasil participando de duas edições da Festa Literária Internacional de Paraty, em 2005 e 2015 -, tinha o Ojo Mocho de Horacio González e também tinha La Bizca. Já a partir dos títulos eles entravam em diálogo. Ou você tem a revista Contorno dos anos cinquenta, dos irmãos Viñas, que se chamava assim porque antes havia uma chamada Centro”. São janelas que descortinam a multifacetada história jornalística e literária do país platino.

Entre as preciosidades à disposição no Ahira, figuram publicações como El Cielo, revista dirigida pelo escritor César Aira que era praticamente desconhecida, e Destiempo, periódico que Jorge Luis Borges e Bioy Casares dirigiram sob pseudônimo. Mas há outras raridades no acervo: a coleção completa de Crisis, a emblemática Las Ciento y Una e sua edição única de junho de 1953, incluindo nomes do porte do uruguaio Juan Carlos Onetti, e o suplemento cultural do jornal Crítica, a Revista Multicolor de los Sábados, dirigida por Borges e Petit de Murat na década de 1930.

Se o viés cultural pautou o início do site, o interesse que brotou fora da academia levou o projeto a estabelecer a ambiciosa meta de disponibilizar todas – ou quase todas – as revistas argentinas do século XX, abarcando também a produção das cidades das demais regiões do país. “A ideia é avançar em publicações muito diferentes umas das outras, que não sejam apenas revistas literárias ou culturais, mas mostrar também a grande variedade de publicações que a Argentina teve ao longo do século XX”, sublinha a pesquisadora. Atualmente, já podem ser acessadas publicações sobre cinema, teatro, quadrinhos, música, ficção científica, esporte – caso da Todo Fútbol, que circulou em 1969 abordando a história da modalidade – e de interesse geral.

É um acervo de valor inestimável, que recebe novas publicações todos os meses, mais ainda – e de forma surpreendente – depois que a pandemia de Coronavírus eclodiu.

No amplo mosaico em construção, podem ser visualizados títulos clássicos, como Martín Fierro, dos anos 1920, considerada a mais importante revista daquela vanguarda literária argentina, as revistas de Abelardo Castillo da década de 1960, a já citada Punto de Vista, de Beatriz Sarlo, ou as impactantes publicações que vieram à luz após a ditadura entre os anos 80 e 90: Diario de Poesía, Con V de Vian, El Amante e Babel. É um acervo de valor inestimável, que recebe novas publicações todos os meses, mais ainda – e de forma surpreendente – depois que a pandemia de Coronavírus eclodiu. Leitores e leitoras do site têm oferecido revistas de seus acervos caseiros para serem digitalizadas. Como um dos critérios que o Ahira não abre mão é ter a coleção completa do periódico, algumas vezes, os exemplares faltantes precisam ser encontrados em arquivos públicos, com outros colecionadores ou mesmo serem adquiridos para serem digitalizados.

Além da colaboração espontânea do público visitante do site, em escala progressivamente crescente, os subsídios recebidos da Universidade de Buenos Aires e da Agencia Nacional de Promoción Científica y Tecnológica têm se mostrado fundamentais no avanço do arquivo online. As nove pessoas que integram o grupo de pesquisa assumem o caráter artesanal que caracteriza o projeto desde seu início, realizando a maior parte da digitalização das publicações em suas próprias residências. Por isso, a aquisição de scanners de melhor resolução, via recursos públicos, facilitou os trabalhos de formatação.

Trabalho artístico de 1918 do desenhista e pintor espanhol Manuel Mayol Rubio para a revista Plus Ultra, suplemento mensal de Caras y Caretas, fundada por ele na Argentina dois anos antes, ilustra a página das informações sobre os objetivos do Ahira

Os serviços oferecidos de forma gratuita pelo Ahira são mesmo valiosos. As coleções podem ser lidas e baixadas na íntegra, sem limites, com o resumo da proposta editorial de cada revista e do conteúdo apresentado, além dos nomes de seus integrantes, entre outras informações. Mais: o site incorpora um alentado conjunto de artigos críticos e ensaios históricos sobre as revistas e oferece, através da área de contato (correio eletrônico), a possibilidade de intercâmbio entre pesquisadores, docentes, estudantes e leitores interessados nas publicações.

Mas ainda existem obstáculos grandiosos a serem superados para alcançar o objetivo de contar a história, a mais completa possível, das revistas argentinas do século XX. Os títulos que tiveram vida mais longa tornam as suas digitalizações empreitadas de elevados custos. É o caso da influente Primera Plana, que circulou entre 1962 e 1974, e onde a personagem Mafalda, do  cartunista Quino, apareceu pela primeira vez no segundo ano da publicação.  Essa é uma das maiores lacunas no acervo. A saída vislumbrada é a obtenção de maior aporte financeiro através de editais públicos que o grupo de pesquisa planeja disputar no futuro. Que tenham sorte. Muita sorte. E que o fortalecimento do site – já conhecido em alguns países europeus – animem grupos de pesquisa dos vizinhos sul-americanos, particularmente, do Brasil, a lançarem propostas semelhantes. Seria ótimo para a história, o jornalismo e toda a sociedade.

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